Você nunca desejou nada por conta própria — René Girard
Transcrição do vídeo
Introdução
Em 1774, o filósofo alemão Goethe publicou um romance chamado Os Sofrimentos do Jovem Werther. Na história, Werther, o protagonista, se apaixona perdidamente por uma garota chamada Charlotte que, apesar de nutrir sentimentos amorosos por ele, já estava noiva de outro homem. Werther, que não via sentido na própria vida senão o de estar ao lado dela, decide que a única maneira de resolver a questão é dando um fim à própria vida.
Esse romance foi um marco de um movimento na época que ficou conhecido como Sturm und Drang — algo como tempestade e ímpeto, se formos traduzir —, cujas principais características eram a manifestação dos sentimentos intensos e das fortes paixões, difundidas através da literatura e da poesia.
Só que o impacto do livro foi tão profundo que jovens por toda a Europa começaram a copiar, não apenas o figurino azul-amarelo de Werther, descrito no romance, mas também o seu próprio gesto fatal depois que ele assumiu ser impossível ficar com Charlotte; jornais da época começaram a registrar uma onda de suicídios parecidos com o de Werther. Os jovens, de alguma forma, se identificavam com os sentimentos e com a dor do personagem.
Mesmo alguns biógrafos de Goethe terem escrito que o fenômeno ocasionado pelo livro não passava de um rumor, o romance foi proibido na Itália e na Dinamarca e o figurino de Werther também foi proibido em alguns locais da Alemanha.
Esse episódio, que hoje chamamos de “efeito Werther”, revela o cerne da teoria do crítico literário francês René Girard: nossos desejos nascem mais de espelhos do que de necessidades. Copiamos metas, paixões e, em seu extremo, até o próprio fim. Quando uma vontade aparece revestida de prestígio, de romantismo ou de simples validação social, ela se torna contagiosa. O que queremos, muitas vezes, não brota de dentro; é incorporado do olhar do outro. Queremos porque o outro possui, ou porque, ao possuirmos, podemos nos tornar como esse outro.
Mas o desejo mimético não precisa ser assim tão extremo como no modelo de Werther. Depois da série Peak Blinders, lançada em 2013, jovens tomaram o protagonista Thomas Shelby como modelo e passaram a imitar sua personalidade e até mesmo seu corte de cabelo.
Entre as mulheres, a ascensão do gênero literário intitulado dark romance, que mistura relacionamentos e paixões intensas com violência e abuso sexual, se popularizou em plataformas como o Tiktok, passando até mesmo a moldar o desejo dessas mulheres por relações tóxicas e violentas.
Hoje as redes sociais se tornaram essa fábrica de modelar desejos. O corpo ideal, o item de luxo, o lifestyle minimalista. Todos esses desejos são embalados por propaganda e influenciadores digitais, definindo modelos e despertando vontades que seriam indiferentes para você se ninguém as estivessem mostrando. O desejo mimético mostra que, muitas vezes, o que chamamos de nosso é, na verdade, ecos dos anseios de alguém. Por que o lançamento do celular mais novo te inquieta mesmo quando o seu ainda funciona perfeitamente? Como explicar a vontade repentina de viajar para o mesmo destino do seu amigo depois que ele postou a viagem no Instagram?
Nossos desejos nos ligam aos outros como correntes invisíveis; e quanto mais a puxamos, mais nos prendemos.
Capítulo 1 — O Espelho Invisível: Como Surge o Desejo Mimético
Você sai para almoçar e percebe o brilho de um casaco novo do seu amigo; num instante, as roupas do seu armário parecem sem graça. À noite, você desliza pelo feed da sua rede social e vê um influenciador anunciando que largou o emprego para “viver com mais propósito”; de repente, você começa a repensar sobre o seu próprio emprego atual. No fim de semana, um amigo volta de um retiro e exibe uma persona calma, quase que iluminada — e você cogita ir para o mesmo retiro para obter um pouquinho daquela sensação que o seu amigo lhe descreveu. Quase todo mundo já sentiu esse puxão interno: o desejo não nasce do objeto ou da experiência em si, mas do olhar admirado que alguém lança sobre eles.
Foi para entender esse fenômeno que René Girard mergulhou em histórias, mitos e comportamentos sociais. Ele percebeu que, de livro em livro, de romance após romance, personagem após personagem, os protagonistas não criavam seus anseios do nada — eles os copiavam de figuras que admiravam. Girard ampliou essa observação da ficção para a vida cotidiana e propôs uma tese ousada: o ser humano não deseja espontaneamente; ele imita.
