Não, você não vai ativar nenhum arquétipo — O que são arquétipos e como eles moldam nossas vidas
Transcrição do vídeo
Introdução
Você acredita que pode simplesmente “ativar” o arquétipo da Cleópatra? Ou da sereia, do mago, do amante, do kratos, do Sasuke, do golfinho?
Se sim, saiba que talvez você esteja cometendo um dos maiores equívocos da psicologia moderna.
Uma rápida pesquisa na rede social vizinha e você se depara com: “melhor áudio de ativação do arquétipo da deusa Afrodite”. “Ative o arquétipo da Cleópatra nessa série de 7 vídeos”. “Ative o poder do arquétipo da Lilith para sedução fatal, libertação, força, coragem, magnetismo”, e por aí vai.
Hoje, as redes sociais estão lotadas de promessas mágicas: “Ative o arquétipo da sereia e conquiste qualquer homem”, “Ative o arquétipo do mago e transforme sua vida financeira”, como se o inconsciente humano fosse uma espécie de aplicativo que bastasse clicar e instalar; um arquétipo não é o relógio do Ben 10 para você escolher algum e ativar.
A ideia de ativação de arquétipo é não apenas falsa, mas potencialmente perigosa para a sua saúde mental e para o desenvolvimento pessoal.
Na verdade, não sou nem eu que estou dizendo isso, mas sim Carl Jung, o pai da psicologia analítica, que gastou décadas estudando o inconsciente coletivo e os arquétipos — e ele jamais falou sobre “ativar” arquétipos como se fossem superpoderes.
E saiba que essa ideia de ativação de arquétipos é relativamente nova, fruto de várias interpretações equivocadas dos textos de Jung sobre o assunto que se difundiram ao longo dos anos.
Para começar, você não vai ativar arquétipos com a força do pensamento, repetindo palavras, olhando para uma imagem na tela do seu celular ou com a força da suposição.
Na sua obra clássica “Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, Jung nos ensina que os arquétipos não são personagens ou máscaras que escolhemos vestir, mas sim estruturas universais que moldam nossas emoções, pensamentos e comportamentos de maneira inconsciente, e guarde bem essa palavra: inconsciente.
Ignorar essa profundidade e tratar arquétipos como brinquedos da mente é como brincar de fogo em um barril de pólvora: você pode causar feridas profundas no seu verdadeiro processo de individuação — isto é, o caminho para se tornar quem você realmente é.
Os arquétipos não começaram com a psicologia analítica de Jung, sendo bem mais antigos que a própria psicologia, inclusive.
Mas, para os propósitos do vídeo, vamos nos concentrar na definição junguiana de arquétipo.
Então, neste vídeo, vamos entender o que são os arquétipos segundo a psicologia analítica, por que a ideia de “ativação” de arquétipos é uma distorção moderna, mostrando alguns exemplos de arquétipos mal interpretados e, principalmente, como trabalhar corretamente com essas descobertas, sem é claro, cair em armadilhas.
A trajetória de Carl Jung
Jung teve sua trajetória profissional profundamente influenciada por Sigmund Freud, o pai da psicanálise.
Ele acreditava, como Freud, que muitos dos nossos comportamentos eram guiados por desejos e impulsos que faziam parte do nosso inconsciente individual, isto é, uma região da nossa psique contendo experiências individuais esquecidas, reprimidas ou não percebidas, que exerciam profunda influência no nosso comportamento e na nossa personalidade.
Mas, aos poucos, ao trabalhar com pacientes que apresentavam sonhos, visões e imagens simbólicas que pareciam pertencer a culturas antigas e distantes — sem que essas pessoas tivessem qualquer acesso a essas tradições — Jung percebeu algo que ia além da experiência pessoal.
Sonhos com dragões, jornadas míticas, encontros com velhos sábios e mães terríveis surgiam em sonhos, pinturas e símbolos em pessoas comuns.
Essas imagens se repetiam em diferentes partes do mundo, em diferentes épocas.
Intrigado, Jung se voltou para a antropologia, para a mitologia e para a religião comparada. E foi aí que ele percebeu algo além do inconsciente pessoal — aquele inconsciente cheio de memórias esquecidas e reprimidas exclusivas da nossa vida.
Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo
Isso que está além do inconsciente pessoal é o inconsciente coletivo: uma camada mais profunda da nossa psique, compartilhada por toda a humanidade.
