Os 3 Níveis da Consciência Masculina — Dom Quixote, Hamlet e A Divina Comédia

“E sobretudo isto: ser fiel a ti mesmo, que desleal não serás a homem algum que seja.”

 William Shakespeare, Hamlet.

Introdução

Ao longo da história da humanidade, de acordo com os mitos, contos de fadas, tradições religiosas e histórias da literatura, é possível traçar três níveis de consciência. A consciência simples, a consciência complexa e a consciência iluminada.

Uma anedota bem antiga expõe esses três níveis de consciência da seguinte forma: o homem simples (de consciência simples) chega em casa perguntando o que tem para o jantar. O homem complexo chega em casa perturbado, se questionando sobre os aspectos inquestionáveis do seu destino e do destino do mundo. E o homem iluminado chega em casa da mesma forma que o homem simples, se perguntando o que tem para o jantar.

Apesar do homem simples e do homem iluminado fazerem a mesma pergunta, a diferença entre eles é a de que o homem iluminado tem consciência da sua condição, tanto externa quanto internamente, enquanto o homem simples tem consciência apenas da sua condição interna ou externa, nunca das duas. Já o homem complexo passa muito tempo vivendo em um estado de ansiedade e se preocupando com coisas que não precisaria se preocupar.

O psicoterapeuta junguiano Robert Johnson, em seu livro chamado “Transformation”, descreve esses três níveis de consciência a partir da definição do que seria a felicidade:

“Investiguei a origem da palavra ‘feliz’ [happiness] e descobri que ela deriva do verbo ‘acontecer’ [to happen]. Em outras palavras, a felicidade pode ser encontrada simplesmente contemplando o que acontece. Se você não consegue ficar feliz pensando o que vai ter para o jantar, é provável que não encontre felicidade em lugar nenhum. O que acontece é a felicidade.”

Robert A. Johnson, Transformation.

Os homens simples não conhecem suas condições externas e vivem totalmente no seu mundo interior; eles serão felizes independentemente das suas circunstâncias. Os homens de consciência iluminada, a partir de um autoexame de sua própria vida e das condições que o cercam, conhecem suas circunstâncias e seu mundo interior, permitindo que eles façam uma ponte, do ponto que partiram, para o ponto onde querem chegar, atravessando a vida com felicidade apesar dos imprevistos e dos infortúnios.

Já os homens complexos, por outro lado, nunca estão felizes com o presente, com as coisas que acontecem. Eles, que estão entre a consciência simples e a iluminada, se sentem presos pela nostalgia do passado e da infância ou pela antecipação do futuro, inseguros e perdidos diante das possibilidades.

Infelizmente, como aponta Robert Johnson, a maioria dos homens ocidentais estão nesse nível de consciência.

Nossa tradição bíblica nos mostra esses estados de consciência a partir da narrativa do Jardim do Éden. O homem, antes da Queda, vivia em um estado paradisíaco de inconsciência e perfeição, a consciência simples. Após a Queda, ele passa pelo sofrimento e pelo caos, a consciência complexa, e tenta ir em busca do Paraíso novamente, a consciência iluminada.

O homem de consciência complexa vive em um estado de angústia porque ele conhece o paraíso, mas não pode voltar para ele sem passar pelo sofrimento. 

Esse paraíso pode ser simbolizado como um estado de conforto e não só como um plano da existência. Na infância, vivíamos justamente esse paraíso sob a proteção e o cuidado da nossa mãe. Não existia responsabilidades e nem muita consciência sobre as ações. Depois de adultos, ainda guardamos memórias dessa sensação, e se nos agarrarmos a ela, acabamos por desenvolver um complexo materno, que nada mais é do que o medo diante da vida, esperando que alguém nos salve ou o momento certo chegue para finalmente agirmos. Mas, é claro, esse momento nunca chega, nos prendendo na dúvida e na indecisão.

Então, para explorar esses três níveis de consciência, Robert Johnson usa três grandes obras da literatura mundial que servem como exemplos para cada um desses níveis: Dom Quixote, representando o homem simples ou o homem bidimensional. Hamlet, representando o homem complexo ou tridimensional, e Fausto, representando o homem iluminado ou quadrimensional.

No entanto, eu vou substituir a obra Fausto de Goethe pela obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, para retratar o homem quadrimensional, já que A Divina Comédia é mais conhecida e vai ficar mais fácil de compreender os raciocínios.

Mas fica tranquilo, o percurso de Dante na Divina Comédia reúne todos os elementos que levaram Robert Johnson a escolher Fausto como símbolo da “consciência quadrimensional”, sem perder nada: Dante faz uma descida às regiões sombrias da psique, representada pelo Inferno, depois ele passa pela purificação de impulsos destrutivos, no Purgatório e, enfim, inicia a subida a um plano mais elevado que o leva a redenção mediada pelo “Eterno Feminino”, simbolizado por Beatriz, sua guia pelos círculos do Céu.

A partir dessas três obras, nós podemos traçar as possíveis evoluções da consciência que qualquer homem pode passar durante a vida. Então, me acompanhe até o final do vídeo. Tenho certeza que você vai colher muitos frutos de cada uma dessas obras e, talvez, mudar muitas percepções que você tem sobre a vida.

A Primeira Consciência – Dom Quixote

O primeiro nível de consciência, a consciência bidimensional ou simples, é representado por Dom Quixote. Escrita pelo romancista espanhol Miguel de Cervantes e publicada em 1605, Dom Quixote é o exemplo do homem que nunca saiu do Jardim do Éden, do paraíso da inconsciência.

É interessante notar como a personalidade de Dom Quixote permite diversas interpretações que revelam a riqueza narrativa do personagem. Robert Johnson, por exemplo, descreve Dom Quixote como sendo o personagem voltado inteiramente para o mundo interior. Já que ele é um velho fidalgo que se empanturrou com romances de cavalaria durante a sua velhice, ele projetou todas as suas fantasias no mundo externo, vivendo uma série de arquétipos do seu inconsciente coletivo.

Ele vê moinhos de vento como gigantes que precisam ser derrotados, um rebanho de ovelhas como uma tropa de inimigos e uma princesa a quem jurou sua vida como um reflexo da sua própria alma, o lado feminino do homem responsável por fornecer o ideal de braveza e coragem, também conhecido como anima na psicologia analítica.

