A solidão vai destruir você…

A solidão vai destruir você — Dostoiévski, Jung e Taxi Driver

“A solidão é perigosa. Nela, o miserável sente toda a sua miséria. O grande espírito, toda a sua grandeza. Isto é: cada um sente-se tal qual é.”

Schopenhauer, Aforismos Para a Sabedoria de Vida.

A nossa vida é rodeada por histórias que já foram contadas nos mínimos detalhes. Cabe a nós tentar encontrar essas narrativas. Mas isso não é muito difícil de ser feito, já que, quando uma narrativa condensa, através de imagens e símbolos, os dramas mais profundos da alma humana, ela é elevada a categoria de um clássico da humanidade.

E não há outra obra que tocou profundamente na alma humana e mostrou nosso pior lado que Memórias do Subsolo, escrito por Fiodor Dostoiévski, há mais de 150 anos. O livro nos mostra a história e os pensamentos de um homem sem nome que ficou conhecido como homem do subsolo, altamente inteligente, culto, letrado e que compreende o mundo com uma clareza brutal. 

Mas essa lucidez não o salva; ao contrário, o condena. Sua mente racional o distancia da vida. Ele ironiza a razão, o progresso, a ciência — mas faz isso porque se sente impotente diante deles.

Ele pensa demais. E esse pensamento constante o paralisa. Pode-se dizer que o homem do subsolo sofre de hiperconsciência, ou consciência hipertrofiada — como ele mesmo descreve —, um estado onde tudo é analisado, questionado e negado — até que nenhuma ação pareça válida.

E ninguém conseguiu reunir todas as características do homem do subsolo melhor do que Travis Bickle, personagem do filme Taxi Driver, do diretor Martin Scorcese, lançado em 1976.

O que esses dois personagens têm em comum é o ressentimento que corroeu suas vidas ao ponto de se acharem um estrangeiro no mundo. Carregaram suas vidas de ódio porque não conseguiram suportar a solidão. Dostoiévski escreveu memórias do Subsolo como um aviso, um aviso para que não nos tornemos um homem do subsolo; para que não nos fechemos à experiência do outro em detrimento de frustrações, traumas e desilusões passadas.

Ao longo do vídeo, vamos identificar os primeiros sinais de colapso de Travis, entender a lógica perversa da autodepreciação e, sobretudo, compreender como a solidão age como um veneno invisível quando contemplada por muito tempo — corroendo a sanidade de dentro pra fora.

A solidão é uma poderosa ferramenta de autoexame. É na solidão que nos conhecemos e nos avaliamos. É através dela que nos tornamos sociáveis e suportáveis aos outros, pois aquele que suporta sua própria companhia não se torna um fardo para as outras pessoas. As grandes obras da humanidade também nasceram na solidão de uma escrivaninha.

No entanto, os sábios e gênios da humanidade sabiam que essa condição, se for prolongada, se torna um veneno ao invés de ser a cura para uma vida com significado.

Foi a partir do livro Memórias do Subsolo, que o termo “subsolo” ganhou um novo significado. O subsolo não é um lugar físico — é uma metáfora psicológica e existencial poderosa. É o espaço simbólico onde o protagonista se esconde, isolado do mundo e de si mesmo, tomado por ressentimento, vergonha, medo e orgulho.

Dostoiévski escreveu Memórias do Subsolo como uma crítica direta ao otimismo racionalista do século XIX — a ideia de que o homem é movido apenas por lógica, progresso e utilidade. O subsolo surge como um protesto contra essa visão mecanicista que dominou a Rússia do seu tempo.

Os intelectuais Russos da época de Dostoiévski acreditavam que, só através da razão e da ciência é que o homem atingiria a verdadeira felicidade plena na terra. Eles acreditavam que, uma vez que o ser humano fosse mapeado, ele não escolheria nada que lhe fizesse mal. Essas ideias se perpetuam até hoje. E o homem do subsolo revela um traço de lucidez em meio a essas teorias dizendo que, a única coisa que nos torna humanos e a capacidade de escolher justamente o que nos faz mal.

Ali, no subsolo, o homem do subsolo afirma seu direito ao erro, ao sofrimento e ao irracional — como uma forma de liberdade. Mas, quando olhamos muito tempo para o abismo, ele, ao olhar de volta para nós, nos seduz e nos faz sentir prazer com nossa própria degradação. O homem do subsolo se tornou vaidoso do seu próprio sofrimento. Ele nega a salvação e a redenção por puro orgulho de viver na sua própria condição humilhante.

Apesar de Travis, em Taxi Driver, tentar um desfecho diferente do homem do subsolo, ambos não conseguiram sair desse lugar. Vamos, então, explorar um pouco mais a solidão de Travis.

Ex-fuzileiro naval, veterano do Vietnã, Travis volta para uma Nova York caótica e decadente da década de 70. Sem rumo, sem amigos, sem identidade definida, ele vira taxista apenas para não divagar e sucumbir aos seus próprios pensamentos, mas que o mantém como um espectador passivo do mundo.

