Esta cena da sua infância vai te acompanhar pelo resto da vida — Complexo de Édipo

Você já ficou irritado com o seu pai sem saber explicar por quê? Já sentiu um ciúme estranho quando sua mãe dava atenção a outra pessoa? E se eu te dissesse que esses comportamentos fazem parte de uma história que todo ser humano, sem exceção, encena durante a infância e que volta na idade adulta através do modo como escolhemos nossos parceiros, tratamos as autoridades, lidamos com a culpa e com as perdas?

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, chamou essa história que encenamos na infância de Complexo de Édipo. É o laboratório onde o nosso eu aprende que o querer tem preço, de que há leis, e de que existem outras pessoas com vontades diferentes das nossas; e é ali que nascem as rivalidades, as idealizações e as culpas que mais tarde parecem que “apareceram do nada”.

Se você já se pegou repetindo o mesmo padrão afetivo ou oscilando entre idealizar e desprezar quem você ama, é provável que esteja reproduzindo a mesma cena dessa peça que produzimos na infância. Entender o Complexo de Édipo é entender a arquitetura íntima do nosso desejo, dos nossos limites e, principalmente, reconhecer por que certas escolhas parecem inevitáveis e por que alguns conflitos retornam nas nossas vidas, mudando só os personagens.

Capítulo 1 – O que é o complexo de Édipo e como ele se forma

Um complexo, na teoria freudiana, é uma constelação de ideias, lembranças, fantasias e afetos (muitas vezes infantis) que ficam parcial ou totalmente inconscientes na psique do indivíduo por um bom tempo, e organizadas em torno de um núcleo de conflito — por exemplo, os pais, a sexualidade, a culpa, o abandono e por aí vai. Esse núcleo de conflito mantém uma forte carga emocional e, mesmo sem a pessoa perceber, orienta as suas percepções, suas escolhas e que se manifestam através dos sintomas (que aqui podem ser os sonhos, os lapsos de fala, as compulsões, no comportamento ou no momento da própria terapia, inclusive.

E um desses complexos que Freud identificou é justamente o Complexo de Édipo, que é uma estrutura que envolve desejo, proibição e culpa, que são experimentados durante a infância através das figuras parentais ou dos nossos cuidadores.

Freud tomou o nome desse complexo a partir do mito grego de Édipo, tal como foi narrado na tragédia Édipo Rei, do dramaturgo Sófocles. Na história, Édipo, sem saber, mata o próprio pai (que se chama Laio) e se casa com a mãe (a Jocasta). Para Freud, esse enredo dramatiza de modo exemplar o mesmo conflito inconsciente e universal que todos nós passamos na infância: O complexo de Édipo acontece quando temos um desejo amoroso pelo genitor do sexo oposto e uma rivalidade com o genitor do mesmo sexo, junto ao medo da punição de ser castrado. Freud escreveu que:

“Em extensão sempre crescente, o complexo de Édipo revela sua importância como o fenômeno central do período sexual da primeira infância. […] A menina gosta de considerar-se como aquilo que seu pai ama acima de tudo o mais, porém chega a ocasião em que tem de sofrer parte dele uma dura punição e é atirada para fora de seu paraíso ingênuo. O menino encara a mãe como sua propriedade, mas um dia descobre que ela transferiu seu amor e sua solicitude para um recém-chegado.”

Sigmund Freud, A Dissolução do Complexo de Édipo.

E uma coisa muito importante precisa ser dita: quando falamos em desejo amoroso ou sexual da criança pelos pais ou cuidadores, não estamos falando do ato sexual, mas de fantasias infantis e inconscientes que organizam o desejo e que encontram os limites na realidade; trata-se de uma linguagem psicanalítica para tratar da intimidade, do ciúme e da exclusividade, onde “casar-se com a mãe” e “destruir o pai” funcionam como metáforas para ocupar o lugar de atenção e eliminar o rival, para justamente manter a exclusividade.