Dom Quixote nunca saiu do paraíso porque ele justamente vê o mundo com os olhos de uma criança, e por isso o chamam de louco. Mas, como Robert Johnson explicou:

“Este episódio de embate com moinhos de vento foi absorvido por quase todas as línguas ocidentais como um símbolo da loucura de lutar com fantasmas ou ilusões. Exteriormente, isso é bastante verdadeiro; mas interiormente é a batalha imaginativa heroica da criança ou do simples homem bidimensional. Esta batalha também foi descrita em termos de dragões, os monstros que toda criança enfrenta em seu mundo interior.”

Robert A. Johnson, Transformation.

Só que ao contrário de Robert Johnson, o escritor russo Ivan Turguêniev, que viveu mais ou menos na mesma época de Dostoiévski, no século XIX, entende a personalidade de Dom Quixote, não como voltada para dentro, para o mundo interior, mas totalmente voltada para fora. Para Ivan Turguêniev, Dom Quixote representa o completo altruísmo, a força que se dedica a algo maior que o próprio ego. Ele escreve o seguinte:

“Dom Quixote está todo imbuído de dedicação ao ideal, pelo qual ele está disposto a se submeter a todas as privações possíveis, sacrificar a vida; sua própria vida ele só valoriza na medida em que ela pode servir de meio para a concretização do ideal, para o estabelecimento da verdade e da justiça sobre a terra. […] Nele não há nem vestígio de egoísmo, ele não se preocupa consigo mesmo, ele é todo abnegação — apreciem esta palavra! — ele crê, crê fortemente e sem olhar para trás. Por isso ele é destemido, paciente, satisfaz-se com a comida mais módica, com a mais pobre vestimenta: ele não tem tempo para isso.”

Ivan Turguêniev, Hamlet e Dom Quixote.

A característica do homem bidimensional ou homem simples a que confere Dom Quixote está justamente nessa unilateralidade. Ou ele é totalmente voltado para dentro, ou totalmente voltado para fora, quando a imaginação governa sem ter diálogo com a realidade.

Dom Quixote encarna a parte da psique que vive no campo das ideias elevadas, movida por valores de honra, coragem e transcendência. Ele age a partir de imagens internas que ignoram as limitações da realidade.

Nesse nível de consciência, o homem constrói uma versão heroica de si mesmo que, se não for balanceada pelo princípio da realidade, o ideal fixo se torna prejudicial. Trazendo essa característica quixotesca para o nosso tempo, quando construímos um ideal fixo a que precisamos atingir de qualquer jeito, seja um ideal de bondade absoluto, de beleza, de eficiência ou produtividade, muitas vezes alimentado pelas redes sociais, exigências familiares ou traumas particulares, tudo o que vamos conseguir é um deslocamento da realidade, prejudicando o outros e nós mesmos.

Dom Quixote, apesar de ter construído um ideal heroico que precisa atingir, muitas vezes prejudica as pessoas que encontrava no caminho por conta de suas fantasias.

Quando o ego inflado domina, a pessoa passa a viver numa bolha de autoimagem grandiosa que exige confirmação permanente. No início pode parecer autoconfiança, mas logo se torna um esforço constante para sustentar a fantasia de superioridade. As relações sofrem porque qualquer crítica soa como ameaça pessoal, então a conversa vira disputa e o vínculo perde abertura para a intimidade genuína.

A inflação também empurra conteúdos indesejados para o inconsciente. Medo, vulnerabilidade e limites ficam proibidos de aparecer, mas voltam disfarçados em explosões de raiva, sarcasmo ou culpa projetada nos outros. Surge, então, um ciclo de isolamento: quanto mais o ego defende a imagem inflada, mais as pessoas se afastam ou reagem negativamente, o que faz a pessoa se inflar ainda mais para provar valor.

É por isso que, ao longo da história, seu escudeiro, Sancho Pança, representa o polo exposto. Sancho Pança é o senso prático, o instinto de autopreservação e a busca por conforto e segurança. Quando caminham juntos, eles formam um sistema de autorregulação. Dom Quixote fornece visão e movimento; Sancho Pança impede que o Dom Quixote se perca de fome ou de esgotamento. Um amplia a realidade imaginando possibilidades; o outro delimita essas possibilidades dentro do que é fisicamente viável.

Psicologicamente, eles ilustram a necessidade de integrar as polaridades — intuição e sensação — para que a ação se mantenha viva, mas sem inflacionar o ego e perder o contato com a realidade. Onde um sonha, o outro ancora-se na realidade; onde um critica, o outro inspira. Essa relação evidencia que nenhum dos dois alcança plenitude de forma isolada: a totalidade surge, como sempre explicou Carl Jung, da tensão produtiva entre seus impulsos opostos.

No entanto, apesar de Dom Quixote viver toda a sua vida como um homem bidimensional, tomado pelas fantasias do seu inconsciente, como uma criança que nunca saiu do paraíso, é no seu leito de morte que ele se torna um homem quadrimensional, de consciência iluminada, que veremos detalhadamente na Divina Comédia.

Ao final da história de Dom Quixote, há uma profunda reflexão que ele nos deixa: por que Dom Quixote ficou lúcido somente momentos antes de morrer?

Psicologicamente, a morte funciona como metáfora de qualquer situação que nos force a abandonar papéis insustentáveis — uma falência financeira, o fim de um relacionamento, uma doença séria. Nessas horas, as defesas que mantêm o ego inflado cedem, permitindo um vislumbre da realidade sem o filtro dos desejos. Se a energia volta a circular, esse colapso pode se transformar em renascimento; mas, se a energia se extingue, o despertar coincide com o fim, como acontece com Dom Quixote.

A proximidade do fim retira a urgência de provar valor ao mundo, desmonta a necessidade de máscaras e abre espaço para uma visão sincera do que fomos e do que deixamos inacabado. É por isso que muitas pessoas só conseguem mudar depois que uma catástrofe acontece em suas vidas.