Ele dirige pelas madrugadas como um fantasma urbano. Ele vive o subsolo fisicamente: observa a violência, a prostituição, a corrupção, mas não participa de nada disso. Ele vê — mas não é visto.

Essa sensação de não pertencimento é o gatilho da sua deterioração mental.

Assim como o homem do subsolo, Travis mantém um diário de pensamentos. O diário se torna sua tentativa de não desaparecer completamente — de afirmar que, apesar do silêncio ao seu redor, ele ainda está aqui. O diário é o esforço desesperado de manter a “sanidade”, mas é também o espaço onde sua mente começa a se corromper. Ele não escreve para entender, mas para justificar.

Travis, ao longo do filme, tenta sair do seu isolamento. Ele se aproxima de Betsy, uma mulher elegante e inteligente que trabalha como funcionária de uma campanha política. Quando eles saem pela primeira vez, Betsy percebe a contradição entre o comportamento de Travis e seus pensamentos. Travis está aparentando ser o que não é. Por falta de convívio, sua fala é extravagante e confusa.

A relação dos dois começa a declinar quando Travis convida Betsy para assistir um filme pornô — sabotando a relação logo de início.

Esse é um ponto crucial que a solidão prolongada pode nos causar. Travis se tornou abstraído e esquisito, ele tropeça no real para cair em sua própria imaginação. Seu senso de alteridade foi destruído por falta de contato com o outro.

O problema não é falta de interesse, todo solitário tem um grande interesse pelo outro; o problema é a incapacidade de ler as emoções sociais. Ele não sabe como se conectar. E quando se frustra, transforma o desejo em ódio.

E já que esse contato com o mundo é comprometido, o que sobra para Travis são suas projeções. Entrando na psicologia junguiana, Betsy representa para Travis a imagem da anima perfeita, isto é, o feminino interior do homem: Travis a enxerga como pura, bela, inteligente, quase inacessível.

Ele, de início, a observa de longe, como se ela fosse um ser celestial, uma deusa. Isso é um traço claro da anima projetada: ele não vê a Betsy real, mas uma fantasia que criou. Ele não está apaixonado pela mulher que está vendo na sua frente, mas, sim, pela anima projetada em Betsy. Não é à toa o nome da personagem. Betsy é uma forma carinhosa do nome Elizabeth, que significa “Consagrada a Deus”. Betsy representa a ordem, a elegância, a vida “limpa”, o mundo que Travis deseja pertencer, mas não consegue acessar. Ela é o símbolo da normalidade e da integração social — tudo o que ele não tem.

Ao se aproximar dela, ele a coloca num pedestal — e, por isso mesmo, não consegue lidar com a realidade do encontro humano. Quando ela recusa continuar a relação (após ele levá-la ao cinema pornô), Travis não entende o que aconteceu. Ele sente que foi traído por uma deusa. E como todo homem que projeta sua anima externamente, quando ela o rejeita, ele a transforma em inimiga.

Isso mostra como sua capacidade de se conectar emocionalmente está profundamente infantilizada e distorcida: ele não enxerga mulheres como pessoas, mas como símbolos.

Travis raramente chora, raramente se abre, raramente demonstra ternura autêntica. Sua anima está soterrada sob camadas de isolamento, ressentimento e masculinidade defensiva. E quanto mais a anima é reprimida, mais ela é projetada sobre as mulheres do mundo exterior. Quanto mais ela é reprimida, mais o homem duvida de si mesmo e mais incapaz se sente das coisas que tenta fazer.

Mas durante o filme, uma reviravolta acontece: Ao se sentir totalmente inútil, Travis canaliza sua angústia para a ação: ele decide “salvar” Iris, uma prostituta adolescente que encontrou pela primeira vez quando ela tentou fugir do seu cafetão. Mas esse “resgate” que Travis tenta fazer é um delírio messiânico. Ele se arma, ensaia a cena no espelho, e parte para a sua redenção, matando todos e salvando ela no final.

O nome da personagem também não é uma coincidência. Na mitologia grega, Íris é a deusa do arco-íris e mensageira de Hera. Ela é a ponte entre o céu e a terra, entre os deuses e os humanos — um elo entre mundos opostos. Em Taxi Driver, ela é a ponte entre o mundo interno devastado de Travis e a realidade externa. Um canal entre o inferno urbano e a possibilidade de luz e de redenção.

“Iris” também é a parte colorida do olho — o canal por onde vemos e somos vistos. Em termos psicológicos: ela é a única personagem que realmente olha para Travis sem julgamento, mesmo sem compreendê-lo completamente. A presença dela permite a Travis projetar sua necessidade de ser visto, reconhecido e, de alguma forma, amado. Ou seja, Iris é a testemunha silenciosa de sua loucura — mas também da parte dele que ainda busca conexão.

[Liza, homem do subsolo]

Travis não vive na realidade, mas em seus próprios pensamentos. Tudo para ele é um símbolo. Iris, nesse quesito, também não é uma pessoa para Travis, ela representa um outro aspecto da anima: a inocência perdida, a infância abandonada, a alma ferida que Travis deseja resgatar. Ao tentar “salvá-la”, Travis está inconscientemente tentando salvar a si mesmo. Mas essa salvação é violenta e forçada. Ele não conversa com Iris sobre seus sentimentos ou escolhas — ele decide o que é melhor para ela.

