Por que a busca por prazer e poder vai te tornar miserável — Sócrates

Tá vendo essa ave aí. Chame-se tarambola, também conhecida como maçarico. É uma ave que basicamente come e caga sem parar.

Mas o que isso tem a ver com o vídeo? É porque é assim que Sócrates enxerga a vida daqueles que buscam satisfazer todos os seus prazeres sem nenhum limite. Ele diz que aquele que vive correndo atrás de desejos tem a alma furada, pois quanto mais tenta preenche-la, mais ela se esvazia, saindo pelos buracos. E quando mais se tentar colocar pra dentro da alma, maior o buraco precisa ser para despejar tudo o que entrou. Sim, Sócrates realmente disse isso em um dialogo:

“Cálicles:  A vida agradável consiste na maior quantidade possível de influxo.
Sócrates:  Ora, sendo o influxo grande não será também necessário ser grande o escape para o fluxo de saída?
Cálicles: Exato.
Sócrates: Então, o que descreves é a vida de uma tarambola.”

Quando o prazer vira critério absoluto, viramos recipientes rachados que jamais se enche, tal como a tarambola.

Esse trecho é parte de um diálogo socrático chamado Górgias, escrito por Platão, o discípulo mais famoso de Sócrates, há mais de 2400 anos. Mas nele, não vamos apenas encontrar as críticas de Sócrates aos desmedidos, mas também sobre o poder que a palavras tem sobre nós.

Por que continuamos fascinados por discursos sedutores mesmo quando, lá no fundo, desconfiamos de sua honestidade? Até que ponto a arte de falar bem pode ser usada para mascarar o vazio moral de quem fala? E — talvez a pergunta mais importante de todas — como é que esse jogo retórico molda o nosso próprio comportamento, nos levando a acreditar que uma vida desregrada, intemperante e injusta não nos causariam problemas?

Todas essas questões foram magistralmente nesse diálogo. Eu já recomendei diversas vezes esse diálogo no canal, mas nunca havia comentado profundamente sobre ele. Então, chegou a hora!

E não estou brincando quando digo que uma boa lida nesse diálogo socrático vai te prevenir de uma porrada de falácias e sofismas modernos. E os diálogos socráticos como um todo nos ajudam não só a pensar filosoficamente mas a formar raciocínios mais fundamentados. Isso porque Platão vai nos conduzido através dos confrontos entre Sócrates e seus interlocutores, que na maioria das vezes carregam o nome do diálogo. Como o interlocutor principal desse diálogo é o Górgias, então este é também o nome do diálogo.

Enfim, fique comigo até o final do vídeo!

Capítulo 1 — Por que Platão escolhe Górgias para falar sobre injustiça?

Na Atenas do 4 a.C., quem dominava a palavra moldava leis, reputações e guerras. É nesse cenário que Górgias, famoso sofista de sua época, se apresenta à Sócrates nesse diálogo escrito por Platão como mestre um da persuasão — isto é, a habilidade que promete transformar qualquer um em um orador que consegue encantar multidões inteiras. Platão escolhe Górgias para debater com Sócrates nesse diálogo porque ele encarna o fascínio e o perigo que as palavras podem causar nas pessoas. Logo no início do diálogo, temos uma noção do que Górgias é capaz de fazer:

“Sócrates: És capaz, disseste, de fazer orador de quem se dispuser a seguir tuas lições?”
“Górgias: Sou.”
“Sócrates: E de deixá-lo apto, sobre qualquer assunto, a conquistar as multidões, não por meio da instrução, mas por força da persuasão?”
“Górgias: Perfeitamente.”

