Vença o medo diante da vida — superando a mãe devoradora e o pai tirânico | Carl Jung

“Não se vive por um período excessivamente longo no ambiente infantil, no seio da família, sem certo perigo para a saúde mental. A vida chama o indivíduo para a independência, e quem não atender a este chamado, por comodidade e temor infantis, está ameaçado de neurose.”

Carl Jung, Símbolos da Transformação.

Muitas pessoas, por medo de responder às inúmeras perguntas que a vida lhes proporciona, se recusam a crescer e permanecem infantis por muito tempo. Elas, de algum modo, se apegam ao que é chamado de “paraíso infantil”, um estado em que se veem onipotentes e longe dos perigos do mundo real, sendo protegidos pelos pais, senão física, ao menos psicologicamente.

O termo da psicologia junguiana para essa condição é chamado de Puer Aeternus para os homens, e Puella Aeterna para as mulheres, que significa, basicamente, homem-criança e mulher-criança.

A terapeuta junguiana Marie-Louise von Franz descreveu magistralmente essa condição psicológica em seu livro Puer Aeternus, A Luta do Adulto Contra o Paraíso da Infância.

A principal característica de um Puer Aeternus é o medo geral diante da vida, o que faz com que evite tomar para si as responsabilidades que aparecem. Eles tendem a achar que a fantasia é sempre melhor que a realidade, o que leva a se contentarem somente por serem capazes de visualizar as coisas prontas na cabeça, mas não se esforçam em passá-las para a realidade.

Eles acham que não vale a pena se dedicar a algo se não forem ótimos em suas primeiras tentativas. Dessa forma, quando eles obtêm seus primeiros resultados, resolvem abandonar o que estavam fazendo para não perderem a ilusão de grandeza. Muitos até mesmo nem começam porque caem em um perfeccionismo estagnante, o que pode ser confundido com a procrastinação, e assim se veem presos em uma angústia do tentar fazer, mas não conseguir começar.

Isso também pode levar a uma certa crença no futuro, que é a espera por um momento perfeito ou pela coisa perfeita para começarem a agir, como descreve Marie-louise:

“[…] há sempre a fantasia que em algum momento no futuro a ‘coisa certa’ aparecerá. Se essa atitude se prolonga, significa uma constante recusa interior de viver o presente. Seguindo esta neurose, encontramos, frequentemente, um redentor ou um portador do complexo de Messias, que tem o pensamento secreto de algum dia salvar o mundo. Crê que a última palavra em filosofia, ou religião, ou política, ou arte, ou alguma outra coisa, será descoberta por ele. Isso pode progredir para uma megalomania patológica típica, ou então pode haver alguns indícios da ideia de que o tempo dele ‘ainda não chegou’.”

Marie-louise von Franz, Puer Aeternus.

Essa característica do Puer Aeternus em se prender ao mundo das ideias, em geral, os tornam bastante inteligentes. Eles, de fato, possuem um grande interesse por conversas mais profundas e de cunho lógico. Mas o problema é que eles só entendem as coisas intelectualmente. Eles tendem a ser cheios de ideias e sabem o que há de errado com os outros e com a sociedade de forma geral.

Só que quando precisam passar para a ação e tirar a prova da realidade, se sentem incapazes de aplicar todo o seu entendimento sobre os assuntos. Isso faz com que eles entendam até mesmo os seus próprios problemas, mas não conseguem encontrar maneiras de mudar suas atitudes, pois isso, de algum modo, os tirariam do paraíso infantil da onipotência.

Essas são apenas manobras que o Puer Aeternus executa porque não consegue assumir responsabilidade pela própria vida. Como alternativa, eles culpam, ou o “sistema”, ou a incapacidade das outras pessoas de ver o quão incríveis eles são, achando que ninguém os entende de fato.

O resultado disso é o que o médico e terapeuta junguiano Helton Baynes chama de vida provisória, isto é, um estado psicológico no qual uma pessoa adia indefinidamente a realização do seu potencial, vivendo como se estivesse em uma fase transitória, esperando que algum evento externo resolva seus problemas ou dê início à sua ‘verdadeira’ vida. Ele escreve:

“Viver de forma provisória significa delegar ao inconsciente justamente aquelas funções de realização e responsabilidade que são necessárias para traçar um caminho inteligente e eficaz. O espaço que essas funções deveriam ocupar na consciência é preenchido, em vez disso, por inquietação e autojustificação. […] pessoas que vivem uma vida provisória sentem-se constantemente impelidas a explicar a quem quiser ouvir como as circunstâncias de sua vida, sua saúde frágil, sua intensa empatia pelo sofrimento alheio, sua extrema sensibilidade ao ruído, à luz, ao calor, ao frio, ao ambiente psíquico, ao clima, à constipação, à insônia e a outros fatores conspiram para impedi-las de viver uma existência normal e responsável.”