Então, o foco aqui não é o ato, mas a estrutura do desejo. Isso porque o desenvolvimento sexual da criança começa muito antes da puberdade, e passa por fases anteriores ao que o ser humano entende como masculino e feminino, isto é, dos genitais que caracterizam o sexo. Para a criança, não existe masculino e feminino ainda.

Na fase em que o Complexo de Édipo acontece, mais ou menos aos 5/6 anos de idade, a polaridade não é masculino ou feminino, mas sim a polaridade “ter ou não ter”. Só com a puberdade é que a diferença masculino/feminino se alinha de fato à biologia; antes disso, a criança raciocina em chaves simbólicas de posse, falta e, sobretudo, de potência. Essa fase em que o Complexo de Édipo se encontra é chamada de fase fálica, sendo o falo um substituto simbólico do pênis, como escreveu Freud:

“[…] a característica principal dessa ‘organização genital infantil’ é sua diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo.”

Sigmund Freud, A Organização Genital Infantil.

A primazia do falo é como é chamado justamente o símbolo do órgão sexual masculino como referência de valor e de poder. O menino, ao olhar para o seu órgão genital, encontra nele um símbolo de poder, e teme que possa vir a perde-lo um dia. O psicanalista argentino Juan-David Nasio complementa da seguinte forma:

“A pregnância imaginária do pênis é tamanha que o menino faz dele seu objeto narcísico mais precioso, a coisa pela qual tem mais apego e orgulho de possuir. Assim, tal culto do pênis eleva o pequeno órgão ao nível de símbolo do poder absoluto e da força viril. Mas atenção! É também, e pelas mesmas razões, vivido como um órgão frágil, excessivamente exposto aos perigos e, por conseguinte, símbolo não apenas do poder, mas também da vulnerabilidade e da fraqueza.”

Juan-David Nasio, Édipo: O Complexo do Qual Nenhuma Criança Escapa.

Na menina, ao descobrir que o menino possui um pênis e ela não, o que está em jogo para ela, não é a posse do órgão sexual do menino, mas o símbolo que ele traz, como completa David Nasio:

“A menina é desde então presa de um sentimento que a psicanálise chama ‘inveja do pênis’ e que prefiro chamar de ‘inveja do Falo’ para enfatizar que a menina não inveja o órgão peniano do menino, mas o símbolo de potência por ele encarnado aos olhos das crianças. O pênis não a interessa, e, às vezes, inclusive a repugna; o que a interessa e apaixona é o poder que ele lhe atribui e que a deixa com inveja.”

Juan-David Nasio, Édipo: O Complexo do Qual Nenhuma Criança Escapa.

Então, é a partir dessas diferenças anatômicas e do lugar simbólico que elas ocupam no psiquismo da criança que a base estrutural do complexo de Édipo começa a tomar forma. Para isso, vamos compreender como o complexo de Édipo funciona no menino e na menina.

Capítulo 2 – O complexo de Édipo no menino

Depois que o menino descobre no seu órgão genital, não apenas o centro do prazer, mas um símbolo imaginário de poder, ele se move em direção a um outro ser humano na tentativa de satisfazer o desejo ocasionado pela sensação despertada nele. O menino, então, encontra inicialmente na mãe, ou na sua cuidadora, justamente o objeto de satisfação, mas que também pode recair na figura do pai ou de um outro cuidador. E é aqui que entra a questão do desejo incestuoso. Mas quando falamos de incesto na psicanálise, não estamos falando do ato sexual em si, mas de uma fusão imaginária que a criança confabula com o seu genitor. Uma fusão para justamente tornar um só com o outro.

No entanto, percebendo que esse desejo é impossível, o que sobra para a criança é simplesmente fantasiar. E a cena fantasiada se traduz na vida cotidiana através da fala, do comportamento ou dos sentimentos. É daí que surgiam aquelas vontades na infância de observar os nossos pais escondidos ou em situações íntimas, de mordê-los quando estavam próximos; aquelas brincadeiras íntimas que tínhamos com as outras crianças, ou de bancar o palhaço na frente dos nossos pais e de falar palavrões sem saber o que eles signifiquem.