Vejamos como Jung definiu o inconsciente coletivo:
“O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal, mas herdada.” Carl Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
Ou seja, da mesma forma como os pássaros de migração não aprenderam a migrar, mas já possuem um instinto migratório em sua natureza, também o ser humano carrega consigo, desde o seu nascimento, a estrutura da sua natureza, não apenas de sua natureza individual, mas da sua natureza coletiva.
E é essa natureza coletiva que faz com que tenhamos comportamentos semelhantes, independentemente da época e do lugar em que o ser humano estiver.
Nessa parte da psique compartilhada repousam dois grandes conjuntos de fatores primordiais: os instintos e os arquétipos.
Os instintos são impulsos automáticos que preservam a vida, como a fome, a sexualidade, a agressão, o cuidado, a busca por sentido, etc. Por serem herdados, não resultam da experiência individual; eles emergem sob determinadas condições internas ou externas.
Agora, se os instintos fornecem a força, os arquétipos oferecem a forma. Eles são padrões estruturais dos instintos, que moldam como percebemos, sentimos e imaginamos certas experiências recorrentes como a maternidade, a morte, o desconhecido, nossos medos, e etc. Jung escreve que:
“[…] os arquétipos [são] imagens inconscientes dos próprios instintos; em outras palavras, eles representam o modelo básico do comportamento instintivo.” Carl Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
Aqui nós chegamos em um ponto muito importante: o arquétipo em si é vazio, é como se fosse uma forma sem conteúdo. Nós não temos acesso direto ao arquétipo porque ele é justamente vazio, sem conteúdo e totalmente submerso no nosso inconsciente coletivo. Jung deixa isso bem claro no seguinte trecho:
“O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que […] uma possibilidade.” Carl Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
O arquétipo, por ser inconsciente, só se revela por meio de imagens arquetípicas, ou seja, em mitos, sonhos, ritos, contos e fantasias – que variam segundo a cultura e a história pessoal, mas preservam um núcleo de significado reconhecível em qualquer época. Nós não temos consciência do arquétipo, mas sim daquilo que emergiu à consciência, ou seja, o seu conteúdo, a imagem arquetípica.
Para deixar ainda mais claro: Imagine um rio subterrâneo. Esse rio é o inconsciente coletivo, que contém uma certa pressão causada pelo fluxo de água — o fluxo da água sendo o instinto. Essa corrente de água corre por um leito definido com rochas e curvas, que são arquétipos.
Quando a pressão aumenta, a água procura saídas para a superfície, através de fontes, nascentes, poços artesianos – estas são as imagens arquetípicas que chegam à consciência. Assim, cada experiência humana é sempre o encontro entre um impulso energético, que é um instinto, com a sua forma simbólica, o arquétipo.
Sem a energia, o arquétipo permaneceria latente, submerso; sem a forma, ou seja, o arquétipo, o instinto irromperia de modo cego e caótico.
Vamos exemplificar ainda mais através de um comportamento materno:
O nascimento de um filho desperta na mãe o instinto de proteção. Esse impulso instintivo combustiona o arquétipo materno, que, por sua vez, oferece modelos simbólicos para significar a experiência.
Podemos encontrar a arquétipo materno através das imagens arquetípicas de Maria, a mãe de Cristo; através de Ísis, a deusa do Egito; de Iemanjá, a mãe dos orixás; ou até mesmo nos sonhos, quando aparecem conteúdos relacionados à amamentação e ao cuidado, já que temos um arcabouço de conteúdos compartilhados coletivamente.
Ao ver o filho, a mãe tem um sentimento de ternura, que é uma expressão corporal de um instinto. Esse sentimento de ternura, esse instinto, por sua vez, encontra, através do arquétipo, ou seja, através de uma estrutura formal, um modo de se manifestar na consciência, seja por imagens e comportamentos que orientam atitudes, rituais e narrativas sobre o que é “ser mãe”.
A Ilusão da “Ativação” de Arquétipos
No entanto, com a popularização da psicologia nas redes sociais e na cultura de desenvolvimento pessoal, surgiram interpretações superficiais e distorcidas sobre os arquétipos. Hoje é comum ouvir que basta “ativar o arquétipo da deusa”, “do mago”, “do herói” para transformar instantaneamente a vida.
Porém, essa ideia de “ativação” não tem fundamento na psicologia analítica de Jung. Ela surgiu mais recentemente, a partir de uma mistura entre conceitos da Nova Era, marketing de autoajuda e interpretações populares mal compreendidas da psicologia profunda.