H. G. Baynes, Psicologia Analítica e a Mente Inglesa.

Essa delegação do Puer Aeternus da própria responsabilidade ao inconsciente pode ter suas raízes na sua profunda ligação psicológica com os pais, como Jung escreveu:

“Um indivíduo é infantil porque se libertou insuficientemente ou não se libertou do ambiente da infância, isto é, da adaptação aos pais, razão por que reage perante o mundo como uma criança perante os pais, sempre exigindo amor e recompensa afetiva imediata. […] Ele não é capaz de viver como ele mesmo e encontrar sua própria personalidade.”

Carl Jung, Símbolos da Transformação.

Não há dúvidas de que os pais exercem uma enorme influência na nossa psique e na formação da nossa personalidade, afinal, os pais, sobretudo a mãe, são as primeiras pessoas com quem temos contato no mundo.   

A mãe abre a possibilidade de o filho compreender melhor seus próprios estados emocionais e a maneira como ele constrói os relacionamentos com as outras pessoas.

Já o pai abre espaço para reconhecermos nossos próprios limites e não nos deixar à mercê das tendências instintivas do inconsciente, isto é, ele abre a possibilidade de nos desprendermos da proteção da mãe e desenvolver nosso relacionamento com o mundo externo, fazendo com que o cordão umbilical, uma hora ou outra, seja cortado.

Essa é a estrutura ideal e arquetípica que simboliza as figuras parentais. Mas é claro que a realidade é bem mais complexa do que isso. Pais ausentes ou negligentes podem causar profundas feridas psicológicas nos filhos e muitos demoram para superar ou entender as situações da vida por eles mesmos.

Um exemplo disso é a imagem arquetípica da mãe devoradora e do pai tirânico. A mãe devoradora parte do pressuposto de que o feminino é o aspecto receptivo da natureza, é um espaço vazio onde um conteúdo pode ser despejado; é uma força atrativa que cria e dá forma às coisas. Na tradição oriental, o feminino é yin, a noite, o escuro, que também representa reflexão e compreensão.

O aspecto negativo do feminino, então, é justamente o de devorar, ou seja, o de absorver tudo para si. A mãe devoradora, nesse sentido, é a mãe que sufoca constantemente e sabota todas as tentativas do seu filho de se tornar independente, pois ela não permite que ele se separe dela, absorvendo-o para si. Já o pai tirânico parte do pressuposto de que o masculino é o aspecto penetrante da natureza, aquilo que é voltado para fora, que domina o ambiente. Na tradição oriental, o masculino é yang, o dia, a luz, que representa atividade e conquista.

O aspecto negativo do masculino é justamente a destruição, a tirania, que penetra na realidade e domina todo o território para si, subjugando ou expulsando aqueles que são mais fracos ou que representam uma ameaça. O pai tirânico, nesse aspecto, é o pai que subjuga o filho e o reprime, fazendo ter medo do mundo externo pois o próprio pai representa uma ameaça para ele.

Na mitologia, na literatura mundial e nos contos de fada, temos vários exemplos da imagem arquetípica da mãe devoradora. Uma delas é expressa na deusa hindu Kali; na história bíblica de Jonas que é devorado pela baleia; nas bruxas encontradas nos contos de fada, que simbolizam o medo infantil de uma mãe que não protege, mas devora.

A imagem arquetípica do pai tirânico pode ser encontrada na figura de Cronos na mitologia grega, que devora seus próprios filhos para impedir que um deles o destrone, refletindo o medo do pai tirânico de perder seu poder. Temos o Rei Lear da peça de Shakespeare, que exige lealdade absoluta das filhas e, quando Cordélia, uma das filhas, se recusa a bajulá-lo, ele a expulsa do reino. Outra versão mais recente de um pai tirânico é encontrada na figura do Big Brother, do livro 1984 de George Orwell, que representa o ditador onipresente que exige obediência cega e pune qualquer traço de individualidade dos cidadãos.

No entanto, se tornou lugar comum na psicoterapia falar que os pais são os principais causadores das neuroses nos filhos. E de fato, muitos pais querem que seus filhos vivam a vida que eles nunca tiveram. Dessa forma, eles tentam sabotar, consciente, ou inconscientemente, as conquistas, os relacionamentos e o crescimento dos filhos.

Mas precisamos levar em conta as inúmeras variáveis, internas e externas e predisposições individuais de alguém; como o filho reage aos pais e ao ambiente ao seu redor. Dito isso, muitas das neuroses adquiridas são causadas, não pelos pais reais, mas pela representação das imagens paterna e materna que o filho internalizou na sua psique. Nesse sentido, nossas próprias incapacidades e medos são passadas para a vida adulta e projetamos nossas inseguranças sobre os nossos pais, nos levando a pensar que estamos estagnados na vida por causa deles.

Ao longo do tempo, essa projeção se torna uma manobra para evitar lidar com a realidade e perceber que a luta é interna. Se algo no exterior, no mundo, me afetou, é porque aquilo reverberou internamente, e é muito mais fácil atribuir o problema ao mundo do que tentar olhar para dentro e descobrir que, muitas das inseguranças e frustrações estão ali, impedindo que continuemos a nossa jornada na vida. Jung escreveu que:   

“Quanto mais o indivíduo foge da adaptação tanto mais aumenta seu medo, que então o acomete em todas as oportunidades e em grau cada vez maior, impedindo-o. O medo do mundo e dos homens causa um recuo maior, num círculo vicioso, o que leva ao infantilismo e à volta ‘para dentro da mãe’. A razão disto geralmente é projetada para fora, para circunstâncias externas, ou os pais são responsabilizados. O filho certamente tentará justificar-se através do comportamento da mãe, mas melhor seria desistir dessas tentativas vãs de enganar a si próprio sobre sua incapacidade através da acusação da mãe (ou do pai).”