Isso mostra que sua anima não foi integrada; ele não consegue dialogar com o feminino dentro de si — ele tenta controlar, resgatar e purificar com base na raiva e no heroísmo distorcido.

Há um aspecto dentro da psicologia junguiana desenvolvida pelo terapeuta Jamis Hollis chamado de o Outro Mágico. O Outro Mágico é aquela figura que carregamos na fantasia — alguém que, se nos aceitar, nos amar, ou for salvo por nós, nos fará finalmente sentirmo-nos inteiros.

Não é a pessoa real que amamos ou salvamos. É o que projetamos nela: a cura para a nossa própria alma ferida.

Quando Travis decide salvar Iris, ele não está simplesmente tentando tirar uma jovem da prostituição. Ele está tentando dar sentido à sua própria vida fragmentada, atribuindo a si um papel de herói redentor. Ela se tornou o Outro Mágico dele.

James Hollis explica que o Outro Mágico é uma armadilha: uma forma de evitar olhar para dentro.

Ao invés de enfrentar seus traumas, seu desamparo, sua necessidade de cura interna, o indivíduo transfere tudo isso para uma figura externa. Essa pessoa — geralmente mais frágil ou idealizada — se torna o recipiente de uma expectativa impossível.

O perigo é que ninguém pode carregar esse peso simbólico para sempre.

Quando o Outro Mágico nos decepciona, ou quando percebemos que ele é humano e imperfeito, o que sentimos não é decepção comum — é colapso existencial.

Por sorte, Iris aceita a “salvação” que Travis oferece, mas isso não resolve o vazio dele. Ele não se cura. Ele só se convence, por um breve instante, de que é alguém. Nenhuma salvação externa cura a ferida interna. Ninguém vai nos salvar do nosso próprio sofrimento. Essa é uma tarefa que temos que fazer sozinhos. Não aceitar essa ironia da vida é se remoer em ressentimentos, sempre encontrando bodes expiatórios para aliviar o fardo daquilo que se encontra dentro de nós.

A violência de Travis é o desfecho de sua solidão não escutada, de sua dor não nomeada, de sua raiva não elaborada.

Travis Bickle é um alerta. Ele não é apenas um personagem — ele é um espelho sombrio de tudo que pode se romper quando alguém passa tempo demais no silêncio, na raiva contida e no abandono emocional.

Ele é a encarnação do homem do subsolo de Dostoiévski, o ressentido por excelência. No entanto, há alguns traços em Travis que o faz transcender o homem do subsolo.

Enquanto o homem do subsolo recusa a redenção por orgulho, por ironia, por se considerar indigno ou acima disso, Travis busca desesperadamente um papel que lhe dê valor. Ele quer ser útil, visto, reconhecido — mesmo que para isso precise se tornar um justiceiro. Sua trajetória é trágica porque ele busca sentido onde não há, e age de forma cega, guiado por uma bússola moral corrompida. Já o homem do subsolo pensa que o sentido é frágil e, por isso, o despreza. Ele prefere viver no escuro da própria mente do que se arriscar na exposição emocional do mundo.

Travis é muito mais um homem de ação do que alguém que possui uma consciência hipertrofiada. O homem do subsolo teria inveja de Travis, já que, no livro, ele diz que sente inveja dos homens de ação, pois ele mesmo não consegue sair do lugar devido às suas ruminações.

No entanto, o que faz com que Travis seja a evolução trágica do arquétipo do homem do subsolo é sua estranha lucidez. Ambos percebem a hipocrisia da sociedade, a superficialidade das relações humanas, a crueldade disfarçada de civilidade. Ambos têm a sensação de que o mundo está apodrecido — e que eles são os únicos a enxergar isso. Mas essa “lucidez” é também um fardo: os empurra para o ressentimento, a amargura e, por fim, para o colapso. Eles odeiam serem quem são. O feminino interior, em vez de curá-los, os ameaça com a possibilidade de exposição, vulnerabilidade e amor — e eles não sabem lidar com isso.

No fundo, ambos são homens que não suportam a própria impotência diante do vazio. O homem do subsolo lida com isso se escondendo; Travis, explodindo. Mas o motor é o mesmo: uma ferida psíquica não tratada, uma anima despedaçada, uma identidade que se recusa a aceitar sua fragilidade.

Ambos gritam, cada um à sua maneira, a mesma dor:

“Estou sozinho demais para continuar sendo humano.”

No fundo, a redenção dos dois passa por um ponto comum: aceitar que não serão curados pela grandiosidade — mas pela simplicidade do encontro humano. Uma conversa sincera. Um gesto de compaixão. Um momento de silêncio compartilhado sem desprezo.

Mas para isso, ambos precisariam fazer o que mais temem: descer ainda mais fundo — não no subsolo da raiva ou da culpa — mas no território escuro da própria alma, do feminino ferido dentro deles, onde se descobre que, por trás da máscara, há só um menino com medo de ser rejeitado. E talvez aí, pela primeira vez, pudessem encontrar a redenção.

 

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