Repare nos termos: “sobre qualquer assunto”, “multidões”, “força da persuasão”. A retórica, nesse sentido, aparece como um poder transversal, mais amplo do que o conhecimento técnico. Para dar certo, o orador precisa discursar a um público ignorante sobre o assunto em questão, pois se o público fosse instruído no assunto, certamente saberiam que se trata de um golpe. É nesse sentido que um orador pode ter mais capacidade persuasiva do que um médico, por exemplo, como é mostrado no próximo trecho do diálogo:

“Sócrates: Chegaste mesmo a afirmar que, em matéria de saúde, o orador tem maior força convincente do que o médico?
Górgias: Sim, disse; porém diante das multidões.
Sócrates: Diante das multidões, quer dizer: diante de ignorantes? Pois é de presumir que diante de entendidos não sejas mais persuasivo do que o médico.
Górgias: Exato.”

Platão faz aqui um movimento estratégico: ele desloca a discussão do “falar bem” para a relação entre ignorância pública e aparência de saber. Se o sucesso da retórica depende de um auditório que não sabe, então o orador pode vencer mesmo sem conhecer a verdade — basta parecer que sabe. Sócrates conduz Górgias a admitir essa consequência da seguinte forma:

“Sócrates: Nesse caso, o ignorante tem maior poder de persuasão junto de ignorantes do que o sábio, se o orador for mais convincente do que o médico. […] E com relação às demais artes, o orador e a retórica não se encontram nas mesmas condições? Ele não terá necessidade de saber como as coisas são em si mesmas e bastará recorrer a algum artifício para parecer aos ignorantes que em tudo é mais entendido do que os sábios.”

Essa lógica explica por que Górgias incomoda Sócrates: a retórica, tal como vendida por ele, pode passar por cima do saber, do conhecimento e da opinião verdadeira e, ainda assim, governar as decisões coletivas. A retórica de Górgias está presente até hoje na política. Em vez do exame sério dos fatos, o que temos nos debates presidenciais e candidaturas políticas são slogans memorizáveis e frases de efeito que “vencem” simplesmente pela comoção. Muitos que não dominam o saber técnico — como economia, saúde pública, segurança, educação — mas dominam a lábia prosperam diante das “multidões”, exatamente como Górgias descreve: porque falam com mais autoridade aparente do que os especialistas justamente porque convertem complexidade em histórias simples e promessas instantâneas. No diálogo, o próprio Górgias se gaba do alcance político da sua oratória — ela “vence” nos conselhos que definem obras públicas, estratégias e escolhas.

“Górgias: Refiro-me à capacidade de persuadir mediante discursos juízes nos tribunais, políticos nas reuniões do Conselho, o povo na Assembleia ou um auditório em qualquer outra reunião que possa realizar-se para tratar de assuntos públicos. E por força dessa capacidade terás o médico e o instrutor de ginástica como teus escravos.”

Até este momento do diálogo, percebemos o motivo de Platão ter escolhido Górgias: ele é o emblema de um poder que pode dispensar a verdade para conquistar crenças; que pode triunfar em assembleias mesmo quando não é o mais competente; que pode seduzir a cidade e confundir convencimento com conhecimento, justamente porque discursa diante dos ignorantes no assunto.

E no nosso tempo, aqueles vendedores de cursos “definitivos” e certos coaches da internet funcionam como discípulos de Górgias: prometem o poder discursivo transversal — pautado na produtividade, nas finanças, na sedução, na espiritualidade, na saúde — “sobre qualquer assunto” e para as “multidões”, trocando conhecimento por técnica de persuasão.

Então, ao trazer Górgias para o centro do diálogo, Platão vai preparando o terreno para mostrar a anatomia psicológica da injustiça, da intemperança e da tirania: quando a palavra se separa da verdade, abre-se a porta para a perversidade que se mascara de sucesso — e é por isso que, muitas vezes, parece que os “injustos” sempre se saem vitoriosos.

Capítulo 2 — Quando a eloquência vira arma: Sócrates confronta Polo

Outro interlocutor que aparece no diálogo é um jovem chamado Polo, discípulo de Górgias. Polo representa aquele jovem ambicioso que exibe a fascinação imediata pelo poder e pela eficácia da palavra. Para Polo, falar bem é igual a vencer, mesmo que aquilo que está sendo dito não seja verdade. Sócrates, então, muda o ritmo da conversa.

