Olhe para o que você tem medo — Carl Jung
Transcrição do vídeo
Cenário
- Paciente (P): Homem, 28 anos, trabalha como programador das 8h às 18h. Mora com a esposa, mas relata grande dificuldade em expressar seus sentimentos, sobretudo a raiva, e sente-se constantemente paralisado em seus pensamentos.
- Terapeuta (T)
T (acolhendo o paciente):
Boa tarde, Filocteto. Como tem passado desde a nossa última conversa?
P:
Boa tarde. Estou bem, mas ainda carrego aquela sensação de raiva que não consigo colocar pra fora. Parece que fico com a cabeça cheia de pensamentos, mas na hora de agir ou falar, não sai nada.
T:
Entendo. Vamos falar mais sobre essa sensação hoje.
Observação do padrão e identificação de emoções
T:
Na semana passada, você comentou que, no trabalho, às vezes sente vontade de reagir quando algo te incomoda, mas acaba reprimindo a raiva. Como foi nesse período?
P:
Tiveram alguns momentos em que um colega criticou minha parte no projeto de forma que considerei injusta. Senti o sangue ferver, mas simplesmente sorri e concordei, sem questionar. Depois, fiquei com a raiva entalada. Quando cheguei em casa, não consegui conversar direito com a minha esposa — só me fechei.
T:
Então, de um lado, você sente a raiva surgir intensamente; de outro, você a reprime e não expressa, como se houvesse uma barreira que o impede de colocar isso pra fora. E essa tensão se estende para a sua relação em casa?
P:
Sim, exatamente. A raiva não desaparece; ela fica na cabeça. Me perco nos pensamentos sobre o que eu “deveria ter dito”. Às vezes, passo horas remoendo isso.
T:
E como você acha que esse comportamento afeta a sua vida?
P:
Se alguém por quem tenho consideração me criticou, imediatamente mudo meu olhar e começo a sentir ódio da pessoa. Antes, eu gostava dela e conversávamos normalmente, mas depois que ela disse algo que eu não concordo, simplesmente não consigo retrucar e me afasto. Muitas pessoas acham estranho quando eu faço isso.
T:
E o que você acha que aconteceria se você retrucasse?
P:
Eu penso que, para manter um relacionamento com qualquer pessoa, não pode haver pontos de discordância. Penso que, para deixar as coisas em paz, a outra pessoa precisa ficar sempre confortável. Se eu falasse o que acredito, ela sentiria ódio e se afastaria de mim.
T:
Assim como você se afasta dela por não conseguir falar o que acredita?
P:
(Pensativo) pois é, talvez eu faça justamente aquilo que temo que os outros façam comigo.
Introduzindo a ideia de sombra
T:
Sabe, Filocteto, nós costumamos chamar de “sombra” esses conteúdos que, por alguma razão, aprendemos a reprimir ou negar em nós mesmos. Muitas vezes, eles se relacionam a emoções como a raiva — que a sociedade diz que não podemos sentir ou demonstrar.
É chamada de sombra justamente porque ela lhe persegue aonde você for. Então, seria mais prudente aprender a compreendê-la, em vez de tentar negar que essa parte existe dentro de nós.
Você já se perguntou se existe alguma parte de você que considera “inaceitável” sentir raiva ou discordar dos outros?
P (pausando para refletir):
Acho que sim. Sempre ouvi que homem bravo é “agressivo”, “irracional” e que não devia explodir. Acabei me habituando a ser “tranquilo”, a não criar conflito. Mas por dentro, sinto que estou cheio de coisas que queria falar.
T:
Isso pode ser a sombra se manifestando: a raiva legítima que você possui, mas que teme ou julga como algo ruim. Assim, ela fica reprimida, e esse conteúdo “negado” se expressa de formas das quais você não tem controle.
Explorando o conteúdo emocional
T:
Você se lembra de algum sonho recente ou alguma imagem que tenha surgido e que possa ajudar a entendermos melhor essa raiva?
P:
Sim… tive um sonho estranho ontem à noite. Eu estava em um quarto escuro e via uma figura que se parecia comigo, mas estava com o rosto distorcido, furioso. Ela me encarava como se quisesse me atacar. Senti muito medo e, ao mesmo tempo, raiva dela.
T:
Essa figura com o rosto distorcido pode simbolizar justamente algo que faz parte de você, mas que está oculto ou reprimido. Como você se sentiu quando acordou?
