Como o medo da Guerra Mundial é usado para te controlar — 1984 de George Orwell
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A realidade das guerras e a manipulação do medo
Os horrores da guerra são uma realidade, são fatos concretos e estão muito além daquilo que vemos nas manchetes de jornais e nas redes sociais. Lembrar das inúmeras vítimas inocentes que se perdem é o primeiro passo para qualquer reflexão honesta sobre como o medo da guerra nos atinge quando estamos distante da linha de frente e em uma zona aparentemente segura.
Mas existe algo mais sutil acontecendo em paralelo. A cada notícia de guerra, surge uma ameaça difusa, um fantasma que paira constantemente sobre nossas cabeças: a possibilidade iminente de uma guerra mundial.
Cada vez que você abre suas redes sociais ou assiste ao jornal, você se depara com notícias e mais notícias alarmantes sobre uma possível guerra em escala global que pode estar cada vez mais próxima.
Esse medo, que parece natural, muitas vezes é cuidadosamente alimentado, ampliado e explorado como uma forma eficaz de controle social.
E poucas obras entenderam tão bem essa dinâmica quanto o clássico 1984, escrito por George Orwell. Publicado em 1949, o livro oferece uma visão distópica de um futuro onde a guerra não é mais um meio para alcançar objetivos militares, mas uma ferramenta psicológica permanente, usada para manter a população em constante estado de submissão e dependência.
CAPÍTULO 1 — O conceito de guerra perpétua em “1984”
Em 1984, George Orwell descreve um mundo pós-guerra nuclear dividido em três superpotências: Oceânia, Eurásia e Lestásia. Essas nações vivem um conflito permanente, mudando constantemente de aliados e inimigos, criando um ambiente de insegurança perpétua para os cidadãos.
Orwell centra sua narrativa na vida de Winston Smith, um funcionário público do chamado Ministério da Verdade na Oceânia, é um setor do Partido totalitário do livro responsável por alterar registros históricos para se adequar às mentiras oficiais do Estado. Nesse contexto, a guerra é um elemento constante, mas jamais completamente compreendido pelos cidadãos comuns.
A lógica da guerra perpétua, segundo Orwell, é explicada claramente no livro:
“Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra […] e acontece com frequência estar ciente de que a guerra inteira é espúria e que ela ou não está acontecendo, ou está acontecendo por razões bem diferentes das declaradas.”
George Orwell, 1984.
Orwell demonstra no livro que os confrontos entre Oceânia, Eurásia e Lestásia não têm a intenção de vitória ou conquista, mas sim de perpetuar uma condição psicológica específica na população. Uma guerra constante, sem começo nem fim claros, gera o cenário ideal para um controle psicológico profundo, onde a verdade perde completamente seu significado.
No livro, há uma descrição reveladora sobre essa constante mudança de adversários e aliados:
“No momento, em 1984 (se é que era 1984), a Oceânia estava em guerra com a Eurásia e aliada à Lestásia. Em nenhum pronunciamento público ou particular era admitido que as três potências alguma vez tivessem sido agrupadas diferentemente […] Na verdade, como Winston sabia muito bem, há não mais de quatro anos a Oceânia estava em guerra com a Lestásia e em aliança com a Eurásia. O inimigo do momento sempre representava o mal absoluto, com o resultado óbvio de que todo e qualquer acordo passado ou futuro com ele era impossível.”
George Orwell, 1984.
Essa confusão de quem é o inimigo e de quem é o aliado é uma estratégia usada pelo Partido do livro para controlar a população. Através da reescrita do passado, obtida através da alteração e censura dos documentos, os cidadãos não podem verificar o que já aconteceu, confiando plenamente no que o Partido decide mostrar. Em outra passagem, Orwell explica a função interna dessa guerra interminável:
“A guerra se trava entre cada grupo dominante e seus próprios súditos, e o objetivo dela não é obter ou evitar conquistas de território, mas manter intacta a estrutura social. A própria palavra ‘guerra’, portanto, tornou-se ambígua. É provável que fosse correto afirmar que ao se tornar contínua a guerra deixou de existir.”
George Orwell, 1984.
Com isso, Orwell esclarece que o verdadeiro propósito da guerra perpétua não está no campo de batalha, mas na mente de cada cidadão. A guerra existe não para destruir inimigos externos, mas para subjugar o inimigo interno: o pensamento crítico, a liberdade e a consciência individual.
Embora nossos conflitos e as inúmeras guerras da história da humanidade sejam reais, a amplificação incessante do medo de uma guerra maior segue exatamente a mesma lógica descrita por Orwell há mais de 70 anos. Vivemos, assim como em 1984, em uma constante sensação de ameaça — real ou não — que molda nossas escolhas, percepções e comportamentos.
