O brasileiro é inimigo do silêncio — como o barulho afeta sua vida
Transcrição do vídeo
Você está tentando estudar no seu quarto ou se concentrar para elaborar um projeto em uma tarde de final de semana quando começa a tocar pisadinha na casa do vizinho; você está tentando ler um livro na praia quando um grupo de pessoas para do seu lado e liga uma caixinha de som com uma batida de funk; você está tentando descansar embaixo de uma árvore em um dia ensolarado no parque quando começa a tocar trap no celular de outra pessoa que está sentada na árvore do lado;
você está tentando assistir a um filme no cinema e um casal do seu lado não para de comentar cada cena do filme, e um deles até tenta demonstrar para o outro quão previsível é o roteiro, querendo antecipar tudo o que vai acontecer; você vai até uma cachoeira ouvir o som das águas, mas tudo que consegue escutar é um sertanejo universitário da caixa de som de um carro estacionado.
Você com certeza já passou por situações, senão iguais a essas, pelo menos semelhantes. Quem mora em grandes cidades, talvez já tenha se acostumado com os ruídos constantes de fundo, servindo como uma espécie de trilha sonora da vida: buzinas por toda parte, músicas ambientes em cada loja e em cada restaurante, cultos religiosos barulhentos, motos sem escapamento, etc.
O barulho se tornou algo constante nas nossas vidas e o silêncio parece que se tornou um incômodo. E parece também que o incômodo causado pelo silêncio se alastrou para a nossa vida pessoal. Qual foi a última vez que você almoçou sem assistir a um vídeo no Youtube, estudou sem escutar música no fone de ouvido ou desligou a televisão quando não estava assistindo? A todo custo, estamos tentando evitar cada vez mais o silêncio, preferindo uma companhia artificial do que a nossa própria companhia.
O som, entretanto, desempenha um papel central na forma como os brasileiros se comunicam e compartilham experiências. O Brasil possui uma forte cultura baseada na sociabilidade e no coletivo. O que contribui muito para isso é o ambiente tropical em que vivemos, que favorece a vida ao ar livre, com ruas, praças e praias servindo como espaços de convivência e lazer, onde o barulho e a música se tornam indispensáveis.
Diferente de países frios, onde a socialização tende a ocorrer em ambientes fechados e controlados, no Brasil a interação acontece mais em locais abertos e públicos.E tudo bem, nós gostamos de um churrasco com os amigos, um barzinho com música e shows nacionais e internacionais. Existem ambientes apropriados para escutar música alta e fazer barulho. Se tudo isso, de certa forma ajuda na socialização e na nossa vida exterior, o silêncio, por outro lado, ajuda na nossa vida interior, e talvez você devesse dar mais atenção para ele, o silêncio.
Para muitas pessoas, o silêncio é extremamente amedrontador porque permite deixá-las sozinhas consigo mesmas. Sem um ruído vindo de fora para interromper o fluxo de pensamentos, as pessoas poderiam começar a matuta-los, gerando uma enorme angústia ao perceberem que suas vidas são vazias por dentro, e o som é apenas um ruído que encontraram para tentar preenchê-las por fora. O monge budista Nhat Hanh escreveu algo parecido:
“Tenho a impressão de que muita gente tem medo do silêncio. Estamos sempre consumindo alguma coisa (textos, música, rádio, televisão ou pensamentos) para ocupar o espaço vazio.[…] O excesso de estímulos facilita a distração do que sentimos. Porém, quando existe o silêncio, tudo isso se apresenta com bastante clareza.”
Thich Nhat Hanh, Silêncio.
Em seu livro Silêncio, Nhat Hanh explica que o ser humano consome quatro tipos de alimentos. Os alimentos comestíveis, ou seja, aqueles que ingerimos pela boca; os alimentos sensoriais, aqueles que ouvimos, lemos, assistimos e tocamos. Os alimentos volitivos, isto é, tudo que alimenta nossos desejos e ações; e por fim os alimentos da consciência que alimentam tanto nossa consciência individual quanto nossa consciência coletiva.
Todos esses alimentos podem ser saudáveis ou não, nutritivos ou tóxicos, construtivos ou obsessivos, dependendo do que consumimos, do quanto consumimos e do quão conscientes estamos de nosso consumo. E só podemos estar conscientes daquilo que consumimos se reservarmos um tempo para o silêncio, onde é possível fazer uma análise constante dos nossos estados interiores:
“A consciência é a chave da nossa proteção. Sem proteção, absorvemos muitas toxinas. Sem perceber, ficamos repletos de sons e intoxicamos nossa consciência, e tais coisas nos deixam doentes.”
Thich Nhat Hanh, Silêncio.
Sem o silêncio, a capacidade criativa, a vida interior e o exame da própria consciência ficam impossíveis. É no silêncio que nos encontramos, e para muitas pessoas o verdadeiro problema pode ser justamente se encontrar, pois o silêncio é praticado na solidão, e a solidão, para alguns pode ser perigosa. O filósofo alemão Schopenhauer possui uma visão agressiva quanto a isso. Ele escreve:
“Quem não ama a solidão, tampouco ama a liberdade. […] Cada um irá fugir da solidão, suportá-la ou amá-la em proporção exata com o valor do próprio eu. Pois nela o miserável sente toda a sua miséria, o grande espírito a sua grandeza, isto é: cada um sente-se tal qual é.”
Schopenhauer, Aforismos Para a Sabedoria de Vida.
Segundo Schopenhauer, o silêncio e a solidão permitem abarcar os nossos males com a vista. Ao contrário, quando estamos dispersos nos barulhos da sociedade, ela oculta os nossos males sob a aparência de passatempos, prazeres sociais e comunicações infrutíferas na maioria das vezes.