Carl Jung, Símbolos da Transformação.

Fatores econômicos, é claro, também influenciam muito a saída dos filhos da casa dos pais, o que faz com que, de certa forma, prolonguem suas vidas provisórias. Mas a vida provisória se mostra até mesmo diante de uma vida estável e bem-sucedida. Muitos se sentem extremamente infelizes no trabalho, pois decidiram seguir a carreira que deixaria, não eles, mas os pais felizes.

Contudo, sair da casa dos pais também não é a solução definitiva. Muitos conflitos nos casamentos são apenas identificações com as feridas do passado que não conseguimos abandonar, e se não estivermos conscientes delas, nós as repetiremos em todos os contextos semelhantes ao momento em que adquirimos aquela ferida. A condição do Puer Aeternus é mais uma atitude perante a vida do que as circunstâncias em que ele está inserido.

Com certeza, não é nem um pouco fácil tomar as rédeas da própria vida. A todo momento, vamos tentar delegar essa tarefa para alguém ou para algo. Podemos até mesmo tentar deixar o controle da nossa vida para o tempo, dizendo que existe uma hora certa para tudo. Podemos ter a esperança vã de que a pessoa certa na hora certa vai aparecer e nos livrar da nossa angústia e do nosso desespero.

Podemos dizer que só vamos começar a melhorar quando a oportunidade para mudar aparecer. Mas é claro que isso, no fundo, não deixa de ser uma autossabotagem; que o momento perfeito nunca chegará, mas que cada momento é o melhor momento para se fazer qualquer coisa porque a única escolha que temos é a certa, e ela se torna a certa porque a escolhemos em detrimento de todas as outras.

No fundo, o medo que o Puer Aeternus tem diante da vida é, na verdade, um medo de se comprometer com algo ou com alguém, de assumir para si as responsabilidades de responder às perguntas que a vida lhe oferece. Como explicou Marie-louise von Franz:

“A única situação que [o Puer Aeternus] teme é a de se ligar a qualquer coisa. Há um medo terrível de se prender, de entrar no tempo e no espaço totalmente, e de ser o ser humano específico que ele é. Há sempre o medo de ser pego em uma situação da qual seja impossível sair. Toda definição é para ele um inferno.”

Marie-louise von Franz, Puer Aeternus.

O Puer Aeternus vive pulando de relacionamento em relacionamento, de trabalho em trabalho. Há sempre um defeito, uma mosca na sopa, sempre um “mas” que o impede de se comprometer.

Isso porque, na medida em que decidimos assumir a responsabilidade diante de qualquer coisa, nos tornamos pessoas vulneráveis e aquela imagem ideal de ser humano inabalável e onipotente cai por completo. Mas o Puer Aeternus deve se permitir ser totalmente afetado por essa responsabilidade, pois é aí que está o verdadeiro crescimento.

A maioria das pessoas se sente perdida e sucumbe ao niilismo porque evita esse comprometimento, afinal, uma vez que você se importa com algo, isso imediatamente o coloca naquela posição vulnerável. Saber que algo depende unicamente de você causa medo, causa ansiedade. Mas nós só descobrimos que uma coisa é verdadeiramente significativa quando nos causa ansiedade e angústia ao pensar justamente que podemos perde-la se não assumirmos, e mais ninguém, a responsabilidade por ela.

“O único antídoto para o medo é ir em frente com ele.”

James Hollis, Os Pantanais da Alma.

Nós podemos perceber os indícios de que algo seja realmente significativo para nós. Um desses indícios nós já abordamos, isto é, o de se comprometer com algo ou com alguém. Encontrar no mundo algo que possamos assumir total responsabilidade. Seja por uma pessoa, seja por um trabalho, seja pelo próprio sofrimento diante da vida.

O segundo indício é o chamado estado de fluxo, um termo cunhado pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi. O estado de fluxo é descrito por ele como um estado de absorção completa em uma atividade na qual os desafios ligados a ela nos causam uma ansiedade positiva. Não nos sentimos esgotados e cansados se passarmos horas nos dedicando a essa atividade.

Sentimos uma sensação de bem-estar apesar das dificuldades e das dores atreladas ao processo. Isso confere a atividade um valor significado, pois uma vida significativa não quer dizer uma vida inteiramente feliz e livre de mágoas ou de dores, mas uma vida que, apesar das dores e das mágoas, é boa de ser vivida.

E para que essa vida seja inteiramente nossa, temos que aceitar tanto os benefícios quanto os malefícios que ela carrega. E aí está outro indício de uma vida significativa: ou seja, aceitar a nossa vida por inteiro. Isso inclui os pesares, os momentos de solidão, as perdas e o sofrimento.

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