Jovem, não se destrua na solidão…
Transcrição do vídeo
Há mais de 2300 anos, um filósofo chamado Aristóteles disse o seguinte em seu tratado chamado Política:
“Quem não precisa de ninguém, ou é um animal ou é um deus”.
Aristóteles, Política.
Com essa frase, ele estava enfatizando a própria natureza social do ser humano, onde ele explica que nós somos um zôom politikon, isto é, um animal político e cívico.
Quem vive fora da pólis — como eram chamadas as cidades-estados da Grécia antiga —, por natureza, não exerce a razão e a linguagem, atributos característicos do ser humano. Se isolados, não participamos da vida comum, agindo só por instinto, e portanto vivendo como um animal. Mas também não somos deuses porque não somos autossuficientes, precisamos dos outros em certa medida.
E a vida em sociedade também diz respeito às amizades. Olha só o que Aristóteles fala:
“A amizade […] constitui uma das exigências mais imprescindíveis da vida — ninguém, com efeito, preferiria viver sem amigos, mesmo que possuísse todos os outros bens. […]”
Aristóteles, Ética a Nicômaco.
No entanto, estamos vivenciando um fenômeno inédito na história da humanidade: embora estejamos inseridos numa sociedade, estamos cada vez mais isolados, cada vez mais reclusos. Próximos uns dos outros, mas distantes ao mesmo tempo. E isso está impactando as relações sociais como um todo.
Já estão sendo feitos diversos estudos apontando para o fato de que quanto mais tempo passamos nas redes sociais, menor é nossa capacidade de desenvolver habilidades sociais e afetivas, menor é a nossa capacidade de leitura emocional do ambiente e das situações que vivenciamos quando estamos em grupo. Isso porque as redes sociais nos radicalizam e nos colocam em uma zona confortável onde não precisamos entrar em conflitos. E conflitos são uma parte essencial e importante da vida como um todo.
Sim, lidar com pessoas é difícil. Elas são chatas, fofoqueiras e podem te passar a perna a qualquer momento. Mas não podemos viver sem os outros, pois precisamos deles até mesmo para nos conhecer, já que a consciência de nós mesmos não se dá no vácuo da natureza. O “eu” nasce de um conflito entre nós mesmos e um algo que não é um eu, como escreveu Ortega y Gasset:
“O eu se dá por mim e pelo mundo”.
José Ortega y Gasset, O Que é Filosofia?
Se não houver conflito de nenhuma forma, se não houver um embate entre um eu e um outro, não há uma construção de algo, não há um terceiro e, portanto, não há transformação nem crescimento. E as redes sociais nos colocam o tempo inteiro diante de nós mesmos. Esse é o “inferno do igual” de que fala Byung-Chul Han. Nas redes sociais não há espaço para a alteridade e para a diferença, porque o algoritmo te mostra conteúdos que te espelham, pessoas que falam o que você quer ouvir, e você vai ficando cada vez mais cansado e avesso à buscar algo que te confronte.
Sabe aquela anedonia, aquela falta de vontade de fazer as coisas? Muito provavelmente está sendo causado pelo uso constante das redes sociais. Você então começa a postergar tarefas simples e cria picos de produtividade apenas sob pressão ou quando alguma coisa muito catastrófica está prestes a acontecer.
Outro sintoma é a comparação compulsiva. Você abre as redes sociais, muitas vezes sem motivo algum, “só para ver alguma coisa” e sai de lá pensando em como sua vida é chata, porque não tem tantas viagens, tantas histórias ou não está tão bem quanto os outros. Essa comparação silenciosa vira uma espécie de vergonha social antecipatória: você começa a recusar convites porque imagina que “não terá assunto” ou “vai passar vergonha”, e quanto mais você evita isso, menos habilidades sociais você pratica; e quanto menos pratica, mais desconforto sente; e quanto mais desconforto, mais você evita. Tudo isso para escapar de conflitos.
Mas, novamente, se não houver conflitos externos, o conflito vai para algum lugar. Então ele pode se tornar, ao invés de um conflito externo, um conflito interno. E isso pode levar a uma hipersexualização da fantasia. Não falo de desejo, que é saudável; mas sim de usar a fantasia como uma fuga contínua. Você passa horas imaginando narrativas perfeitas com pessoas que mal conhece ou com figuras públicas. São os relacionamentos parasociais: você sente intimidade, mas não tem nenhuma reciprocidade. Isso vicia porque oferece a ilusão de conexão sem o risco do encontro real. E quando surge uma oportunidade verdadeira para conversar e se conectar, ela parece muito assustadora perto de toda aquela superprodução mental.