Ele obriga Polo a abandonar os “discursos extensos e prolixos” e aceitar o método pergunta–resposta, onde enunciar é assumir compromisso com o que se diz. O objetivo é desmontar a crença de que o efeito do discurso basta para que aquilo que se diz seja verdadeiro. Sócrates então, faz algo engraçado, mas ao mesmo tempo sagaz: ele compara a retórica com a culinária e diz que ela é uma habilidade que fabrica prazer, não conhecimento — uma habilidade que massageia expectativas da plateia em vez de cuidar da alma e da verdade; em outras palavras, é o que ele chama de adulação.

“Sócrates: É uma espécie de habilidade experimentada. […] Para produzir prazer e satisfação. […] O que me parece, é que se trata de uma prática que nada tem de arte […]Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação.”

É com Polo que Sócrates, então, vai debater o tema sobre o poder: o que é, de fato, poder? Polo diz que são os oradores e tiranos quem detém o poder absoluto — pois são eles que “persuadem, matam, exilam e agem a seu bel-prazer”. Ele acha que fazer o que quiser é a mais verdadeira prova de poder e felicidade. Sócrates faz justamente a inversão filosófica disso: poder não é conseguir fazer qualquer coisa, mas fazer o que realmente queremos segundo a razão e o bem. Quem age sem razão não realiza sua vontade, mas executa apenas o que “lhe parece melhor”. Esse é o cerne da moral socrática e que foi herdada pelo ocidente: quanto mais se é guiado pelos impulsos, menos poder se tem.

“Sócrates: Afirmo-te, portanto, Polo, que os oradores e os tiranos são os que menos podem nas cidades, pois não fazem o que querem, mas apenas o que se lhes afigura melhor […] E achas que seja um bem fazer o que lhe parece ser o melhor, quando está privado da razão?”

Para tornar essa distinção concreta, Sócrates pede para Polo imaginar uma cena pública: um homem no meio de uma feira na cidade com um punhal debaixo do manto, que decide fazer uso do seu suposto “poder”, apunhalando as pessoas, incendiando navios e destruindo tudo. A moral que Sócrates tentar passar com essa imagem é a de que o poder bruto não é liberdade, é deformação da vontade — cedo ou tarde trará punição e prejuízo ao detrator.

“Sócrates: Imaginemos que com um punhal debaixo do braço eu te dissesse: Polo, neste momento adquiri um poder maravilhoso. Se eu achar que deve morrer imediatamente qualquer destes homens, na mesma hora ficará com a cabeça quebrada, tão grande é o meu poder na cidade […] Porém, dispor de um grande poder não é fazer cada um o que lhe apraz.”

Polo tenta retrucar esse argumento dizendo que os tiranos que já passaram pela Grécia foram invejados, justamente por terem feito aquilo que queriam. Mas é aí que Sócrates vai ao centro moral do diálogo e formula o princípio que ofende o nosso senso comum e revela a moral que o ocidente inteiro legou: o pior mal não é sofrer uma injustiça — mas cometê-la.

O maior mal não é perder bens, status ou até sofrer dor; é corromper o próprio caráter, ou a própria alma. Injustiça é desordem interna — é falta de medida, de temperança e de justiça. Sofrer uma injustiça atinge o corpo ou as circunstâncias, portanto, pode ser reparado; mas cometer injustiça deforma quem você é, em outras palavras, o caráter, ou a alma.

“Sócrates: Não devemos invejar os infelizes, porém compadecermo-nos deles. […] É que o maior dos males é cometer alguma injustiça […] se me visse obrigado a optar entre praticar alguma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la.”

Para rebater Sócrates, Polo comenta sobre um tirano da macedônia chamado Arquelau, que matou seus parentes e tomou o trono da cidade como “prova viva” de que a injustiça traz felicidade. O tirano parece poderoso porque consegue “fazer o que quer”. Mas Sócrates inverte isso: quem age sem razão e sem visar o bem não faz o que quer de verdade, só o que lhe parece ser bom; ele age no impulso. Logo, o injusto é menos senhor de si mesmo – ele é o verdadeiro escravo.