No entanto, todas essas fantasias de prazer, ao mesmo tempo que causam a felicidade na criança, também eram acompanhadas de uma enorme angústia. Ao mesmo tempo em que o menino encontra no seu órgão genital um símbolo de prazer e poder, ele teme perde-lo de alguma forma. E é assim que se instaura o que a psicanálise chama de angústia de castração. E, novamente, a castração não diz respeito à perda literal do pênis, mas de uma angústia inconsciente que é manifestada em sonhos, na enurese infantil ou junto ao prazer que o menino experimentava ao mexer no seu próprio órgão genital. Mas se essa angústia é inconsciente, então como o menino a sentia?

Bom, era uma verdade para o menino até então a de que todos os seres humanos tinham pênis, até ele ver alguma menina, ou sua própria mãe, ou uma figura de uma mulher nua e se dar conta de que nem todos os seres humanos tem o órgão sexual que ele tem. Diante disso, o menino percebe que também pode vir a perder o seu pênis e, por consequência, todo o seu poder.

Depois dessa constatação, a fantasia da punição se solidifica, o que provoca uma verdadeira tempestade afetiva no menino. A angústia da castração é simbolizada através dos medos que sentíamos na infância, dos pesadelos e das inibições quando o desejo acelerava demais. Vamos adquirindo a consciência de que, se fôssemos muito longe com o nosso desejo, por exemplo, o de possuir e tomar a nossa mãe, poderíamos ser castrados, isto é, nosso poder poderia ser tomado ou destruído.

E quem era responsável por impor um limite no nosso desejo era a figura do pai ou do cuidador que incorporasse essa figura. O pai representa a lei, aquele que delimita a nossa realidade e impede o filho de se apropriar ou de possuir a mãe.

Aqui, então, chegamos no ponto de virada. O menino, dividido entre suas fantasias prazerosas e a sua angústia de ser castrado, isto é, de perder o seu objeto de poder, de satisfação e de virilidade, vai se dando conta de que a realidade impõe limites às suas fantasias. O menino então dessexualiza os seus pais ou seus cuidadores e afasta-os como objetos de desejo para proteger o seu corpo.

Pode-se dizer que o complexo de Édipo termina no menino quando acontece a angústia da castração, e os pais, uma vez abandonados como objetos de satisfação, são introjetados como objetos de identificação. O menino, percebendo que não pode mais tê-los como objetos de desejo, se apropria deles como objetos do seu eu, ou seja, os ideais, as angústias e a moral dos pais são passadas para o filho. O resultado dessa passagem é o que Freud chama de Superego, ou o Supereu. O biógrafo de Freud, Peter Gay, resume de forma brilhante a formação do Superego:

Os filhos primeiro escolhem seus pais como objetos de seu amor e então, forçados a renunciar a essas escolhas como inaceitáveis, identificam-se com eles ao assumir suas atitudes – suas normas, injunções e proibições – para si mesmos. Em suma, tendo começado por querer ter os pais, acabam por querer ser como eles. Mas não exatamente como eles – eles constroem suas identificações, como disse Freud, ‘não no modelo de seus pais, mas no do superego parental’. Dessa forma, o superego se torna ‘o veículo da tradição, de todas as valorações resistentes ao tempo que assim se propagaram através das gerações’. Assim, o superego, ao mesmo tempo preservando os valores culturais e atacando o indivíduo que habita, torna-se o agente da vida e da morte.”

Peter Gay, Freud: Uma Vida Para o Nosso Tempo.

Embora não possamos nos fundir com os nossos genitores, introjetamos eles e os carregamos conosco. O modo como nos comportaremos na adolescência e na vida adulta é, em grande parte, resultado dessa resolução do complexo de Édipo: ou seja, as fantasias edipianas impossíveis que experimentamos quando criança vão voltar, mas agora elas terão que enfrentar nossos pais internos, isto é, o Superego, a nossa moral e o nosso senso de culpa. E essa luta entre as fantasias e o Superego vão se manifestar na forma como escolhemos os nossos parceiros, nos nossos medos, no nosso pudor, nas nossas inibições e assim por diante.