O número de jovens acometidos por essa letargia tem crescido cada vez mais. Os jovens, principalmente homens entre 16 e 24 anos, estão sofrendo cada vez mais com o isolamento, com a polarização e com o uso desenfreado das redes sociais, e isso piorou depois da pandemia. Ao se isolar atrás de uma tela, as interações sociais que deveriam ocorrer durante essa fase da vida, a exposição a riscos que permitiria com que o jovem adquirisse mais confiança, tudo isso deixa de acontecer e ele vai ficando cada vez mais sensibilizado aos outros, imaginando cenários romantizados e catastróficos que o jogam numa círculo vicioso de temor e culpa.
E é também durante essa faixa etária que o desejo sexual e a busca por relacionamentos amorosos viram quase que o principal objetivo de vida do homem. E uma forma natural e espontânea de se conhecer uma garota é através de um amigo em comum. Amigos podem aumentar o nosso raio de oportunidades. Alguém conhece alguém que te apresenta a um grupo novo, a um evento, a um hobby e lá você conhece uma garota que tem os mesmos gostos que você. Assim, sua vida social deixa de ser um corredor estreito e vira uma casa com várias portas. E cada porta abre a chance de conexões espontâneas, inclusive as românticas, sem aquele peso de “precisar fazer dar certo a todo custo”.
O jovem então, desesperado e sem amigos, vai procurar por técnicas de sedução e como flertar na internet: Sabe? Foguinho no story da garota, frases prontas e uma sequência de perguntas para cada possível resposta que a pessoa escrever. Ele está fazendo o mais difícil: tentando resolver um problema isolado de uma forma isolada. Melhorando as habilidades sociais como um todo, automaticamente a conquista e o flerte se tornam mais naturais. O relacionamento amoroso não vira um objetivo, mas uma consequência das suas habilidades sociais.
Basicamente, a vida do homem moderno recluso segue a trajetória de um herói grego chamado Filocteto. Na mitologia grega, Filocteto ficou famoso como um exímio arqueiro e guardião do arco e flecha de Hércules, que o conquistou após acender a pira funerária dele, representando um símbolo de coragem e lealdade.
Filocteto, então, é convocado para participar da Guerra de Tróia, mas é mordido por uma serpente no caminho. A ferida infecciona, exalando um mau cheiro insuportável, o que faz seus companheiros de viagem o abandonarem em uma ilha durante 10 anos. Só que mesmo em isolamento total, ele não perde suas habilidades e seu senso de honra.
Mais tarde, um oráculo revela que Tróia só cairá com a ajuda do arco de Hércules, do qual está sob a posse de Filocteto. Então, dois guerreiros decidem voltar à ilha para resgatá-lo e colocá-lo de volta na guerra contra Tróia. Um dos guerreiros é Ulisses, o personagem da Odisseia, que tenta convencer o outro guerreiro, Neoptólemo, filho de Aquiles, personagem da Ilíada, a enganar Filecteto, conquistar sua confiança e mandá-lo entregar o arco.
Neoptólemo segue o plano de Ulisses. No entanto, ao perceber o estado de Filecteto, ele entra em um dilema ético: ser eficaz e fugir com o arco, ou ser justo, respeitando Filecteto e devolvendo o arco para ele? Neopetólemo decide pela justiça e entrega o arco de volta à ele.
Filocteto, por sua vez, vive outro dilema moral: ele deve permanecer na ilha, fiel à própria amargura e ao rancor contra os que o abandonaram, ou voltar a lutar ao lado daqueles que o traíram — arriscando sofrer de novo?
Filocteto tem motivos reais para a amargura, porém ficar na ilha o mantém preso ao passado e assim como ele, o homem moderno que vive recluso também tem sua ferida causada pela serpente, que pode ser alguma humilhação, ou uma rejeição que tenha passado e o fez se isolar e desacreditar das relações amigáveis ou amorosas. A ilha é o seu quarto com o celular: uma zona solitária, mas extremamente ruidosa, ocasionada pelas fantasias que se alimentam com os conteúdos que ele consome.
Mas o mito mostra que a compaixão reorganiza as escolhas. Neoptólemo muda de rota quando vê a dor do outro — e Filocteto aceita voltar à guerra quando é respeitado. E é isso: haverá traições, decepções, e muitas pessoas que te chamavam de amigo podem te deixar para trás quando não te enxergam mais como alguém útil. Você pode se remoer na própria dor e se fechar para o mundo — assim como também fez o homem do subsolo de Dostoíevski— , ou voltar para a guerra com mais consciência e mais discernimento sobre os outros, sem se fechar para novas oportunidades.
O detalhe vital do mito é o arco de Hércules: mesmo isolado, Filocteto preserva um dom indispensável para vencer a guerra de Tróia. Em nós, isso representa o conjunto de atenção, tempo, caráter e talentos que corremos o risco de desperdiçar por não enfrentar a vida. Quando o homem entrega esse “arco” para o algoritmo, isto é, quando ele desperdiça sua energia consumindo dopamina barata, ele vira só uma peça do jogo dos outros, influenciável e letárgico; mas quando o recupera, ele direciona a energia para um trabalho significativo, para as boas amizades e para o autoconhecimento — e a vida volta a ter significado.