Dom Quixote não se culpa por suas aventuras no seu momento de lucidez — muitas foram movidas por bons propósitos —, mas ele lamenta tê-las confundido com a realidade. No seu leito de morte, percebendo que sua vida foi só um “sonho”, ele rejeita seu título de Dom Quixote e torna-se novamente Alonso Quijano — que é seu nome verdadeiro —. Ao final, ele abraça a identidade do homem simples, aceitando limites que antes negava e alcançando, finalmente, o olhar lúcido entre mundo interior e exterior do homem quadrimensional.

O estado quixotesco não está tão presente na modernidade quanto antes. Como esse nível de consciência só permanece quando o homem não passou por nenhum choque com a realidade, seja uma decepção amorosa, um trauma infantil, ou uma crise financeira, é bem difícil, para não dizer impossível, alguém manter esse estado paradisíaco quando já saiu da infância.

A avalanche diária de notícias, as infinitas comparações que estamos submetidos e a produtividade doentia que nos inserimos dissolve nossas fantasias rapidamente. Além disso, a cultura atual privilegia a ironia: celebrar ingenuamente um valor absoluto é visto como ingenuidade ou jogada de marketing, não como uma jornada pessoal.

O resultado é que o primeiro nível de consciência ainda nasce, mas encontra pouco espaço social para durar; ele se desmancha quase tão rápido quanto surge, e a maioria das pessoas mergulha direto na fase de crise e ambivalência representado por Hamlet, o próximo nível de consciência.

A Segunda Consciência – Hamlet

Hamlet, o próximo personagem que vamos comentar, representa o homem tridimensional ou de consciência complexa. Escrita como uma peça de teatro por Shakespeare e lançada em 1623, essa talvez seja a sua obra mais famosa, encenada e adaptada incontáveis vezes ao longo dos séculos.

Hamlet certamente teria inveja de Dom Quixote. Porque, enquanto Hamlet hesitaria em fazer alguma coisa, Dom Quixote já estaria lá na frente, não se importando em como faria tal coisa. Então, sim, pode-se dizer que a vida de Dom Quixote foi um verdadeiro sonho, mas a vida de Hamlet é um total pesadelo, pois ele se vê preso na angústia do fazer ou não fazer. Robert Johnson escreve que:

“Cervantes retratou brilhantemente o homem medieval ao deixar o palco da civilização europeia [com Dom Quixote]. Shakespeare previu o homem moderno, preocupado e ansioso que ocuparia o centro daquele palco e ainda é o modelo para a nossa personalidade. A maioria das pessoas hoje são Hamlets.”

Robert A. Johnson, Transformation.

Na história da peça, Hamlet retorna à Dinamarca para o funeral de seu pai e encontra a mãe, Gertrudes, já casada com seu tio Cláudio, que assumiu o trono. Em uma noite, o espectro de seu pai aparece para Hamlet e revela que ele foi envenenado por seu irmão Cláudio, o tio de Hamlet, para assumir o poder. O pai pede que Hamlet se vingue por ele, mas Hamlet, dilacerado pelo choque da informação, não sabendo se o fantasma é realmente o seu pai ou um demônio, hesita durante toda peça se essa seria a coisa certa se fazer.

E você deve estar pensando: “bem, qualquer um hesitaria eternamente diante de uma situação dessas”.

Mas a questão aqui é o comportamento humano diante de um conflito moral: a hesitação de Hamlet diz respeito a toda vez que percebemos um dano grave — algo que seria eticamente intolerável — e, ainda assim, adiamos a ação que poderia corrigi-lo.

Pense no funcionário que descobre uma fraude na própria empresa, mas calcula as demissões em cadeia, o processo judicial, o rótulo de “delator” que poderia cair sobre ele para sempre; pense em uma filha adulta que precisa confrontar o abuso emocional do pai idoso e imagina a culpa que virá depois; pense no amigo que acompanha uma violência doméstica na casa ao lado e, antes de chamar a polícia, repassa mentalmente o risco de represália, o boato no bairro, a espera interminável no fórum de justiça. O dilema é o mesmo: justiça exige exposição, e a mente, fascinada pelos labirintos de possibilidades, busca garantias impossíveis de obter. Se agir pode nos ferir ou incriminar, o raciocínio infinito transforma-se em um refúgio.

Dom Quixote provavelmente riria de todas essas questões e não hesitaria nem um momento em fazer o que seus princípios e o seu ideal mandassem.

Mas a indecisão não acontece unicamente diante de um conflito moral. Hamlet é a figura que representa o neurótico por natureza. Ele sabe demais para ser simples, mas não o suficiente para ser completo. Ele percebe a distância entre o que sente e o que faz, entre o que pensa e o que diz. Ele é o famoso homem dividido, que está presente em quase todos os personagens de Dostoiévski.

O resultado dessa cisão da personalidade é a paralisia das ações. A mente gira em análises intermináveis; cada escolha parece carregada de consequências irreversíveis e o corpo acusa esse conflito com insônia, falta de apetite ou tensão muscular. Como escreveu uma vez Alexandre Dumas:

“A indecisão é o pior dos suplícios.”

Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo.

A psicologia analítica descreve esse nível de consciência como sendo o encontro com a própria sombra, isto é, aqueles conteúdos que foram reprimidos por serem considerados vergonhosos ou negativos, mas que se tornaram destrutivos justamente porque foram negligenciados.

Quando a sombra surge, ela traz culpa não resolvida, desejos contrariados, ou raiva contida. Mas ao mesmo tempo, a sombra mostra talentos recusados por medo da desaprovação alheia. A dificuldade está em sustentar esses conteúdos sem descarregar em impulsos ou projetar nos outros.

Muitos homens tentam voltar à antiga rotina quando confrontam a sombra, com medo do que possam encontrar ou do que precisem sustentar, mas, ao tentarem regredir, descobrem que a vitalidade que tinham antes se perdeu. O trabalho perde cor, as relações parecem sem profundidade, a fé em soluções externas desaparece. Esse esgotamento força o homem a fazer a pergunta essencial: “o que dentro de mim precisa de voz?”