Capítulo 3 – O complexo de Édipo na menina

Na menina, o complexo de Édipo começa da mesma forma que no menino. Inicialmente, a menina sente-se tão potente quanto o menino, deseja possuir a mãe e sustenta todas as fantasias de onipotência e exibicionismo características da fase fálica. Como o complexo de Édipo se trata do desejo da criança por um genitor ou cuidador do sexo oposto e uma rivalidade com o genitor ou cuidador do mesmo sexo, a menina, ainda desejando a mãe, vive uma fase chamada de pré-edípica.

O ponto de virada é quando ela descobre a diferença anatômica entre os sexos: no menino, ao notar que outros corpos não possuem o seu sexo, ele se sente angustiado, com medo de perder o seu também. Já na menina, ao ver que outros corpos possuem o sexo que ela não tem, isso abre uma ferida narcísica, usado, aqui, como um termo técnico. Ou seja, ao comparar o seu órgão com o do menino, a onipotência fálica, que ela julgava ter, agora passar a estar no outro.

Essa queda da onipotência inaugura a “fantasia da dor de privação”: enquanto o menino teme perder, a menina sente que já perdeu. Não é a angústia de castração que a menina sente; é a dor de ter sido privada de algo que julgava ter — e, por isso, a menina sente-se enganada, muitas vezes culpando a mãe por perceber que ela também não tem o poder fálico dos homens.

Perceba, aqui, o ponto: O menino entra no Édipo ao sentir angústia em perder o Falo, por isso renuncia o desejo pela mãe para proteger o seu órgão genital do pai castrador. Na menina, O Édipo se inicia não pela angústia de castração, mas pela dor de ter sido privada de algo que julgava ter. Enquanto o Falo para o homem é a sua própria virilidade, concentrada no pênis, para a menina, o seu Falo é o seu amor-próprio, a imagem de si mesma. Por isso que, quando ela constata a perda do Falo, o que acontece é um golpe na sua própria imagem.

Então, ao se sentir enganada, sobretudo pela mãe, que passar a ver como uma rival, a menina acaba voltando o seu desejo para o pai ou qualquer figura paterna, detentor do Falo que ela não tem, na tentativa de reparar a sua própria imagem ferida. Mas veja, o que está em jogo aqui não é o órgão sexual real, mas a imagem de poder que ele passa, como explica David Nasio:

“Eis que agora um novo personagem entra em cena: é o pai maravilhoso, grande detentor do Falo. É quando a menininha magoada e sempre ciumenta volta-se para ele a fim de se refugiar e se consolar, mas também para lhe reivindicar seu poder e sua potência. Quer ser tão forte quanto seu pai e brandir o Falo que a tornaria novamente senhora dos seres e das coisas.”

Juan-David Nasio, Édipo: O Complexo do Qual Nenhuma Criança Escapa.

A menina, então, se volta para o pai ou para uma figura paterna na tentativa de retomar aquilo que perdeu, isto é, o Falo, o símbolo de poder para reparar a sua autoimagem. Só que o pai recusa entregar o seu poder para a menina, ou seja, ele recusa ser uma exclusividade para a filha, pois ele precisa dar atenção para a mãe também. A menina, então, desesperada, muda a estratégia: já que não pode ter o Falo do pai, ela tenta ser o Falo do pai, o seu objeto de desejo e poder.

Quando a menina se volta para o pai ou para uma figura paterna como objeto de desejo, o Édipo se forma. E é nesse momento que a mãe volta para cena depois de ter sido afastada durante o período de solidão da menina, ocasionado pela dor de ter sido traída. A menina, então, se aproxima da mãe e a toma como modelo de feminilidade na tentativa de seduzir o pai ou a figura paterna, ou seja, de ser o Falo do pai, o seu objeto de potência. É nessa fase que a menina passa a mexer nos produtos de maquiagem da mãe, gosta de ver ela se vestir ou até mesmo reproduzir o que a mãe faz.