“Sócrates: Considero feliz quem é honesto e bom, o desonesto e mau é infeliz.
Pólo: Nesse caso, Arquelau é infeliz?
Sócrates: Sim, amigo; se for injusto.”

E daqui nasce a terapêutica socrática: Justiça e temperança funcionam como “saúde” para a alma. Quando alguém pratica injustiça, adoece interiormente. Por isso Sócrates também diz que ser punido é melhor do que ficar impune: a pena justa age como remédio que “cauteriza” a doença moral; quando o sujeito se mantém impune, isso só mantém e agrava ainda mais a infecção.  

O que o político adulador chama de “desvantagem” — caso seja julgado e punido — Sócrates, ao contrário, chama de tratamento que devolve medida e prudência. O raciocínio inverte a promessa da retórica como “escudo”: o verdadeiro favor que a palavra pode fazer à cidade é conduzir os culpados ao juiz, e não livrá-los dele.

“Sócrates: A economia livra da pobreza; a medicina, da doença; e o castigo, da intemperança e da injustiça […] o castigo nos deixa mais prudentes e justos, atuando a justiça como a medicina da maldade.”

Esse trecho do diálogo fecha com uma consequência perturbadora, mas bem prática: Para Sócrates, se errarmos, devemos correr ao tribunal como quem corre ao médico, ao padre, ao supervisor, ou às autoridades, confessar, aceitar o remédio amargo, e recuperar a saúde da alma. A retórica, enquanto adulação, tenta justamente o oposto: maquiar a doença para ganhar tempo e aplauso — e com isso piorá-la. É nessa fricção entre parecer e ser, entre poder e bem, que Sócrates nos obriga a reconhecer que a eloquência sem verdade é uma arma apontada para a próprio cabeça. Sócrates teria muito o que dizer sobre a impunidade do Brasil.

Sócrates: Esforçar-se ao máximo […] para não cometer injustiça e, se vier a praticar alguma malfeitoria, será preciso ir, por vontade própria, onde possa ser castigado, como iria ao médico, sendo sempre o primeiro acusador de si mesmo para se livrar do maior mal, a injustiça.”

Capítulo 3 — Cálicles entra em cena: prazer, força e a moral dos fortes

Depois de dialogar com Polo, é a vez de outro interlocutor, dessa vez chamado Cálicles. Se com Górgias vimos a sedução técnica da palavra e com Polo a fascinação pueril pelo “poder”, com Cálicles temos a filosofia do excesso: o prazer como critério de vida boa, a força como medida de justiça e a liberdade irrestrita como licença para a desmedida. Cálicles afirma que os melhores são os que expandem seus desejos e têm coragem de satisfazê-los; a temperança é vista como fraqueza. Cálices diz o seguinte:

“Cálicles: quem quiser viver de verdade, longe de reprimir os apetites, terá de
permitir que se expandam quanto possível, e quando se encontrarem no auge, ser capaz de
alimentá-los com denodo e inteligência e de satisfazer a todos eles à medida que se forem
manifestando. Mas isso, justamente, segundo penso, é que não é para toda a gente; eis porque
a maioria dos homens censura as pessoas capazes de assim viver, por se envergonharem da
própria debilidade, que procuram esconder, e qualificam de feia a intemperança, para
escravizarem […] as pessoas bem-dotadas por natureza.”

Para confirmar esse argumento, Cálicles apela para “justiça natural”: ele diz que na natureza, o mais forte toma o lugar do mais fraco; logo, é “justo” que os melhores dominem.  As Leis e os costumes seriam artifícios dos fracos para conter os fortes.

Sócrates força essa definição perguntando se mais forte = mais poderoso?