CAPÍTULO 2 — O medo constante e seus efeitos neurológicos
Como descrito por George Orwell, o conceito da guerra perpétua funciona como uma ferramenta psicológica de controle através do medo. Mas porque ela é tão eficaz em controlar nossas mentes?
O medo é uma emoção poderosa, essencial para nossa sobrevivência. Ela é uma resposta natural a perigos reais ou imaginários e prepara nosso corpo para reagir rapidamente. No entanto, quando o medo se torna crônico, ou seja, quando estamos constantemente expostos a ele, os efeitos deixam de ser protetores e se tornam destrutivos.
A neurociência explica que, sob estresse constante, nosso cérebro ativa repetidamente a amígdala, uma região associada às respostas emocionais, especialmente ao medo. Essa ativação contínua prejudica a função do córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio lógico, pelo planejamento e pela tomada de decisões conscientes.
Quando estamos continuamente amedrontados, nosso cérebro prioriza soluções rápidas e superficiais, em detrimento da análise detalhada e da reflexão profunda. Passamos a procurar alívio imediato, segurança aparente e figuras de autoridade que prometem resolver rapidamente nossos problemas. Nesse estado emocional, estamos mais inclinados a aceitar decisões políticas radicais, mesmo que essas decisões limitem nossa liberdade ou violem nossos próprios valores.
Por exemplo, diante do medo de uma guerra iminente, muitas pessoas aceitam sem questionar medidas extremas como aumento da vigilância, censura de informações, restrições à liberdade de expressão e, até mesmo, intervenções militares pouco fundamentadas. A urgência provocada pelo medo nos torna menos críticos e mais coniventes com decisões políticas que, em condições normais, seriam vistas como autoritárias ou injustificáveis.
Além disso, o medo crônico gera um fenômeno psicológico conhecido como “conformidade social”: para reduzir a ansiedade, as pessoas começam a aderir às opiniões da maioria ou às decisões políticas predominantes. Essa conformidade aumenta o poder daqueles que controlam as narrativas de medo, tornando cada vez mais difícil questionar o sistema.
Esse cenário psicológico é precisamente o descrito por George Orwell em 1984, onde a guerra perpétua não serve apenas para justificar o controle do Estado, mas para garantir a submissão voluntária da população às decisões arbitrárias das autoridades.
Portanto, o perigo real do medo constante não é apenas externo — o conflito, as bombas, o inimigo visível — mas o que acontece dentro de sua mente quando você passa a viver num estado contínuo de alerta emocional. A consequência é o enfraquecimento da sua autonomia mental e emocional, deixando você vulnerável à manipulação, ao controle e à submissão.
CAPÍTULO 3 — A criação do inimigo invisível: o “ódio necessário”
Outro aspecto essencial abordado por George Orwell em 1984 é o conceito do inimigo invisível. Para que o medo e a manipulação funcionem plenamente, é preciso que haja sempre uma figura, um adversário claro, em quem direcionar todas as emoções negativas: ódio, raiva, indignação e por aí vai. George Orwell exemplifica isso no livro com uma prática chamada “Dois Minutos de Ódio”, um ritual diário onde os cidadãos são estimulados a direcionar todo seu ódio a um inimigo específico do Estado.
Na sociedade descrita no livro, o inimigo principal é Emmanuel Goldstein, apresentado pelo governo como o líder da oposição e a figura por trás de todas as conspirações contra o regime. A imagem de Goldstein serve como alvo para o ódio coletivo, fortalecendo o vínculo emocional da população com o partido dominante e justificando medidas repressivas extremas.
Esse mecanismo é explicado diretamente no livro:
“Goldstein era o renegado e apóstata que um dia, muito tempo antes […], fora uma das figuras destacadas do Partido, quase tão importante quanto o próprio Grande Irmão, e que depois se entregara a atividades contrarrevolucionárias.”
George Orwell, 1984.
Durante os Dois Minutos de Ódio, as pessoas são induzidas a um estado de histeria coletiva. Winston Smith a descreve da seguinte maneira:
“O mais horrível dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de a pessoa ser obrigada a desempenhar um papel, mas de ser impossível manter-se à margem. Depois de trinta segundos, já não era preciso fingir. Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança, um desejo de matar, de torturar, de afundar rostos com uma marreta, parecia circular pela plateia inteira como uma corrente elétrica.”
George Orwell, 1984.
É evidente como essa prática descrita no livro encontra paralelos na vida real: quando um grupo ou figura é consistentemente retratado como ameaça, as pessoas param de pensar criticamente sobre ele e passam a aceitá-lo automaticamente como inimigo. O ódio direcionado a esse inimigo fabricado gera união social, justifica políticas agressivas e desvia a atenção das falhas internas do sistema.