No entanto, o pai ou o cuidador recusa a filha como o seu Falo e a recusa também como objeto de desejo. A menina sofre uma dupla rejeição e o seu amor-próprio é extremamente ferido. Mas a menina, da mesma forma que o menino, vai abandonando o desejo pelos pais com o tempo, os dessexualiza e internaliza seus aspectos, sua moral e seus gestos, e no final adquire o Superego.

E há também uma diferença estrutural na resolução do complexo de Édipo. O menino saí do Édipo quando o temor de ser castrado se torna maior que o desejo pela mãe. Só que isso acontece de maneira rápida. O menino dessexualiza quase que ao mesmo tempo os seus dois genitores para preservar o seu pênis. Já a menina abandona gradualmente o Édipo porque ela não sofre o temor da castração.

O afeto central da menina é a dor — e a dor se elabora mais lentamente: ela se sente traída pela mãe, depois se volta para o pai e se sente rejeitada duplamente, uma por não conseguir o Falo e outra por não ser o Falo, ou seja, o objeto de potência ou de ser exclusividade. Por isso, o abandono do Édipo feminino costuma demorar e só se consolidar na puberdade/adolescência, quando ela já consegue desejar um homem fora do círculo familiar.

Em resumo: a resolução do Complexo de Édipo na menina é gradual porque envolve (1) sair da relação erótica com a mãe, (2) atravessar a dor da privação, (3) se voltar para o pai e sofrer duas recusas, e (4) completar duas identificações que dessexualizam pai e mãe. Não há um único “momento de corte”; há todo um trabalho psíquico de passagem.

Bom, e depois de tudo isso, você deve estar se perguntando: mas como isso se dá nas famílias não tradicionais, e como isso explica as várias neuroses, conflitos e más escolhas que fazemos na vida adulta? É o que veremos nos próximos capítulos.

Capítulo 4 — Perguntas (incômodas) e respostas sobre o complexo de Édipo

Você deve estar se perguntando: Mas e uma mãe solteira com o seu filho? Ou um casal homoafetivo que adota um bebê? Como o complexo de Édipo funcionaria quando não é uma mãe e um pai tradicionais?

A lógica do complexo de Édipo deve ser entendido como um mito, e o mito possui seus estruturas que servem como conceitos universais, ou seja, são universalmente válidos apesar das contingências.

Nessa lógica, o complexo de Édipo é um mito que possui uma estrutura triangular: há uma relação entre a mãe e a criança ou quem faça o papel da mãe, e há alguém que faça um limite nessa relação fusional entre a mãe e a criança. Esse limite é qualquer coisa (seja uma pessoa, uma ideia ou uma instituição) que desloque o foco exclusivo da mãe para a criança. E esse algo faz o papel do pai, da função paterna. Aqui, o pai é uma metáfora: é tudo aquilo que signifique uma quebra na exclusividade da mãe com a criança.

Então, se uma mãe solteira precisa deixar a sua criança com uma cuidadora para, por exemplo, trabalhar ou ir à faculdade, o trabalho ou a faculdade cumpre a função simbólica do pai, ou aquele com quem a criança foi deixada. O que importa é alguém ou algo que faça a função de separar.

Em um casal homoafetivo, vale a mesma lógica: um dos cuidadores pode encarnar a função separadora, enquanto o outro pode, naquele momento, ocupar o lugar de objeto privilegiado — e isso pode se inverter ao longo do tempo. O essencial é que a criança faça a experiência da lei (isto é, há algo/alguém que barra a fusão mãe-bebê e nomeia limites), que encontre esse agente separador no real e, com isso, constitua dentro da criança o Superego — que é a “lei internalizada” que nasce justamente dessa travessia edípica, independentemente da configuração familiar.

O que organiza o Édipo não é a biologia dos cuidadores, e sim a introdução de um limite e a possibilidade de a criança deslocar, identificar e, por fim, introjetar essa terceira posição como um eixo interno.