Porém, Hamlet, o homem complexo, precisa, mas não consegue responder essa pergunta. Ele consegue vislumbrar a iluminação do homem quadrimensional, que o permitiria viver em totalidade, mas, ao mesmo tempo, está fragmentado pela indecisão e pela dúvida. Ele quer se entregar a algo, mas não consegue deixar sua posição. Essa é a angústia existencial que muitos vivem. Ivan Turguêniev escreve o seguinte sobre Hamlet:

“Duvidando de tudo, Hamlet, é claro, não poupa nem a si mesmo; seu intelecto é desenvolvido demais para se contentar com o que ele encontra em si: ele reconhece sua fraqueza, mas todo autoconhecimento é força; disso resulta sua ironia, sua contraposição ao entusiasmo de Dom Quixote. Hamlet repreende a si mesmo exageradamente, com satisfação, observa-se continuamente, olhando todo o tempo para dentro de si, ele conhece com exatidão todos os seus defeitos, despreza-os, despreza a si — e, ao mesmo tempo, pode-se dizer, vive, alimenta-se desse desprezo.”

Ivan Turguêniev, Hamlet e Dom Quixote.

E aqui cabe um aspecto crucial para o entender a indecisão masculina que faz o homem ficar angustiado. A força de Dom Quixote provém da sua devoção por Dulcineia, uma princesa idealizada que impulsiona seu ânimo para enfrentar as batalhas em que passa durante a história. Enquanto Dom Quixote acredita nela, ele sustenta o seu ideal heroico. Na psicologia analítica, Dulcinéia não é nada mais que a anima, o feminino interior do homem que o motiva e lhe dá força pelo que lutar. É essa força feminina dentro de Dom Quixote que o permite se movimentar e agir.

Não é surpresa para nenhum homem que a mulher possa motivar as suas ações. Muitas vezes, é através delas que encontramos motivo para nos cuidar e nos desenvolver. Mas se o homem não tem uma parceira externa, ele vai precisar encontrar essa força internamente, na sua anima, apesar do relacionamento que ele tem com a anima precise ser diferente do relacionamento que ele tem com as mulheres externas. Se um homem se relacionar com a sua anima da mesma que ele se relaciona com uma mulher externa, ele passará a projetar características irreais nas mulheres externas, o que o afastará cada vez mais das pessoas.

Hamlet, ao longo da peça, vai aniquilando de sua vida cada figura feminina que aparece. Ele vai matando sua anima aos poucos e por isso se sente cada vez mais incapaz de agir diante da vida. Até sua prometida na história, chamada Ofélia, sente o peso da indecisão de Hamlet e chega a tirar a própria vida.

Hamlet lembra muito o Homem do Subsolo de Dostoiévski. Na história, o Homem do Subsolo poderia encontrar sua redenção e sair da sua vida de miséria e angústia através de uma prostituta chamada Liza, mas quando ela vai a sua casa, ele sente vergonha da própria condição e teme que ela pense o mesmo que ele e a expulsa de sua casa, xingando-a e diminuindo-a mais ou menos da mesma forma que Hamlet faz com Ofélia.

No fim, é isso que acontece com o homem indeciso, ele se torna um peso para si próprio e para os outros. Como escreveu Robert Johnson:

“Hamlet é o homem de nobreza e consciência parcial que tem uma visão do sentido da vida. Mas ele não é forte o suficiente — ou completo o suficiente — para colocar essa visão em foco. Ele é sábio o suficiente para ver, mas não forte o suficiente para realizar. […] Todos os elementos femininos se destroem diante da consciência tridimensional.”

Robert A. Johnson, Transformation.

A saída do estado hamletiano acontece quando a dúvida se transforma em ação ponderada. Não há pressa, mas há movimento. Pequenas escolhas cotidianas, feitas a partir da escuta interna, inauguram um senso de autonomia real. Esse avanço prepara o terreno para o terceiro nível, representado por Dante, em que a descida consciente ao inconsciente integra as partes separadas e devolve sentido à existência.

A Terceira Consciência – A Divina Comédia

Até aqui, vimos o homem bidimensional, representado por Dom Quixote, o homem simples, que não saiu do paraíso boa parte da sua vida, tomado por conteúdos do inconsciente coletivo, vivendo de forma natural, alegre e imune às adversidades, assim como as crianças.

Com a aquisição do conhecimento, temos o segundo nível de consciência demonstrado por Hamlet, o homem complexo ou tridimensional, que vive a nostalgia do paraíso e a angústia das possibilidades, enquanto é transpassado pelo sofrimento da existência. A maioria dos homens se encontra nesse nível de consciência durante boa parte da sua vida, o que é relativamente normal.

Mas existe um terceiro nível de consciência que pode ser alcançado. E esse nível é do homem quadrimensional ou iluminado, demonstrado durante a trajetória de Dante Alighieri pelo Inferno, Purgatório e Paraíso em seu poema, inicialmente intitulado simplesmente como Comédia.

Na Idade Média, época em que o poema foi escrito, entre os anos 1304 e 1321, “comédia” não significava algo engraçado, mas uma narrativa que começava em circunstâncias difíceis e que terminava em alegria ou em bem-aventurança. Ou seja, o poema começa no Inferno e termina no Paraíso.

Além disso, “comédia” designava um estilo linguístico considerado mais “humilde”, pois Dante escreveu o poema em toscano, que era um dialeto mais popular da língua italiana, e não em latim, que era reservada aos tratados eruditos. Décadas depois, outro poeta chamado Giovanni Boccaccio, admirado com a profundidade teológica e a beleza poética do texto de Dante, passou a chamar a obra de “divina”. O nome pegou de vez somente no século no XVI, quando edições impressas começaram a trazer na capa o título “Divina Comédia”.

A Divina Comédia é uma das obras mais complexas e debatidas da história da literatura. Como o próprio Dante disse uma vez sobre sua obra, ela pode ser interpretada de forma literal, alegórica, teológica, mística e por aí vai. Além disso, ela é um retrato de como a Idade Média compreendia o mundo e o homem, além de ser uma riquíssima fonte histórica da época.

Para os nossos fins, faremos uma interpretação psicológica do poema, mostrando a trajetória do homem em direção à consciência quadrimensional.

Vimos que o principal erro de Hamlet para sucumbir à sua angústia foi não ter conseguido confrontar a sua sombra, como escreveu Robert Johnson:

“O erro básico de Hamlet foi não incorporar sua sombra em sua vida. Se Hamlet tivesse sido capaz de reconhecer como aliado a sua natureza instintiva, ele teria se libertado de sua paralisia. Em vez disso, ele permaneceu cambaleando entre suas duas naturezas, ego e sombra, e teve uma morte trágica.” 