Jung sempre deixou claro que os arquétipos são autônomos e independentes da vontade consciente. Em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, Jung explica que é quase como se os arquétipos tivessem vida própria e, ao aparecerem em nossas vidas, podem tanto iluminar como destruir, dependendo de como são integrados ou reprimidos.
Os arquétipos se manifestam espontaneamente — seja em momentos de crise, mudanças profundas ou conflitos internos — e não podem ser invocados à vontade como superpoderes. Eles emergem da necessidade interna da psique de equilibrar a consciência, trazendo à tona aspectos ocultos ou negligenciados.
Quando falamos em “ativação”, o que de fato ocorre é a chamada constelação de um arquétipo.
Isso significa que o arquétipo continua latente e inacessível em si mesmo. O que emerge para a consciência é uma imagem arquetípica através de um símbolo, um mito, um sonho, um grande afeto emocional, etc.
No entanto, eles não são constelados pela nossa vontade, mas por situações impactantes que passamos na vida, seja através da paixão, do trauma, do medo da morte, nas situações de crise e por aí vai.
A consciência, então, reage à essa constelação, podendo interpretar e integrar o conteúdo que emergiu, mas ela não cria o fenômeno.
O risco de ‘ativar’ arquétipos
Ao acreditar que podemos simplesmente “ativar” um arquétipo como uma ferramenta de conquista pessoal, corremos o risco de inflar o nosso ego e nos identificar de maneira perigosa com imagens que ainda não compreendemos verdadeiramente. O próprio Jung nos alertou sobre isso:
“Se pudermos, jamais devemos identificar-nos com um arquétipo, pois as consequências são assustadoras, conforme revela a psicopatologia e certos acontecimentos contemporâneos.” Carl Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
Jung alertou que identificar-se com um arquétipo é extremamente perigoso porque o ego humano — que é limitado e frágil — se inflaciona ao se confundir com forças arquetípicas, que são enormes, universais e inconscientes.
Essa inflação psíquica pode levar à alienação da realidade, a comportamentos destrutivos e, nos casos mais graves, a estados psicóticos.
A pessoa acredita que aquela energia é “sua”, que aquele poder, saber ou importância vem do ego.
Resultado: o indivíduo se torna possuído pelo arquétipo, perdendo o senso de proporção, humildade e realidade. Jung escreve que:
“A identificação pode transcorrer no melhor dos casos como uma inflação mais ou menos inócua. Em todo caso, a identificação com o inconsciente significa uma certa fragilidade da consciência e nisso reside o perigo. A identificação não é ‘feita’ por nós, não ‘nos identificamos’, mas sofremos inconscientemente o tornar-nos idênticos a um arquétipo, isto é, somos por ele possuídos.” Carl Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
Ou seja, nem mesmo a identificação com um arquétipo é possível conscientemente, na medida em que somos possuídos por ele, o que nos leva a um estado de alienação.
Assim, a verdadeira relação com os arquétipos não é de dominação nem de identificação, mas de diálogo. Não se trata de “ser” o arquétipo, mas de integrar suas energias e significados à nossa jornada de individuação de forma consciente e responsável.
Até aqui, deu para perceber que, como a experiência humana é vasta, vasto também são os arquétipos que estão no inconsciente coletivo. Ou seja, não existem 6 ou 12 arquétipos, mas um número incontável deles. Isso porque os arquétipos não são conteúdos específicos (como “o velho sábio”, “o herói”, “a mãe”) — eles são formas ou tendências inatas de percepção e comportamento.
Cada experiência humana fundamental pode estar relacionada a um ou vários arquétipos. O inconsciente coletivo é dinâmico, não estático: novas situações históricas e culturais podem trazer à tona configurações arquetípicas que antes estavam latentes durante toda a história da humanidade.
Exemplos de Arquétipos Mal Interpretados
E um dos exemplos mais comuns dessa distorção moderna de ativação e identificação com os arquétipos é a através da figura do herói.
Imagine alguém tentando “ativar o arquétipo do herói” com técnicas de mentalização. Essa pessoa pode fantasiar figuras heroicas, ficar falando para si mesmo que ele é um vencedor, tentar imitar o homem de ferro, o homem aranha, adotar poses, fazer treinamentos e por aí vai.
Mas o verdadeiro arquétipo do herói só se constelará espontaneamente se a pessoa enfrentar, de fato, uma provação real na vida, uma crise transformadora onde terá que se reinventar.