E dito isso, onde encontramos os restos do Édipo na nossa vida adulta? Quando olhamos de perto para os dramas discretos do dia a dia — um ciúme descabido, uma implicância despropositada com um chefe, a repetição de padrões que sempre acabam da mesma forma — o que vemos é justamente a repetição daquele enredo que encenamos na fase fálica. A ambivalência que a criança viveu diante dos pais — amor, desejo, rivalidade e medo — se instala como modelo afetivo duradouro e reaparece em todo laço que desperta desejo.

Peguemos o exemplo da dificuldade com a autoridade. Quando a lei do pai foi introjetada muito rápida e de forma inflexível na criança, ela reaparece na vida adulta como uma exigência muito forte, e quanto mais intenso foi o conflito inicial, maior tende a ser o rigor com que essa voz paterna na psique vigia, pune e acusa a nossa consciência. Não é raro que figuras de poder — chefes, professores, líderes — sejam percebidas ora como rivais a serem derrubados, ora como ideais inatingíveis que nos diminuem.

A culpa que atravessa as relações adultas também é outro fator. Quando o Édipo, que se trata dos limites do desejo, não foi bem introjetado na psique infantil, na vida adulta pode aparecer como excesso de pudor, como senso moral exacerbado, como remorso diante de qualquer prazer ou como uma autocobrança sem fim. Se, em vez de se tornar medida, essa voz se torna um carrasco, a culpa deixa de apenas orientar e passa a envenenar os momentos de alegria, os que faz com que a pessoa se sabote inconscientemente sempre que está chegando em algum lugar.

As idealizações também podem aparecer na vida adulta frutos da resolução do complexo de Édipo. Quando a lei do pai foi introjetada sob ameaças e admoestações para conter o impulso diante do objeto de desejo, sendo que essas ameaças, algumas vezes, são mais fantasiadas pela criança do que reprimendas reais que os pais fizeram, é comum que se procure na vida adulta parceiros ou mestres sem defeitos, impecáveis e infalíveis. A pessoa projeta na outra uma imagem de reverência que ela, cedo ou tarde, não conseguirá sustentar por muito tempo, o que faz com que a pessoa que projetou essa imagem sempre entre no ciclo da quebra de relacionamentos sem nenhuma explicação.

Os padrões repetitivos nos relacionamentos são outro exemplo da resolução do complexo de Édipo. Aquilo que ficou gravado como cena na infância — prazer e dor misturados, ameaças e promessas — tende a ser reencenado compulsivamente, mas agora com novos personagens na vida adulta. Às vezes, a repetição aparece como teimosia em escolher o mesmo tipo de parceiro; às vezes, como necessidade de provocar o mesmo desfecho. Você vai achar que é azar no amor e na vida, mas pode ser justamente a representação do conflito edipiano, agora deslocada para a vida adulta.  

E na nossa intimidade, seja com amigos, com a família e com o cônjuge, a ambivalência experimentada durante o complexo de Édipo também retorna: a proximidade que alimenta o desejo também é a mesma que impulsiona o sujeito a odiar. Podemos amar alguém, mas também podemos odiar alguns trejeitos e comportamentos desse alguém. Isso não torna ninguém “mau”; isso só revela que o desejo sempre é acompanhado de angústia. Por isso muitas brigas de casal ou de amigos não nascem de fatos, mas de fantasias que dão cor a esses fatos.

Bom, se nós entendermos o Édipo como um conflito entre desejo e um eu infantil que claramente não deu conta de organizá-lo, então a resolução do complexo de Édipo nunca é extremamente satisfatória e completa. O desejo infantil recalcado, ou seja, dessexualizado e introjetado na psique como Superego — e que aparece na puberdade e na vida adulta —, são desconfortáveis, mas é compatível com uma vida saudável e criativa. Nós vamos nos enciumar, nos decepcionar, cometer alguns erros e sentir uma certa ansiedade. Essas são as neuroses ordinárias que teremos que lidar no nosso dia a dia. E tá tudo bem! Sempre haverá um certo desconforto: você vai sentir raiva, se descompensar algumas vezes e sentir injustiçado, e não há grandes problemas nisso.

