Quando você vai perceber que está desperdiçando sua vida? — A Morte de Ivan Ilitch
Transcrição do vídeo
“Quem dera não fosse tão próximo da morte que buscássemos uma vida feliz.”
Sêneca, Sobre a Brevidade da Vida.
Os colegas de Ivan Ilitch recebem a notícia que ele morreu. A reação dos colegas é marcada por indiferença e até um certo alívio, pois a morte dele pode abrir uma vaga no tribunal de justiça, o local onde Ivan Ilitch trabalhava, o que gera a oportunidade de uma promoção. Em casa, sua esposa, Praskóvia, vê a morte do marido mais como um inconveniente do que como uma perda, e se preocupa principalmente com as pensões e compensações que poderá receber.
Durante sua juventude, Ivan Ilitch sempre desejou obter poder e status social. Ele era alguém que valorizava a aparência e fazia tudo para corresponder às expectativas da sociedade. Conseguiu um emprego de funcionário público no tribunal da sua cidade apenas para sentir o poder de ter um cargo renomado. Ele casou-se mais por conveniência do que por amor, e sua relação com a esposa se torna, desde então, cada vez mais fria e distante. A busca por status o levou a perseguir posições cada vez mais altas no serviço público.
Depois de um tempo, Ivan Ilitch recebeu uma promoção para um cargo melhor, o que o levou a se mudar para uma nova cidade. E durante a reforma de sua nova casa, ele se sente orgulhoso e satisfeito, acreditando que finalmente alcançou uma vida confortável e respeitável. No entanto, ele sofre um pequeno acidente durante a decoração, bate a lateral da barriga na quina de um móvel, o que eventualmente desencadeia uma doença dolorosa e persistente. Depois desse evento, a dor de Ivan Ilitch aumentou, e ele começou a perceber a gravidade de sua condição.
Sua relação com a esposa e os filhos pioraram ainda mais, pois ele percebeu que ninguém realmente entendeu seu sofrimento. Ele tentou manter a dignidade e seguir com sua rotina, mas a doença o corroía física e emocionalmente.
Depois de alguns dias, Ivan Ilitch começou a se questionar sobre a própria vida e sobre o sentido de tudo o que ele fez até então. Ele se sentia traído pela vida que sempre seguiu à risca, acreditando que, ao seguir as normas sociais e buscar uma vida “correta”, evitaria o sofrimento. Sua doença o força a confrontar a mortalidade e a considerar se viveu de forma autêntica.
Ele sente que todos ao seu redor, incluindo sua família, veem sua condição como um incômodo. Apenas o criado, Gerássim, mostrava empatia e o ajudava com sinceridade, proporcionando algum alívio. Gerássim representa uma vida simples e autêntica, em contraste com a artificialidade que Ivan sempre buscou.
Ivan Ilitch se desesperou ao pensar que sua vida não teve um verdadeiro valor ou significado. Esse questionamento profundo o levou a revisitar suas escolhas e perceber que viveu de acordo com expectativas superficiais, o que intensificava ainda mais seu sofrimento.
Finalmente, em seu leito de morte, aceitou sua condição; encontra um sentido no sofrimento e experimenta uma espécie de alívio espiritual. Ele percebe que talvez exista algo além da vida física e, então, fecha os olhos para sempre e se entrega a uma sensação de paz.
Essa história que eu acabei de narrar é um conto do escritor russo Tolstói, publicado pela primeira vez em 1886, e nos mostra que, quando estamos excessivamente identificados com a persona, corremos o risco de perder o contato com quem realmente somos. A persona é o que mostramos ao mundo — é a imagem socialmente aceitável de nós mesmos. De acordo com Jung, a persona
“é uma espécie de máscara, projetada parcialmente para ocultar a verdadeira natureza da pessoa (um processo chamado de repressão) e parcialmente para atender as demandas da sociedade.”
Carl Jung, Aion: Estudo do Si-mesmo.
No caso de Ivan Ilitch, ele construiu uma persona que representava o homem ideal de sua época: respeitável, bem-sucedido, educado, e principalmente, socialmente aceito. Desde a juventude, ele buscou satisfazer as expectativas externas, acreditando que uma vida dentro dos moldes da sociedade o protegeria do sofrimento e lhe garantiria felicidade e reconhecimento. Sua carreira e seu casamento, por exemplo, foram escolhas baseadas nessa busca por validação social, mais do que em sua própria satisfação pessoal ou autoconhecimento.
No entanto, como Jung observa,
“Identificar-se com a persona é como confundir-se com a própria máscara.”
Carl Jung, Aion: Estudo do Si-mesmo.
A doença que acomete Ivan Ilitch é justamente o catalisador que destrói sua persona, revelando as fissuras de uma vida baseada na aprovação dos outros e, no fundo, vazia de sentido. À medida que a doença progride, Ivan começa a perceber a falsidade das relações ao seu redor. Sua esposa e colegas de trabalho, por exemplo, mostram-se mais preocupados com questões práticas e financeiras do que com seu sofrimento.
A persona que ele construiu, de um juiz respeitável e “bem-sucedido”, torna-se insustentável em face de uma morte iminente. Esse momento representa o que Jung chamaria de uma “crise da persona”, em que o indivíduo se vê obrigado a confrontar as verdades reprimidas e não vividas de sua própria vida.
O sofrimento de Ivan Ilitch é, na verdade, o retorno de tudo o que ele nunca vivenciou — seus sentimentos autênticos, sua vulnerabilidade e até mesmo o amor verdadeiro, que ele negligenciou ao longo da vida. Em certo momento, Ivan Ilitch lamenta não apenas a dor física, mas a sensação de que sua vida inteira foi um erro. Foi somente próximo da morte que a vida se mostrou pertinente; que se mostrou digna de ser examinada. Embora todos tenham a consciência de que um dia vão morrer, este é um fato sobre o qual poucos desejam se debruçar.