O arquétipo do herói, então, emerge como uma força psíquica, carregada de imagens, emoções e desafios que a própria pessoa jamais poderia planejar, mas que ela pode perceber pela elaboração e pelo diálogo com essas imagens, seja através da escrita, dos sonhos, ou do estudo de figuras mitológicas ou bíblicas que expressam o arquétipo através das imagens arquetípicas. Jung escreve que:
“O ato principal do herói é vencer o monstro da escuridão: a vitória esperada da consciência sobre o inconsciente.” Carl Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
O mesmo acontece, por exemplo, com a imagem arquetípica da Sereia ou da Afrodite. A pessoa tenta se tornar mais sedutora e exercer um poder magnético sobre os homens. Mas tudo o que a pessoa consegue é perder a capacidade de se enxergar como um sujeito pleno, tornando-se escrava do olhar alheio.
Isso porque a Sereia e a Afrodite são imagens arquetípicas e, portanto, não podem ser ativadas, mas elaboradas depois de uma experiência concreta que remetem a essas imagens arquetípicas. A terapeuta junguiana Marie-Louise von Franz explica, em “O Feminino nos Contos de Fada”, que “imagens como a da sereia revelam o dilema entre o desejo consciente e as forças inconscientes que querem nos puxar para um mergulho sem volta.”
Ainda dentro da discussão sobre arquétipos mal interpretados, é impossível não mencionar o caso popular do chamado “arquétipo da Cleópatra”. Muitas correntes modernas de autoajuda afirmam que é possível “ativar o arquétipo da Cleópatra” para se tornar mais sedutora, poderosa e magnética. No entanto, essa ideia, além de superficial, revela um grave equívoco conceitual.
Primeiramente, Cleópatra foi uma figura histórica real, uma rainha egípcia que viveu no século I a.C. Jung deixou claro que arquétipos não são pessoas históricas específicas. Eles são estruturas universais da psique humana, não biografias individuais. Marie-Louise von Franz, ao explicar sobre imagens arquetípicas em “A Interpretação dos Contos de Fada”, enfatiza que “arquétipos não são figuras históricas nem pessoais. São padrões eternos que se manifestam através de incontáveis rostos e histórias ao longo do tempo.”
A tentativa moderna de “ativar o arquétipo da Cleópatra” é, portanto, uma mistura inadequada entre história, mitologia e marketing de sedução, totalmente desconectada da profundidade simbólica que Jung propôs.
Do ponto de vista junguiano, se queremos trabalhar com as imagens arquetípicas arquétipo da Soberana ou da Amante em nós, por exemplo, pois todos nós temos instintos de dominação, de poder e controle, devemos fazê-lo através da reflexão simbólica e do autoconhecimento, observando os padrões que acontecem nas nossas vidas, buscando imagens e histórias semelhantes a esses padrões, e não através da emulação de uma personagem histórica.
A terapia, inclusive pode te ajudar e muito a perceber esses padrões que fazem você muitas vezes se agarrar ao passado e repetir, inconscientemente, os comportamentos destrutivos.
Conclusão
Então, se não podemos “ativar” arquétipos à vontade, o que podemos fazer?
Podemos, sim, trabalhar com a manifestação dos arquétipos — com as imagens que surgem em nossos sonhos, em nossos impulsos, em nossos padrões emocionais.
Podemos fazer isso de várias maneiras,
- seja observando e anotando os nossos sonhos, para buscar referências e comparações com história e mitos.
- Seja trabalhando com símbolos de forma criativa, através da escrita livre, da arte ou da música.
- Ou refletindo criticamente sobre nossos padrões de comportamento: evitando a identificação cega com qualquer imagem.
O verdadeiro trabalho com arquétipos é um processo de escuta profunda da alma, e não uma técnica de manipulação.
Arquétipos não são personagens para vestir como máscaras. Eles são forças invisíveis que estruturam nosso comportamento e nossa história.
Compreender sua natureza é dar um passo imenso na jornada de individuação — o caminho de se tornar aquilo que realmente somos.
E se você quiser saber como chegamos até essa história de “ativação de arquétipos”, eu tracei uma linha do tempo, desde as obras de Jung, até os dias atuais, indicando as principais obras e acontecimentos que fizeram com que isso fosse amplamente difundido. Você pode conferir através do link na descrição.
E aí, qual arquétipo você percebeu que está mais presente na sua vida hoje? Deixe nos comentários.
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