P:
Acordei assustado, com o coração disparado, mas também intrigado. No sonho, me sentia culpado por aquela figura estar tão irritada comigo. Parecia que eu tinha feito algo muito errado.
T:
Vamos olhar para essa raiva: se você pudesse falar diretamente com a figura do sonho, que mensagem acha que ela lhe daria?
P (refletindo):
Talvez ela diria que eu estou fingindo ser mais calmo do que realmente sou… Que eu reprimo a raiva o tempo todo, mas, no fundo, estou muito magoado ou ressentido. E para não transparecer não a respeito disso, eu me fecho cada vez mais.
Identificando bloqueios e construindo estratégias
T:
Exato. Então, essa sombra poderia estar mostrando uma parte sua que se sente injustiçada, ferida e que precisa se defender. Na vida cotidiana, você pode não querer reconhecer essa necessidade de se afirmar ou de expressar a raiva de forma saudável. Assim, ela “escapa” pelos cantos e faz você se afastar por medo de se machucar.
Vamos fazer um exercício rápido: feche os olhos por alguns instantes, respire fundo e tente visualizar novamente aquele quarto escuro do sonho. Veja se consegue visualizar a figura furiosa ali.
P (fecha os olhos e respira):
Sim… Ela está lá. Ainda sinto raiva, mas agora também sinto pena dela.
T:
Tente dizer a ela: “Estou te vendo. Estou disposto a entender a sua dor e a sua raiva.” Consegue fazer isso em pensamento?
P (concentrado):
Consigo… (pausa) Me sinto um pouco mais calmo agora, como se ela não quisesse me atacar tanto.
T:
Agora, abra os olhos e me conte: o que te impede de expressar essa raiva de forma assertiva?
P:
Medo de ser julgado pelas pessoas. Medo de perder meu emprego, de parecer desequilibrado ou de decepcionar minha esposa. Acho que criei uma imagem de “cara tranquilo” e não quero romper com isso.
T:
Compreendo. A sombra costuma carregar aquilo que achamos inaceitável ou incompatível com a imagem que construímos de nós mesmos. Mas, ao não permitir que a raiva apareça, ela explode internamente e gera esse sofrimento.
Podemos trabalhar para que você encontre maneiras saudáveis de expressar o que sente, sem perder o controle ou ferir os outros. O primeiro passo é reconhecer que essa raiva faz parte de você.
A raiva, nesse caso, não é nossa inimiga; ela está mostrando uma questão que você precisa reconhecer: talvez limites não estabelecidos, rancores antigos ou necessidades que você ignora.
P:
É impressionante como me sinto diferente só de aceitar que essa parte existe. Mas ainda me sinto desconfortável.
T:
É natural. O processo de integrar a sombra não acontece de uma hora para outra. Envolve autocompaixão, observação e, principalmente, a disposição de reconhecer que você também tem esses sentimentos. Quando você começar a notar essa raiva surgindo no dia a dia, lembre-se dessa figura. Pergunte-se: “O que eu realmente estou sentindo ou precisando agora?” Em vez de reprimir ou negar, procure entender a origem dessa emoção.
Esse é o início de um diálogo com a sua sombra. Procure sempre conversar internamente com essa parte. Ela precisa de atenção e quer ser percebida. Do contrário, ela se mostrará por caminhos que você não tem controle.
A raiva não é necessariamente ruim; ela só precisa de um canal adequado para se expressar. Quando você começa a acolher esse sentimento, diminui a tensão que estava sufocando você.
P:
Vou tentar. Acho que preciso parar de negar essa parte em mim que fica brava ou indignada e tentar compreender por que ela surge. Nunca pensei que pudesse “conversar” com a minha raiva dessa forma.
Encerramento e continuidade do processo
T:
A ideia é que, aos poucos, você possa integrar essa parte da sua personalidade sem se sentir ameaçado. Assim, se torna mais fácil expressar seus sentimentos, inclusive com sua esposa ou colegas de trabalho, de maneira mais natural e menos desgastante ou exagerada.
O mais importante é olhar com curiosidade em vez de condenação. Então será mais fácil se aproximar desses conteúdos.
P:
Entendi. Obrigado pela sessão de hoje. Estou disposto a continuar esse trabalho.
T (sorrindo):
Ótimo. Vamos encerrando por aqui. Qualquer dúvida ou desconforto que surgir, faça anotações e traga para discutirmos na próxima sessão.
P:
Tudo bem. Até a próxima.
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