A sedução dessa tese está em prometer uma vida sem atritos internos: a capacidade de desejar, de poder e de fazer sem restrições.  No entanto, Sócrates desarma o esse argumento dizendo que muitos prazeres são acompanhados de alguma dor depois que eles acabam, e tem muitos casos também em que um prazer e uma dor podem ocorrer juntos. Prazer não é sinônimo de bem; e se bem e agradável não se confundem, a bússola hedonista de Cálicles conduz ao erro.

Nossa liberdade de fazer o que quiser também pode ser usada para retirar essa mesma liberdade. É mais livre quem pode escolher. O desmedido não pode escolher porque sua compulsão sempre o puxa para um extremo. O ponto é desconcertante justamente por parecer evidente ao senso comum:

“Sócrates: concordaste que é possível sofrer e sentir prazer ao mesmo tempo. […]
Do que se colhe que sentir prazer não é viver bem, como não é viver mal sentir dor. Assim, o
bem e o agradável diferem entre si.”

Para refutar o argumento do hedonismo de Cálicles, Sócrates traz duas provas da realidade com as imagens do prurido, ou seja, aquela sensação desagradável que leva a uma coceira incessante, e da devassidão. Ele diz que se todo prazer é bom, então até quem se coça compulsivamente teria “vida feliz”, mas sabemos que não é bem assim; e se a abundância de satisfação bastasse, o devasso seria exemplo de excelência, mas sabemos que ele é escravo dos próprios prazeres. O absurdo expõe o vício lógico de Cálicles, mas ele ainda resiste:

“Sócrates: dize -me se no caso do sarnento que sente comichão e tem vontade de coçar-se, nessas condições, também, a vida deve ser considerada feliz?
Cálicles: Direi que até mesmo o indivíduo que se coça pode viver
agradavelmente.
Sócrates: […]mas a vida de um devasso não é intolerável, vergonhosa e infeliz? Ou terás coragem de afirmar que esses indivíduos também são felizes por terem em abundância tudo o que desejam?”
Cálicles: Não te envergonhas, Sócrates, de levar a discussão para esse lado?
Sócrates – Sou eu que a levo para esse lado, meu caro […]
Cálicles – Para não ficar em contradição com o que  afirmei antes, se disser que são diferentes, respondo que  são iguais.”

E quando Cálicles insiste que a vida boa é sempre estar preenchido com bens e prazeres, trazendo a imagem de tonéis de líquidos sempre cheios, Sócrates devolve outra imagem que opera como um diagnóstico psicológico: a alma do desmedido é um conjunto de barris furados — quanto mais se despeja, mais vaza; o prazer, então, vira manutenção infinita da própria carência. A figura aponta para o núcleo clínico do argumento socrático: sem medida, o desejo não se realiza, ele só fica cada vez mais impossível.

“Sócrates: vou propor-te outra imagem: Vê se te é possível comparar essas duas modalidades de existência — isto é, a do moderado e a do intemperante — ao caso de dois homens que particularmente possuem muitos barris. Um os tinha em bom estado e cheios de vinho. Porém uma vez cheio o vasilhame, não se preocuparia o nosso amigo com renovar-lhes o conteúdo, deixando-se ficar tranquilo a esse respeito. O outro indivíduo disporia das mesmas fontes que o primeiro, nas quais poderia abastecer-se, embora com dificuldade; mas todos os seus tonéis eram quebradiços e apresentavam rachas, o que o obrigava a enchê-los dia e noite sem interrupção, para não vir a sofrer o pior. Muito bem, se essa é a vida de cada um deles, dirias que é mais feliz a vida do intemperante ou que, ao contrário, é mais feliz a vida do moderado?”

É por isso que “fazer o mal” parece sedutor para Cálicles: ele confunde intensidade com plenitude, liberdade com licença, força com mérito. A promessa de gozo sem freio captura nossa impaciência com o limite; mas, quando examinada, revela um mecanismo de dependência — o sujeito precisa constantemente de mais para continuar “bem”. Sócrates mostra que essa moral dos fortes cria, na verdade, pessoas frágeis: precisam vencer sempre, aparecer sempre, sentir sempre — caso contrário, desabam. O argumento de Sócrates, ao separar prazer e bem, diz que sem forma, proporção e finalidade, a vida de excessos é apenas um vaso rachado.