Robert A. Johnson, Transformation.

Vimos que Hamlet era egocêntrico e foi justamente o seu orgulho que o impediu de agir. O confronto com a nossa sombra é o momento onde temos que deixar de lado as defesas do nosso ego e olhar para aquilo que tentamos esconder. Talvez seja nossa pequenez diante de um medo, nossa vergonha diante de uma fraqueza, nossa inveja pela vida alheia, nossas decepções ou nossos fracassos.

O encontro com a sombra começa quando os velhos truques de negação do ego falham e aquilo que estava no porão da nossa consciência sobe à tona em sonhos, lapsos de memória ou de fala, indecisões e explosões emocionais.

O verdadeiro confronto não é expulsar esses conteúdos, mas admiti-los, chamar cada um pelo nome, escutar-lhes a história e recolocar a energia reprimida a serviço de uma vida mais integrada. É um processo duro porque desmonta a nossa autoimagem de pessoas boas; exige ver o nosso lamaçal de perto, sem filtros, e aceitar o desconforto de perceber tanto a luz quanto a ferida que carregamos. Hamlet não conseguiria suportar o cheiro do seu próprio pântano.

Hamlet enxerga a sombra, mas não atravessa o espelho. Ele detecta corrupções em seu país, traições na sua corte, sede de poder entre seus familiares — e dentro dele mesmo também — e sente a urgência de agir. Só que a consciência crítica dele é aguda demais e sua capacidade de sustentar afeto pelo próprio lado sombrio é quase nula. Cada pensamento vira objeção, cada impulso se dissolve em dúvida; a mente analisa até a última consequência e o corpo fica parado. Sem passo adiante, a energia sombria vai se fermentando cada vez mais em uma massa destrutiva e insossa.

Dante consegue passa o espelho e mergulhar no seu próprio lamaçal e no lamaçal da humanidade, simbolizado pelo Inferno na Divina Comédia. o Inferno funciona como a primeira descida consciente do ego ao inconsciente.

A descida ao Inferno já foi retratada das mais variadas formas, com os mais variados nomes. Na mitologia grega, o Inferno era conhecido como Hades. Hércules teve que cumprir um de seus trabalhos por lá; Orfeu desce ao Hades para encontrar sua amada Eurídice; Perséfone desce ao Hades para equilibrar as estações primavera e verão com o outono e inverno.

No hinduísmo, esse território chama-se Naraka, composto por várias regiões de sofrimento onde o deus Yama julga cada morto, aplica punições proporcionais até o kárma se esgotar e marca o momento onde a alma é enviada de volta ao ciclo de renascimento.

Na Divina Comédia, o Inferno é uma região da Terra dividida em círculos que representam cada vício humano. Quanto mais os círculos se afunilam, em direção ao centro da Terra, pior é o vício e pior é sua punição.

Antes, porém, há uma espécie de antesala do Inferno, destinada àqueles que não se decidiram entre o bem e o mal. Esse local serve para aqueles que não assumiram compromissos em vida, não conseguiram tomar decisões firmes nem realizar alguma coisa porque achariam que assim poderiam perder outras oportunidades. A punição para esse vício é correr atrás de uma bandeira sem nenhuma insígnia, enquanto as vítimas são picadas por vespas.

Cada punição do Inferno de Dante é uma sensação extrema da escolha que alguém fez em vida. Não é uma punição divina, é simplesmente o fruto do nosso livre-arbítrio.

Nesse local dos indecisos, a bandeira sem insígnia representa a ausência de ideias firmes; quem viveu por pura conveniência, agora, persegue, no Inferno, um emblema que não traz nenhuma causa. A picada das vespas lembra o sofrimento que decidiram evitar diante de cada escolha, já que toda decisão envolve algum tipo de perda e sofrimento.

Dante foi audacioso em colocar essa antesala, indicando que nem mesmo o Inferno aceita os indecisos. Hamlet provavelmente estaria nesse lugar.

Depois dessa antesala, temos o primeiro círculo, o Limbo. Aqui, porém, é a única região do Inferno onde não há tortura nem pecado. No Limbo ficam todas as pessoas virtuosas, mas que não conheceram a Cristo. Dante entende que a graça é necessária para a salvação, mesmo que a pessoa tenha tido uma vida ética. É aqui que ficam, por exemplo, Platão, Aristóteles, Homero, Cícero e por aí vai.

No segundo círculo estão aqueles que pecaram pelo vício da luxúria. A punição é ser chicoteado por vendáveis incessantes que materializam a compulsão física do desejo sexual intenso dos luxuriosos. A rainha Cleópatra é encontrada neste círculo.

O terceiro círculo é destinado ao vício da Gula. Aqui, as pessoas ficam submersas em um pântano sem poder erguer a cabeça, senão são devorados por Cérbero, o cão de três cabeças que guarda o Inferno. Essa punição representa claramente o vício da gula: em vida, eles devoravam tudo, agora, eles são devorados.

O quarto círculo é dos avarentos, os mesquinhos, e também dos pródigos, os irresponsáveis. A punição é empurrar e puxar uma rocha de um monte, que se chocam em sentido contrário por toda a eternidade, reproduzindo o ciclo de guardar e desperdiçar os bens sem encontrar uma medida. Ou seja, todos os bens matérias se tornaram apenas fardos na eternidade, sem nenhuma utilidade. Dante, inclusive, coloca nesse círculo vários papas e cardeais da Igreja.

O quinto círculo corresponde à ira e à melancolia. Os irados se golpeiam eternamente, e os melancólicos se afogam dentro de um rio eternamente. Os irados explodem em socos, e os melancólicos implodem em suas próprias queixas.

O sexto círculo são destinados aos Hereges. Aqui, as pessoas ficam presas em túmulos com brasa quente para simbolizar todas as doutrinas que aqueciam a razão daqueles que as perseguiam, mas que, no final, os separavam da verdade, pois somente a razão não basta para alcançá-la. Dante coloca, inclusive, o filósofo Epicuro nesse círculo.