George Orwell mostra também como esses inimigos externos são frequentemente trocados ou alterados, dependendo da conveniência do governo:
“Embora Goldstein fosse odiado e desprezado por todos, embora todos os dias […] suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas […], o ritmo de crescimento de sua influência parecia nunca arrefecer.”
George Orwell, 1984.
Ou seja, não importa quem realmente seja o inimigo ou se ele é de fato perigoso. O essencial é que exista alguém contra quem direcionar o medo e a raiva. Essa técnica garante o controle psicológico contínuo, mantendo as pessoas emocionalmente dependentes e intelectualmente submissas.
Atualmente, em nosso contexto político global, percebemos algo semelhante acontecendo: inimigos invisíveis são frequentemente invocados, mudados ou intensificados, criando uma sensação constante de urgência e medo. Isso nos torna emocionalmente reativos, facilmente manipuláveis, e profundamente dependentes daqueles que prometem segurança contra essas ameaças fabricadas.
A grande lição, portanto, não é apenas reconhecer quem são, de fato, esses inimigos, mas entender que eles podem frequentemente ser escolhidos ou inventados para controlar o nosso pensamento, moldar nossas opiniões e manipular nossas ações.
CAPÍTULO 4 — Jung e a epidemia psíquica moderna
Até agora, vimos como George Orwell descreve com precisão os mecanismos usados para manipular e controlar sociedades inteiras por meio do medo constante da guerra. No entanto, Carl Jung também traz importantes reflexões sobre o perigo das epidemias psíquicas e fenômenos coletivos que destroem a individualidade e a consciência crítica.
Segundo Jung, as crises sociais profundas são frequentemente resultado não só de fatores políticos ou econômicos, mas de uma crise psicológica profunda, arraigada no inconsciente coletivo:
“O que nos reserva o futuro? Historicamente, é sobretudo em épocas profundamente marcadas por dificuldades físicas, políticas, econômicas e espirituais que o ser humano volta seus olhos angustiados para o futuro e se multiplicam então as antecipações, utopias e visões apocalípticas.”
Carl Jung, Presente e Futuro.
Em contextos de grande tensão, como os que estamos vivendo atualmente, o medo se transforma em uma espécie de contaminação mental coletiva. Jung alerta para a facilidade com que emoções intensas podem superar a capacidade racional das pessoas, resultando numa espécie de epidemia emocional:
“Quando a temperatura afetiva se eleva para além desse nível, a razão perde sua possibilidade efetiva, surgindo em seu lugar slogans e desejos quiméricos, isto é, uma espécie de possessão coletiva que, progressivamente, conduz a uma epidemia psíquica.”
Carl Jung, Presente e Futuro.
Esse conceito de “epidemia psíquica” explicado por Jung revela exatamente o que George Orwell já havia mostrado: quando o medo é constantemente alimentado, a população é empurrada para um estado mental onde já não consegue mais distinguir realidade de fantasia. As pessoas se tornam emocionalmente vulneráveis e mais fáceis de manipular.
Jung ainda enfatiza que esse processo acontece porque o indivíduo comum tem muito pouco conhecimento real sobre si mesmo, especialmente sobre suas reações inconscientes. Isso o torna suscetível às influências externas:
“O campo amplo e vasto do inconsciente, não alcançado pela crítica e pelo controle da consciência, acha-se aberto e desprotegido para receber todas as influências e infecções psíquicas possíveis.”
Carl Jung, Presente e Futuro.
Essa falta de autoconhecimento, portanto, não é apenas uma questão pessoal, mas social e política. É a porta aberta para que o medo coletivo se instale, e para que governos autoritários se aproveitem dessa vulnerabilidade emocional.
Para Jung, a única defesa contra essas epidemias psíquicas é o verdadeiro autoconhecimento, que vai além do superficial:
“O homem mede seu autoconhecimento através daquilo que o meio social sabe normalmente a seu respeito e não a partir do fato psíquico real que, na maior parte das vezes, lhe é desconhecido.”
Carl Jung, Presente e Futuro.
Sem consciência profunda sobre si mesmo, o indivíduo inevitavelmente se torna vítima de narrativas que exploram seus medos, desejos e preconceitos inconscientes.
Se não estivermos atentos ao modo como o medo é alimentado e manipulado, estaremos sujeitos a uma espécie de totalitarismo emocional, em que nossa autonomia e liberdade são progressivamente destruídas.
Compreender esse fenômeno é mais do que um exercício intelectual; é uma necessidade urgente em tempos como os nossos, onde guerras reais se misturam com guerras imaginárias, e onde a maior vítima pode ser nossa própria consciência.
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