É comum pensar que devemos viver a vida e não se importar com a morte, pelo fato dela ser inevitável. Mas praticamente todos os pensadores, filósofos e psicólogos, pensaram profundamente e escreveram sobre a morte. O que acontece é que, de maneira paradoxal, pensar sobre a morte que se aproxima pode melhorar a vida. E não teve nenhum filósofo que conseguiu se debruçar com mais eloquência sobre a morte que Sócrates, considerado o verdadeiro arquétipo da filosofia. Sócrates aborda a morte com serenidade, desafiando o medo que ela costuma provocar.
Um dos textos mais emblemáticos da filosofia ocidental, O Apologia de Sócrates, escrito por Platão, narra a defesa de Sócrates diante do tribunal ateniense, onde é acusado de corromper os jovens e de não acreditar nos deuses da cidade. Em sua elegante defesa, Sócrates não apenas refuta as acusações, mas também explora questões universais como a verdade, a justiça e a morte, oferecendo uma visão filosófica sobre a mortalidade e o propósito da vida. Para Sócrates, viver sem questionar o sentido da vida é como estar espiritualmente morto.
Sócrates não teme a morte porque acredita que ela é uma parte fundamental da vida e do processo de busca pela verdade, um valor que ele coloca acima de tudo. Ele afirma que ninguém sabe realmente o que acontece após a morte, e que temê-la é uma forma de pretensão, pois temer a morte não é senão considerar-se sábio mas sem o ser de fato, pois é considerar saber o que não se sabe. Ele sugere que, se a morte for uma transição para outro estado ou dimensão, pode ser uma oportunidade de continuar buscando a verdade em um outro plano de existência.
Ao interpretar a morte dessa forma, Sócrates redefine o que significa morrer, transformando-a de um fim temido para uma possibilidade de transcendência. No tribunal, mesmo sendo acusado injustamente, ele aceita sua condenação sem rancor e acredita que a justiça transcende as leis humanas. Ele argumenta que a morte de um justo não é um mal, porque o verdadeiro mal é agir contra a virtude. Em uma de suas falas mais memoráveis, ele declara:
“Não é difícil evitar a morte; é muito mais difícil evitar a maldade, pois ela corre mais depressa que a morte.”
Platão, Apologia de Sócrates.
Essa frase revela a visão de Sócrates de que viver com integridade é mais importante do que preservar a vida a qualquer custo.
Mas, infelizmente, para muitas pessoas, o verdadeiro exame da vida acontece quando elas precisam achar tempo para morrer, pois a morte desfaz qualquer compromisso que possam ter com a vida. A vida não recua quando começa, nós é que sempre recuamos diante dela; diante de cada escolha que ela nos impõe; de cada possibilidade de mudança que ela oferece; de cada responsabilidade que ela quer que a gente agarre para que possamos encontrar um significado para ela.
Para se desenvolver em um nível individual, a exploração do desconhecido junto com as maneiras de interagir com o mundo são uma necessidade, e isso envolve correr riscos e enfrentar o perigo. E esse é o preço que a pessoa deve estar disposta a pagar se quiser ser quem ela é: se defrontar justamente com aquilo que ela mais teme.
A sombra, outro conceito de Jung, representa todos esses aspectos da nossa personalidade que reprimimos, geralmente por serem incompatíveis com a nossa persona. Ivan Ilitch, com sua vida de formalidades, reprimiu seus anseios mais profundos e seu potencial de autenticidade. Foi a dor física que trouxe à tona seu sofrimento psíquico, e quando precisou de tempo para se examinar e confrontar sua sombra, já era tarde demais.
Precisamos olhar para o futuro incerto não apenas como uma fonte de ameaças, mas também de esperança e oportunidade, e precisamos ver a tomada de riscos como justificada quando está em defesa aos valores que estimamos ou à busca de objetivos valiosos. Ao rebaixar a segurança ao seu devido lugar como um valor secundário, deixaremos de viver como um peão indefeso que deve ser mimado da juventude à velhice por uma figura de autoridade e recuperaremos a capacidade de moldar o curso de nossa vida.
Muitas vezes sabemos que precisamos mudar, parar de desperdiçar nosso tempo e concentrar nossos esforços em outro lugar, mas adiamos e justificamos nossos atrasos com a desculpa de que no futuro as condições serão mais ideais. Como escreveu Sêneca:
“A vida não é breve, nós é que desperdiçamos muito”.
Sêneca, Sobre a Brevidade da Vida.
Muitas pessoas só conseguem entregar projetos e realizar tarefas se foram tomadas por um certo senso de urgência. Nós podemos trazes esse senso de urgência para as nossas vidas também. Esse reconhecimento pode nos ajudar a perceber que com a morte sempre se aproximando, apesar de termos um longo caminho pela frente, a existência não pode ser adiada e que esperar por condições futuras ideais pode ser perda de tempo.
Contemplar a morte periodicamente também pode melhorar nossos relacionamentos com os outros. Se estivermos mais conscientes de nossa própria mortalidade, também nos tornaremos mais conscientes de que as vidas de todos com quem nos importamos pendem por uma linha igualmente fina.
É claro que não devemos exagerar. Contemplar o abismo da morte o tempo inteiro é como olhar por muito tempo para o sol. Ambos são componentes integrais da vida, mas olhar para qualquer um por muito tempo só leva à destruição.
Portanto, a morte, assim como a vida, é uma parte do autoconhecimento. É um chamado para descobrir quem realmente somos, antes que o tempo nos faça essa pergunta final. Porque, no fim das contas, o que temos não é medo da morte, mas de não termos vivido de verdade a nossa vida.
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