O sétimo círculo é composto por três anéis ou câmaras que representam a violência contra o próximo, contra si mesmo — aqueles que cometeram suicídio, por exemplo —, e contra Deus ou à natureza.

O oitavo círculo é destinado aos fraudadores de todo tipo. Cada golpe que alguém aplicou contra outro em vida recebe um castigo que expõe a natureza do golpe aplicado. Os traficantes de humanos são agora traficados por demônios. Os bajuladores são afundados em excrementos. Os adivinhos tem os seus rostos virados para trás — já que em vida quiserem ver o futuro; e assim por diante para cada fraude humana.

Por fim, o nono círculo, destinado aos traidores. É curioso que a região mais profunda do Inferno de Dante não é quente, mas extremamente gelada. Isso representa a frieza da alma da pessoa ao trair alguém, a sua comunidade ou uma nação inteira. É aqui onde Lúcifer se encontra, apático e entediado, sendo representado por três cabeças que devoram cada representante máximo da traição humana: Judas Iscariotes, traidor de Jesus Cristo, e Cássio e Bruto, traidores de Júlio César.

O trajeto inteiro é acometido por clarões de trovões, pestilências, rios subterrâneos e criaturas demoníacas; mas o detalhe é que, ao chegar ao ponto mais baixo, Dante não morre nem enlouquece. Ele gira pelo corpo de Lúcifer e sai pelo lado oposto do mundo, indicando que a consciência, ao encarar o seu local mais profundo, encontra a passagem para a subida, mas agora com uma nova consciência.

Essa descida ao inferno ou descida à própria sombra é representada pelos medievas como a hora escura da alma, mas hoje pode ser nomeada como crise da meia-idade, depressão, ou um sofrimento intenso que antecede à iluminação.

Dante só desce ao Inferno na meia-idade. Na verdade, é exatamente assim que começa o poema:

“A meio caminho da jornada,

Achei-me perdido numa selva tenebrosa,

Tendo perdido o caminho da estrada.”

Dante Alighieri, A Divina Comédia.

Dante se encontrava em um período de angústia e de sofrimento, a floresta simbolizando esse estado de confusão. É justamente no meio da vida que o homem passa a reavaliar as coisas, percebendo que aquilo que parecia ser importante para ele até agora se revelou nada mais do que pó e mesquinharias. Muitos são acometidos por um pesar e um vazio profundos, já que não podem mais fugir da sombra e vão precisar recolher todas as projeções que aparentavam um sentido para suas vidas. É aí que começa a descida ao próprio Inferno.

No entanto, Dante não faz o seu percurso pelo Inferno sozinho. Ele recebe a ajuda de um outro poeta dos tempos antigos chamado Virgílio, que viveu no primeiro século a. C., mais conhecido pela epopeia Eneida, que narra a trajetória de Eneias depois da destruição de Tróia pelos gregos.

Virgílio representa a razão humana na Divina Comédia: a capacidade de refletir, julgar e de se orientar pela vida. Ele corresponde à função do “Logos”, que organiza a experiência e protege o ego quando ele encara a sombra. A razão estabelece limites, traduz imagens em conceitos e oferece disciplina para que o encontro com o inconsciente não se transforme em destruição. É preciso de uma certa frieza racional para encarar a própria sombra e não sucumbir às emoções que ela pode causar, por isso Dante escolheu Virgílio para descer ao Inferno.

Virgílio também conduz Dante em direção ao Purgatório, depois que eles sobem à superfície da Terra novamente. O Purgatório na Divina Comédia também é um lugar na Terra que fica localizado em uma montanha cujo topo quase toca o que seria o início do Céu. É a ponte entre o Céu e a Terra. É no purgatório que as almas se curam de todas as marcas do pecado para entrarem no céu sem se queimarem pelo calor de Deus.

Sob o ponto de vista psicológico, o Purgatório representa o momento em que a consciência volta do choque inicial com a sombra. Depois da descida ao próprio Inferno, o homem pode ficar meio surpreso por não ver muitas mudanças práticas repentinas que talvez estivesse esperando. Mas não é assim que funciona. Foi o estado de consciência que mudou. Já não há mais a tensão violenta que o angustiava, a dúvida paralisante que o congelava.

Esperando um milagre ou uma revelação, o homem percebe que voltou para a sua vida normal de antes. Sim, ele voltou, mas agora ele entende que a vida não é feita de momentos decisivos, nem de momentos perfeitos para que algo aconteça; ela simplesmente acontece com a prática diária e paciente.

Ele entendeu que não é ele que pergunta o que precisa fazer com a sua vida, é a vida que pergunta para ele o que ele quer fazer dela. E, parafraseando o psiquiatra Viktor Frankl, ele só responde à vida sendo responsável, e se é responsável entendendo que é preciso suportar a perda que cada decisão carrega. Isso significa deixar para trás a fixação nas possibilidades.

O melhor remédio contra a inflação do ego é a vida ordinária, o dia a dia. O Homem do Subsolo de Dostoíevski, por exemplo, só vivia procurando, em suas palavras, o “belo e o sublime”, deixando as coisas mais terrenas de lado, vivendo sempre frustrado e indeciso.

O resultado do Purgatório é um “eu” mais leve, capaz de sustentar ambivalências sem colapsar; não é perfeição, mas maturidade suficiente para prosseguir à etapa espiritual representada pelo Paraíso – a aproximação do verdadeiro Self. Assim, o Purgatório é o meio do caminho da individuação: uma espécie de oficina onde traumas, vícios e talentos encontram forma humana, preparada para dialogar com dimensões mais altas de si mesma.

Hamlet não alcançou esse estado de consciência de purgação que Dante alcançou pois Hamlet não aguentaria o peso dessas implicações. Mas a sua não escolha acabou sendo uma escolha de qualquer forma, ainda que bem pior do se ele tivesse feito alguma de forma consciente.

Na subida ao topo do Purgatório, Dante começa a adentrar no Paraíso. O Paraíso da Divina Comédia é descrito da forma como os medievais entendiam o universo naquela época: o céu era dividido em nove esferas celestes onde a Terra ficava no centro e era orbitada, respectivamente, pela Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Depois de Saturno há o Firmamento das Estrelas Fixas e o Primeiro Movente, o lugar onde Deus gera o primeiro movimento que move todas demais esferas, causando assim o tempo. O Primeiro Movente representa o impulso puro do amor divino: a energia que põe tudo em curso sem necessitar de causa anterior.