A questão aqui é não demonizar as redes sociais e principalmente não se isolar: é necessário cultivar a solidão, mas também é extremamente necessário trabalhar os momentos de interação social. Todos os filósofos sérios, padres e pensadores nunca estiveram reclusos. Pouco contato com os outros nos deixam esquisitos e mais egocentrados, achando que tudo é uma afronta pessoal, mas, por outro lado, os períodos de solidão nos ajudam a parar e nos avaliar, para que então possamos voltar ao convívio. Portanto, é tão necessário saber estar sozinho, como é tão necessário saber estar com os outros.
No começo, você vai precisar se forçar a sair de casa, e se forçar a falar com as pessoas. Para começar uma boa interação social, você pode escolher alguns ambientes que realmente combinem com você. Ambientes certos resolvem metade do trabalho porque aproximam pessoas com valores parecidos. Mas precisa ser uma atividade recorrente, presencial, com horários fixos e que coloque as mesmas pessoas no mesmo lugar com alguma regularidade. É nesse fator de “repetir o encontro” que o cérebro sai do estado de estranheza e entra no modo de familiaridade, onde a amizade nasce sem aquele esforço teatral. E as opções de lugares são imensas: cursos técnicos, atividades voluntárias, espaços religiosos, centros esportivos ou até mesmo encontros presenciais de algum influenciador ou comunicador que você goste.
No momento da interação, certamente alguns pensamentos automáticos vão surgir, como o de precisar ser aceito pelos outros. Dessa forma, a tendência é você mudar o jeito de falar ou os seus gestos para tentar se adequar ao ambiente ou às pessoas ali presentes. E não tem problema você fazer isso. Não vão ser todos os ambientes que você vai se sentir 100% confortável. Mas algo que você pode pensar é: “Por que eu preciso tentar ser aceito pela pessoa ou pelo grupo? Por que, em vez disso, eu não posso tentar perceber o que a pessoa ou o grupo tem para me oferecer?” Isso vai fazer você questionar e deixar claro para você mesmo quais são os seus valores inegociáveis e o que você espera para começar uma amizade ou iniciar um convívio em um novo ambiente. Pensando assim, até mesmo o conteúdo das suas perguntas mudam. É por isso que os momentos diários de solidão são tão importantes, pois como diria Schopenhauer:
“Na solidão o miserável sente toda a sua miséria; o grande espírito, toda a sua grandeza. Isto é: cada um sente-se tal qual é.”
Schopenhauer, Aforismos Para a Sabedoria de Vida.
E quando sua vida social fica mais movimentada, as relações amorosas aparecem como um efeito colateral saudável. Não porque você ficou “mais esperto”, mas porque o pertencimento diminui a ansiedade, aumenta a presença e clareia seus sinais sociais. Mas isso não é nenhum segredo. Não existe nada oculto que só poucos detêm o conhecimento. Nós conhecemos pessoas à medida que saímos de casa e frequentamos lugares fora do trabalho, da escola ou da faculdade. O problema é mais por conta das redes sociais, que apesar de todos os benefícios, apresenta diversos malefícios que precisamos estar muito bem conscientes.
E sim, esteja preparado para os conflitos, os desentendimentos e até mesmo para algumas quebras de laços sociais. Mas sabe de uma coisa? Isso precisa acontecer. E isso vai acontecer. Conflitos não são defeitos do relacionamento humano; são o mecanismo de ajuste. Toda relação vive de acordos explícitos e implícitos. Conforme as pessoas crescem, elas mudam prioridades, limites ou necessidades — e o conflito aparece para sinalizar os desalinhamentos. Sem ele, nada é revisado: as expectativas ficam antigas, surgem ressentimentos silenciosos e a distância aumenta, e um dos grandes problemas sociais modernos é justamente fugir de conflitos, a famosa frase “preguiça de me preocupar”. Isso não quer dizer que você precise ou vá entrar em conflitos o tempo todo, mas quando algo se choca com os seus valores e princípios, cabe a você defendê-los, senão, tudo o que você vai conseguir é uma personalidade cínica e apática. Às vezes um “vai tomar no cu” tranquilo ajuda muito.
Quando todas essas bases estiverem de pé, algo curioso acontece: você para de “buscar assunto” em encontros novos porque a sua vida passa a gerar assunto naturalmente. Projetos, rituais, piadas internas, histórias — tudo isso alimenta conversas futuras e te torna alguém com quem é prazeroso estar. É aqui que, sem qualquer jogada de marketing pessoal, você se torna alguém simplesmente normal — e normal, quando é autêntico e bem trabalhado, é o melhor de todos os mundos.
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