Capítulo 4— Análise da fábula da Ilha dos Abençoados, contada por Sócrates

Platão fecha o diálogo com um mito escatológico, muito comum no final de vários dos seus diálogos socráticos. Platão entendia que os mitos são uma riquíssima fonte de conhecimento porque eles podem dar forma ao que a razão não mais explicar. Este mito no final do diálogo Górgias é uma radiografia moral do que vimos até aqui. Sócrates prepara o terreno dizendo que a maior desgraça não é a morte, é chegar ao Hades com a alma carregada de crimes. Para provar isso, ele conta uma “história” que dá forma visível à tese que sustentou todo o debate, a de que justiça e temperança não são ornamentos, são a própria saúde da alma. Ele diz o seguinte:

“Sócrates: O que é de temer é cometer injustiça. A maior infelicidade é chegar ao Hades com a alma pejada de malfeitorias. Caso queiras, contar-te-ei uma história em que se prova que é assim mesmo. Conforme Homero nos relata, Zeus, Poseidon e Plutão dividiram entre si o poder que tinham recebido do pai. Ora, no tempo de Cronos havia uma lei relativa aos homens […] que o homem que houvesse passado a vida com justiça e santidade, depois de morto iria para
a Ilha dos Bem-aventurados […] e que, pelo contrário, quem tivesse vivido impiamente e sem justiça, iria para o cárcere […] a que dão o nome de Tártaro.”

O núcleo do mito é a reforma de Zeus: os julgamentos davam errado porque eram feitos em vida, com as “vestes” das aparências. Honrarias, riqueza e testemunhas confundiam os juízes, que também “julgavam pelas aparências”. Ou seja, Se julgava mais por aquilo que se tinha do que por aquilo que se era. A solução, então, é separar corpo e alma, despir as máscaras e julgar nu, alma a alma, numa região onde se abrem dois caminhos — um para o Tártaro e outro para a Ilha dos Bem-aventurados. A imagem opera como contra-encenação da retórica: onde o sofista triunfa pelo brilho, os juízes de Hades veem a verdade nua e crua. Sócrates continua:

“Sócrates: As sentenças, realmente, têm sido mal dadas, porque as pessoas são julgadas
com vestes, uma vez que ainda estão vivas. Desse modo, […] muitos homens de alma
ruim são adornados de belos corpos, posição e riqueza, aparecendo por ocasião do
julgamento infinitas testemunhas […] Agora, passarão a ser julgados desprovidos de tudo, a saber, só depois de mortos. […] O juiz, também terá de estar morto e nu, para examinar apenas com sua alma as demais almas […] Eles julgarão no prado que se acha na altura da encruzilhada de dois caminhos: o que vai dar na Ilha dos Bem-aventurados e o que vai para o Tártaro. Radamanto julgará os que vierem da Ásia; Éaco, os da Europa. A Minos darei o privilégio de pronunciar-se por último.”

Assim como o cadáver conserva marcas do que sofreu na matéria, a alma “despida” revela cicatrizes das suas ações. O desvelamento também é anatômico: os perjúrios deixam lanhos; as mentiras entortam; a intemperança deforma. Não é uma alegoria moralista — é uma regra de funcionamento psíquico: tudo o que fazemos talha a forma da alma, tanto para o bem quanto para o mal. Sócrates continua:

“Sócrates: A mesma coisa, Cálicles, penso que se passa com relação à alma; tudo nela se torna visível, depois de despida do corpo, tanto suas características, naturais como as modificações subsequentes. Radamanto examina alma por alma e, ao verificar não haver nela nada são, por estar cheia de lanhos e de marcas de perjuros e de injustiças […] tudo retorcido pela mentira e pela vaidade […] como conseqüência da licença, da luxúria, da insolência e da incontinência de conduta, mostra-se a alma cheia de deformidades e de feiúra.”