Depois do Primeiro Movente, há ainda outro céu chamado Empíreo, um reino que existe fora do Espaço-Tempo e de qualquer movimento, onde se encontram os anjos e o mistério da trindade cristã.

É a partir do topo do Purgatório que o guia de Dante passa a ser Beatriz. Virgílio, que representava a razão, agora já bem compreendida para enfrentar a sombra e as lutas diárias, representada pelo Purgatório, dá espaço para as outras funções da psique que a razão não consegue abarcar. É aqui que surge a figura de Beatriz.

Na história de Dom Quixote, Dulcinéia, a princesa idealizada, foi inspirada em uma mulher real que Dom Quixote vira algumas vezes em sua vida. Na Divina Comédia, Beatriz também foi inspirada em uma mulher real por quem o próprio Dante se apaixonou quando era jovem. Beatriz, em termos simbólicos, é justamente a anima de Dante, assim com Dulcineia é a anima de Dom Quixote — o feminino interior que dá vigor e motivação ao homem. Beatriz é aquela força que alarga o olhar humano além da razão, por isso ela é a guia de Dante através do Céu, e não mais Virgílio.

Somente a razão não é suficiente para abarcar a totalidade da vida. Beatriz aparece no ponto onde a razão termina. Ela personifica o impulso inicial de elevação — o amor que move e ilumina. Ela é a fé, a intuição espiritual e a função psíquica que liga o ego ao mistério e desperta o homem para a capacidade de amar o que está além de si mesmo. Essa capacidade é encontrada dentro do homem, no ponto onde a razão já não consegue mais chegar.

Durante a trajetória de Dante aos círculos celestes, ele pergunta à Beatriz suas dúvidas. No entanto, Beatriz as capta mesmo antes de Dante conseguir exprimi-las em palavras. Isso porque Beatriz é a intuição de Dante, o ato de captar uma verdade de relance, sem os passos discursivos. Só depois da apreensão dos conceitos em forma simples é que a razão pode atuar e chegar em conclusões. Ou seja, sem as outras funções da psique, da qual Beatriz representa a intuição, Dante não conseguiria se elevar à totalidade.

Uma coisa que não foi dita propositalmente até agora, é que foi Beatriz quem encontrou Dante perdido na floresta no começo do poema. Foi ela quem chamou Virgílio e pediu para que ele acompanhasse Dante até o Inferno. Em outras palavras, a intuição fez com que a razão pudesse trabalhar da melhor maneira possível.

Aqui também percebemos que o homem bidimensional e o homem quadrimensional têm pontos em comum. Ambos têm o feminino presente, que lhes dá ânimo para a vida, para a ação e para a o dia a dia. Dom Quixote tem a sua Dulcinéia, Dante, a sua Beatriz. Hamlet, o homem tridimensional e neurótico, fez questão de afastar qualquer figura feminina da sua vida. Ele tem o feminino destruído, tanto interno, quanto externamente, através de Ofélia e das outras mulheres da peça.

Depois que Beatriz conduz Dante até o Primeiro Movente, ela volta à sua posição na Rosa Celeste, lugar em que se encontra, além de outras figuras, a própria Maria e os apóstolos. Depois que ela se vai, São Bernado de Claraval aparece para conduzir Dante através do Empíreo.

São Bernado foi um monge que se tornou uma das figuras mais influentes do século XII, sendo responsável pela fundação de vários mosteiros ao redor da Europa. Na Divina Comédia, São Bernado representa a sabedoria contemplativa, quando a razão, representada por Virgílio, e a graça iluminadora e intuitiva, representada por Beatriz, já cumpriram seus papéis. A escolha de Dante por São Bernado se deve ao fato dele ser conhecido por enfatizar essa contemplação e o silêncio na vida.

Contemplação é o ato de manter a atenção voltada a algo — uma paisagem, um texto sagrado, a própria respiração — sem a urgência de obter, julgar ou concluir. Nesse estado, a mente deixa de manipular o objeto e passa a acolhê-lo; o que se observa tem tempo de revelar camadas que o olhar apressado não alcança. Espiritualmente, contemplar é se demorar na presença de um mistério até que a fronteira entre sujeito e objeto amacie e surja um senso de comunhão silenciosa. Em outras palavras, é quando amor e sabedoria se unem, onde se é capaz de reconhecer a realidade tal como ela é antes de qualquer rótulo. Como Jung escreveu uma vez em uma carta:

“O resto é silêncio! Essa certeza cresce a cada dia, à medida que a necessidade de comunicar diminui.”

Carl Jung, Cartas, vol II.

Bernardo assume o papel desse silêncio inspirador e Dante, sustentado por essa presença dupla de amor e sabedoria, intui que tudo o que vira era em sua vida e nas esferas celestes era sombra de uma realidade cuja substância é o simples ato de amar. Assim, cada esfera celeste revela um aspecto da capacidade humana de amar — ela é imperfeita na lua, ambiciosa em Mercúrio, ardente em Vênus, luminosa no sol, combativa em Marte, justa em Júpiter, contemplativa em Saturno, triunfante nas estrelas, dinâmica no Primeiro Móvel — até que, no Empíreo, o amor deixa de ser um traço e se mostra como o próprio tecido do ser de todas as coisas.

É aqui que a psicologia analítica entende esse estado de amor e sabedoria como sendo parte da manifestação do arquétipo do velho sábio. A psique não precisa de novas explicações, ela simplesmente silencia e se sustenta em sua quietude. Esse é um nível que somente os santos, os sábios ou os mais simples de coração talvez possam chegar.

Quando a jornada chega ao limite das próprias forças, fica claro que nenhum cálculo psicológico, nenhum ritual de disciplina, nenhuma façanha intelectual conclui o processo; a travessia só se fecha quando a psique se rende a algo que a ultrapassa. Robert A. Johnson, ao comentar o Fausto de Goethe, lembra que a personagem Fausto pode acumular experiência, magia e conhecimento, mas só ascende à totalidade no instante em que aceita o toque do “eterno feminino” — a figura da graça que o eleva sem exigir uma moeda de troca.