Na multidão, nós podemos nos perder facilmente; somos atravessados por uma coletividade que esconde nossa personalidade individual, sentimos que não precisamos ser tão responsáveis e comedidos, justamente porque o espírito de rebanho suplanta nossa personalidade individual e abre espaço para uma personalidade coletiva, onde todos se tornam parte de uma massa.
Mas não é estranho que muitas vezes nos voltemos a esse estado de rebanho. Durante grande parte da evolução humana, nossos ancestrais não tinham um senso bem desenvolvido de individualidade – isto é, eles não sentiram ou perceberam estar separados do grupo ou da tribo. Em vez disso, seu senso de si mesmo estava intimamente ligado à sua participação em uma tribo e, portanto, sua capacidade de pensar e agir de forma independente era limitada.
O termo participation mystique, cunhado pelo antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl, capta a essência dessa psicologia de rebanho. A participation mystique refere-se à maneira pela qual o homem primitivo foi psicologicamente fundido com os outros, isto é, sua psique existente em um estado de unidade, ou identidade inconsciente, com seu clã. A evolução da consciência, pelo contrário, pressupõe justamente um afastando temporário do grupo para se ter um senso da própria individualidade, como explicou o terapeuta junguiano Erich Neumann:
“O grupo [ou rebanho] […] é caracterizado pela preponderância primária de elementos e componentes inconscientes, e pela recessão da consciência individual […] quando a consciência é insuficientemente diferenciada do inconsciente e o ego do grupo, o membro do grupo se encontra tanto à mercê de reações de grupo quanto de constelações inconscientes. O fato de ele ser pré-consciente e pré-individual o leva a experimentar e reagir ao mundo de uma maneira mais coletiva do que individual, e mais mitológica do que racional.”
Erich Neumann, Origens e História da Consciência.
Se não voltarmos constantemente à nossa individualidade, fazendo um exame de consciência através do silêncio, o coletivo ou a massa vai acabar nos sugando para dentro dela, em um processo que Carl Jung chama de regressão psicológica, que é quando forças inconscientes primitivas, que são mantidas sob controle pelo discernimento da consciência, pelo livre arbítrio e pela responsabilidade individual, vêm à superfície da psique e as pessoas começam a pensar e agir de maneiras perturbadas e destrutivas, contaminadas por uma personalidade de rebanho.
Isso acontece muito durante as brigas entre torcidas de futebol, manifestações que acabam degringolando ou em surtos de pânico coletivo devido ao consumo de conteúdos sensacionalistas apresentados pelas mídias de comunicação.
Um dose de individualidade é necessária para combater as forças impetuosas da coletividade, e uma certa dose de coletividade também é necessária para combater a subjetividade aniquiladora que a individualidade pode apresentar.
Contudo, além de permitir um exame da consciência, prevenindo que sejamos contaminados pela mentalidade de rebanho; de permitir tomar melhores decisões e de permitir dosar nossas ações e nossos relacionamentos, o silêncio ainda nos permite criar projetos para a vida. O cristão e filósofo francês Sertillanges, no seu livro Vida Intelectual, escreve que
“O retiro é o laboratório do espírito. A solidão interior e o silêncio são suas duas asas. Todas as grandes obras foram preparadas no deserto [no silêncio]. Profetas, apóstolos, pioneiros da ciência, inspiradores de todas as artes, todos pagam um tributo à vida silenciosa.”
Sertillanges, A Vida Intelectual.
Sertillanges fala que devemos cultivar um silêncio interior. O silêncio interior significa ter a capacidade de controlar os nossos desejos e nossas vontades mais destrutivas. Nós conseguimos fazer isso através dos estudos, da leitura e do convívio social na medida certa.
E tudo isso só é possível se conseguirmos suportar o silêncio. Nos dias de hoje, sentar e permanecer em silêncio pode ser extremamente desafiador não só exteriormente, mas interiormente. Com a nossa vida acelerada, o silêncio pode vir acompanhado do tédio, e rapidamente vamos pegar o nosso celular para tentar afastá-lo. Mas ao fazermos isso, tudo que estamos fazendo é destruir um potencial criativo enorme que só os momentos de tédio proporcionam.
E é claro que não estou dizendo para você nunca mais escutar músicas ou algo parecido, óbvio que não. Eu mesmo produzo os meus vídeos com música de fundo e às vezes estudo com alguma música instrumental. Não vou parar de ouvir música, mas também não posso esquecer do silêncio.
Um exercício para começar a praticar a vida interior é reservar alguns minutos do dia para se afastar do celular, seja pela manhã, para dar uma caminhada no quintal na varanda ou no quarteirão da casa, ou pela noite, antes do sono, para sentar em um lugar confortável e tentar diminuir o fluxo de pensamentos, suportando o tédio que dele pode decorrer. Certamente, os primeiros minutos serão de pura agonia e tortura.
Mas, se conseguirmos suportar por mais 5 minutos, podemos perceber coisas e ter ideias que jamais poderíamos ter imaginado no barulho e na multidão. Depois disso, tente pegar um caderno e escrever aquilo que veio a sua mente, sem se preocupar com o estilo ou com o conteúdo, mas apenas para concretizar aquilo que você pensou.
Um outro exercício que pode ser feito é tentar fazer alguma atividade que normalmente você faria usando o celular, como almoçar ou estudar, sem usá-lo. Tente, por exemplo, almoçar sem assistir vídeos, ou dirigir sem ouvir podcasts, ou estudar sem ouvir música pelo menos algumas vezes. Também, caso a televisão esteja ligada na sua casa sem que ninguém esteja assistindo, desliga-a. E se reclamarem que você desligou a televisão, então tudo bem, pega o seu celular e mostre a essa pessoa este vídeo. Precisamos, mais do que nunca, tornar o silêncio mais familiar e menos amedrontador.
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