Aqui, Platão encaixa o argumento da punição justa: a punição justa é medicina para alma, e para certos casos incuráveis, resta apenas a função exemplar. O mito não romantiza o castigo; ele o situa como instrumento de cura quando há uma cura possível.

“Sócrates: A pena merecida para quem recebe castigo, quando é punido com justiça; é
tornar-se melhor e tirar algum proveito com o castigo, ou servir de exemplo para
demais […] Os que aproveitam com o seu próprio castigo são os que cometem faltas
remediáveis […] esse proveito só é alcançado por meio de dores e sofrimento, tanto aqui
na terra como no Hades; não há outro modo de limpar-se da injustiça.”

No mapa do além, os piores exemplos vêm justamente dos que mais detiveram poder sem uma medida para suas ações. Essa foi uma resposta afiada para Polo e Cálicles: o poder não imuniza a alma; muitas vezes a corrompe, e os tiranos costumam encarnar justamente os casos que são “incuráveis”.

“Sócrates: a maioria de tais exemplos é tirada da classe dos tiranos, dos reis, dos potentados e dos demais administradores dos bens públicos […] Homero é testemunha disso, pois nos mostra reis e potentados a sofrer castigos eternamente no Hades: Tântalo, Sísifo e Tício.”

O mito culmina num conselho existencial que amarra o diálogo desde a primeira pergunta feita a Górgias: viver bem não é parecer bom, é ser bom. Sócrates, então, no final do diálogo, declara sua própria aposta — a de comparecer diante dos juízes com a alma limpa, desprezando honrarias e aplausos — e convida Cálicles (e a nós) a uma vida que prefira a verdade ao espetáculo.

“Sócrates: Eu, Cálicles, de minha parte, dou crédito a essa narrativa e me esforço para apresentar-me diante do juiz com a alma tão limpa quanto possível. Não dou nenhuma importância às honrarias que a maioria dos homens tanto preza; empenhando-me na busca da verdade, procurarei tornar-me o melhor possível enquanto viver.”

E isso não é à toa. Platão, em outro diálogo chamado Fédon, que relata a morte de Sócrates, escreve o seguinte sobre o seu mestre:

“Tal foi o fim do nosso amigo, […], do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado a conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.”

Platão, Fédon.

A conclusão ética de Sócrates sobre Górgias e sobre os inúmeros discípulos de Górgias ao decorrer dos séculos é essa: devemos temer mais o ato injusto do que o sofrimento, e usar a palavra somente a serviço da justiça. É a vitória silenciosa de Sócrates sobre Górgias, Polo e Cálicles: todos os argumentos que defendiam o brilho do poder foram refutados; e só manteve de pé apenas aquele que pode sustentar uma vida inteira, ou seja, a medida, a temperança e a justiça, do contrário, a vida se acaba no meio do caminho justamente pela falta ou pelo excesso.

“Sócrates: É possível que consideres tudo isso uma simples história de velhas […] Mas, como viste, vós três, os mais sábios Helenos do nosso tempo, tu, Polo e Górgias, não fostes capazes de
demonstrar que devemos viver uma vida diferente desta […] que devemos com mais empenho
precaver-nos de cometer injustiça do que de ser vítima de injustiça, e que cada um de nós
deve esforçar-se, acima de tudo, não para parecer que é bom, mas para sê-lo realmente […] e que tanto a faculdade de bem falar como os demais recursos desse gênero só devem ser empregados a serviço da justiça.”

Assim, a “Ilha dos Abençoados” que Sócrates faz alusão não é mero cenário fictício; é a imagem de uma vida com medida, onde o prazer não entorta o juízo e a palavra não se separa do bem. Não se trata de extirpar o prazer e viver paranoico tentando ser uma pessoa boa e não cometer injustiças. Somos seres humanos e somos seres apegados a terra, mas temos o impulso evolutivo de viver com significado. Viver, para Platão, é esculpir a alma com sabedoria e com medida — porque, no fim, todos ficaremos despidos diante do que fizemos de nós mesmos.

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