Na Divina Comédia acontece o mesmo: depois de registrar pecados, purgar afetos e ordenar as faculdades, Dante não força a visão do Empíreo; ele a recebe quando Beatriz, personificação da misericórdia, o apresenta à luz que tudo sustém e deixa o final para São Bernado concluir com sua contemplação.

A lição, então, é simples, mas difícil de aceitar: o esforço prepara, mas não conquista; quem busca a redenção precisa trabalhar até onde consegue alcançar e, nesse ponto exato, abrir mão de possuir o resultado e deixar que a Graça aconteça. A Graça, portanto, se acolhe em vez de fabricar.

A Graça é a ideia de que existe um bem-querer que nos alcança sem ser comprado nem merecido. Ela não é exclusiva da tradição cristã, ela é um arquétipo religioso universal que expressa a intuição de que, em algum ponto do caminho, a realidade maior dá um passo em nossa direção — e esse passo faz toda a diferença. No fim, não há nenhuma garantia de que seremos salvos pelas nossas ações ou pelas nossas intenções. A isso cabe o papel da Graça.

Nos versos finais da Divina Comédia, Dante, já no Empíreo, vê um clarão de Luz: ali, a forma de Deus aparece como Trindade. Sua mente tenta compreender o que está acontecendo, mas é como tentar desenhar um círculo quadrado. A inteligência para onde começa o inefável. Ele sabe que viu, mas já não consegue reter detalhes; resta-lhe apenas a certeza de ter sido tocado por algo absoluto.

Essa experiência final é tida como o encontra com o Self, aquilo que está dentro de nós, mas é maior do que nós. É o símbolo da totalidade psíquica. Vontade e desejo deixam de conflitar, pois o ego já está em comunhão com o Self, e passam a mover-se “por amor”, isto é, pela energia unificadora que Jung vê como a meta da individuação.

O Paraíso descreve o estado em que partes, antes opostas, começam a cooperar. A energia vital circula de maneira uniforme, pois já não precisa sustentar conflitos internos. O eu observa pensamentos e emoções sem se confundir com eles; isso abre espaço para decisões guiadas por valores mais sólidos. A vida externa se alinha gradualmente: trabalho, relações e rotina refletem prioridades que nasceram de dentro. Não há euforia constante, mas há serenidade, sustentada pelo conhecimento de si mesmo.

Na prática, esse ponto se traduz em mudanças objetivas. Há ajuste na forma de usar o tempo e o dinheiro, clareza na comunicação afetiva, retomada de projetos abandonados por medo ou culpa. A motivação deixa de depender de reconhecimento imediato e passa a surgir do prazer de contribuir. Quando surgem contratempos, a resposta já não é fugir ou dramatizar. A pessoa se volta para a experiência, pergunta o que precisa ser visto e faz a correção necessária e simplesmente segue a partir daí.

O ciclo de Dante traçado na Divina Comédia não garante o fim definitivo dos conflitos. Ele oferece um método para lidar com eles. Sempre que um novo aspecto não reconhecido se manifesta, os mesmos passos se aplicam: observar, nomear, trabalhar, integrar e, por sim, silenciar. Com a prática, o movimento se torna natural. A psique aprende a confiar no processo.

Dom Quixote, Hamlet e Dante, nos fazem perceber nossas próprias máscaras, feridas e angústias; ao longo do vídeo percebemos que o ideal sem raízes sólidas, cedo ou tarde, se quebra; que a dúvida sem ação corrói, e que só a descida consciente ao nosso Inferno permite voltar à superfície inteiro, habitado por um silêncio que nutre. O percurso desses personagens revela que nenhum título, teoria ou vitória exterior conclui a história; aquilo que sustenta a vida nasce de um ponto onde razão e as conquistas se rendem a uma fonte maior, inominável, que continua a mover as estrelas e o coração, mesmo quando a voz, um dia, se cala para sempre. Se cada etapa te trouxe espanto, dor ou claridade, é porque a consciência, uma vez tocada pela verdade, nunca se instala definitivamente — ela segue pulsando, lembrando que crescer não é acumular feitos, mas abrir espaço para que o amor que sustenta todo os céus, as estrelas e as coisas na Terra, encontre sua forma em gestos humanos.

“Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.”

Santo Agostinho, Comentário à carta de João.

1 comentário em “Os 3 Níveis da Consciência Masculina”

  1. Lucas Alves Felix

    Meu caro, boa-noite. Gostaria de agradecer pelo seu trabalho. Tem me ajudado bastante a procurar pelo autoconhecimento. Eu trabalho como operador de frente de caixa e o meu trabalho é mentalmente extenuante. Lido com pessoas arrogantes, nervosas e agitadas com bastante frequência. E esse é o meu primeiro emprego. Portanto tem sido uma experiência desafiadora, mas com muito aprendizado. No entanto, recentemente, quando eu estava sentado esperando os clientes chegarem, me peguei em um dilema: “O que eu estou fazendo aqui?” Não me referia apenas ao fato de estar ali, no mercado, sentindo uma sensação de regressão mas, sim, ao fato de não saber qual o meu real propósito neste mundo. Não sabendo o que fazer para organizar os meus pensamentos, comecei a escrever, como se fosse um apelo, uma necessidade da alma. Eis o que escrevi. “Ser ou não ser, eis a questão. O que é eterno neste universo? Um dia, tudo que conhecemos desaparecerá: as pessoas que amamos, um dia, morrerão; nosso conhecimento acerca do mundo desaparecerá ao nos deleitarmos em um sono eterno chamado morte. Porém, dentro de cada ser vivente, há uma tocha que clama pela vida. E é esta tocha que devemos conservar dentro de nós; pois, do contrário, morreremos ainda em vida.” Eu não sei o motivo, mas ao terminar de escrever estas palavras no dia em que eu as escrevi, tive vontade de chorar. “Por que estou aqui?” Por meio do estoicismo e da filosofia cristã tenho tido uma visão mais clara sobre como agir diante das circunstâncias externas e de como encontrar “paciência na turbulência”, por assim dizer. Eu tentei fazer terapia para conseguir compreender melhor a mim mesmo, mas receio que o meu psicólogo tenha desistido de mim. Por isso, venho tentando achar consolo por meio da filosofia. “conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”.

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