O problema, de fato, é quando a neurose é mórbida, aquela que realmente nos adoece e nos paralisa, decorrente de traumas e de feridas que nunca foram cicatrizadas.

Capítulo 5 — As neuroses mórbidas do Complexo de Édipo

Quando falamos de neuroses mórbidas, estamos falando de uma forma patológica do retorno do Édipo na vida adulta: a criança, diante do temor da castração, não conseguiu lidar com as fantasias da fase fálica, o que acarretou sintomas traumáticos na vida adulta. Mas o trauma pode não ter vindo apenas de uma cena fantasiada que se tornou traumática, a criança realmente pode ter sofrido abuso, maus-tratos ou negligência. A neurose mórbida é justamente o Édipo traumático; as marcas afetivas que se tornaram muito intensas no período infantil.

Existem algumas formas pelas quais as neuroses mórbidas podem aparecer a partir dos traumas vividos no período Edípico. Primeiro, se a criança sofreu uma ou várias experiências de abandono, tanto reais quanto imaginárias — vividas como uma aflição insuportável —, na vida adulta, o trauma pode retornar como fobia — que é o medo condensado diante da cena de ser deixado sem nenhum amparo. A fobia é quando um perigo vivenciado internamente é projetado para fora e se torna um medo consciente. Esse medo pode ser deslocado para animais, lugares, pessoas, etc.

Outra neurose mórbida é quando a criança sofreu maus-tratos ou se sentiu ridicularizada, tanto na vida real quanto em uma experiência fantasiada. Na vida adulta, esse trauma retornar como uma obsessão. A obsessão é a transformação da angústia inconsciente em uma culpa consciente. A cena traumática fixada é a de “ter feito algo errado que nem se sabe o que é”, acompanhada do medo do castigo; e isso reaparece na vida adulta como checagens, escrúpulos e rituais para prevenir uma punição sempre iminente.

Outra forma de neurose mórbida é quando a criança passou por um contato excessivamente sensual com um adulto de quem depende, e aqui estamos falando tanto de uma fantasia que a própria criança experimentou, cuja sensação foi intensa demais para o seu ego aguentar, ou uma experiência real de abuso. O trauma que aparece na vida adulta é o da histeria, que se manifesta como revolta ou desespero diante de situações onde a pessoa se sente dependente de uma outra.

Os sintomas podem se apresentar durante uma relação sexual na fase adulta, onde a pessoa trava e não consegue seguir com o ato sexual. Também pode se apresentar toda vez que entra numa relação normal de dependência com alguém que admira (chefe, professor), a pessoa se sente “rebaixada” e tenta seduzir a tal figura para ela se submeter, como se fosse uma tentativa de recuperar o Falo perdido durante o complexo de Édipo.

É claro que os traumas neuróticos não se esgotam nesses três exemplos. Os sintomas, inclusive, podem se misturar, por isso reduzir alguém a um rótulo ou ao seu diagnóstico é totalmente imprudente. Em todo caso, a terapia é um ótimo caminho para ajudar a reconhecer e lidar com os desejos: ela recolhe o excesso, dá forma à culpa, afina o ouvido para a lei que habita por dentro, e abre espaço para escolhas menos capturadas por aquele roteiro antigo que encenamos na infância. Reconhecer a cena que se repete permite nomear o que antes só voltava como sofrimento, e deslocar o sintoma do automatismo para a história.

O complexo de Édipo é a travessia em que uma criança tomada por um desejo precisa aprender a canalizá-lo — conter o impulso no corpo ainda imaturo, suportar o medo, reconhecer uma Lei que a separa dos pais como objetos de desejo, e transformar o choque entre “querer” e “limite” justamente em linguagem, fantasia e laço social. Esse abalo entre o limite e o desejo é o que nos acompanha durante vida.

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