A esse mecanismo ele deu o nome de desejo mimético. Funciona assim: vemos alguém valorizar um objeto, um estilo de vida ou até uma forma de ser, e, sem notar, passamos a valorizar o mesmo. O outro se torna um “modelo” — não apenas de comportamento, mas de querer. Esse processo é rápido, inconsciente e socialmente contagioso; basta um grupo adotar algo para que ele ganhe força de necessidade. Por isso, aquilo que ontem nos parecia supérfluo hoje se converte em urgência só porque surgiu nas mãos certas.
Quando entendemos que boa parte de nossas ambições surge desse espelhamento, a ideia de autenticidade ganha um novo peso. Será que perseguimos um cargo, uma peça de roupa ou uma mudança de personalidade porque realmente faz sentido para nós — ou porque alguém os tornou desejáveis primeiro? Reconhecer essa diferença abre espaço para escolhas mais deliberadas e para a construção de desejos que, enfim, carreguem nossa identidade.
Capítulo 2 — Comparação que Corrói: Sintomas do Desejo Mimético no Cotidiano.
Só que o desejo mimético não é algo essencialmente ruim; ele é a engrenagem básica da convivência humana. Sem imitação não aprenderíamos a falar, a trabalhar nem a criar culturas. O desejo também cria laços, aprendizagem e inovação. É por isso que o desejo percorre diferentes caminhos através do modelo, ou seja, da pessoa que encarna o desejo, até aquele que tenta imitá-lo. Esse caminho é a mediação.
Quando há uma grande distância geográfica, social ou temporal do modelo, a relação é de mediação externa. Nós copiamos gestos ou aspirações sem jamais imaginar que poderemos disputar ou rivalizar com ele. A admiração, embora intensa, conserva uma barreira protetora: o objeto desejado continua simbólico, e por isso a inveja costuma ser fraca ou contida. Você provavelmente não se sente rival direto do Cristiano Ronaldo, Dostoiévski, Jesus Cristo, ou da Sidney Sweeney.
Mais delicada ainda é a mediação íntima, na qual o modelo compartilha vínculos profundos e duradouros: esse modelo pode ser os nossos pais, cônjuges ou alguém que apareceu em nossas vidas e que passamos a ter proximidade. As crianças, por exemplo, aprendem o que vale a pena querer ao observarem os pais; casais absorvem desejos um do outro até confundirem seus próprios gostos; A relação entre um terapeuta e seu cliente, que pode reconhecer e trabalhar as emoções do outro, o faz aprender a lidar com elas. Como o modelo é parte do terreno emocional onde o sujeito se encontra, a imitação ocorre quase sem conflitos.
O problema aparece quando o processo entra no modo “mediação interna”, isto é, quando copiamos desejos de pessoas que disputam os mesmos recursos que nós: a vaga de emprego, o apartamento no mesmo bairro, o parceiro afetivo. Nesse ponto, o objeto deixa de valer pelo que é e passa a valer como troféu de prestígio; a admiração converte-se em rivalidade e a rivalidade escala para o conflito. A mediação interna é praticamente inevitável: onde houver seres humanos haverá desejos que se cruzam, inveja que fermenta e, se não houver um freio, guerras e conflitos. É na mediação interna que surge a rivalidade mimética: o que antes era admiração vira comparação, depois vira ciúme, e logo transforma o relacionamento em competição. O desejo intensifica-se à medida que o rival avança, e o objeto é valorizado menos por suas qualidades intrínsecas do que pelo status que garantirá a quem o conquistar primeiro.
As redes sociais amplificam essa dinâmica porque comprimem a distância entre todos os níveis de mediação num único fluxo de imagens. Perfis celebrados, colegas de infância e familiares aparecem misturados, cada um exibindo conquistas, viagens, corpos, gestos de autossuficiência. A vitrine está aberta vinte e quatro horas, sem fila nem intervalo, e todo post bem-sucedido funciona como anúncio de um produto: ele prova que algo é desejável e, portanto, deveria ser desejado por nós também. O resultado é um anseio permanente, uma sensação de déficit que se renova a cada atualização – pouco importa se o objeto é um emprego, uma selfie em um lugar paradisíaco ou uma nova maneira de falar sobre si mesmo.
Capítulo 3 — A Máquina que Nunca Desliga: Consumismo, Comparação e a Fome Infinita do Desejo
As empresas compreendem o funcionamento do desejo mimético tão bem quanto qualquer teórico: basta mostrar alguém admirável usando um novo produto para que o objeto entre no nosso radar como item de necessidade. As empresas marcam um lançamento atrás do outro. Mal você compra o aparelho, já anunciam a versão plus. As versões limitadas desaparecem em minutos, não por necessidade, mas pelo prestígio de ser algo raro. Cada compra mantém a engrenagem girando, e o marketing, em vez de frear, transforma pessoas comuns em outdoors ambulantes do que acabaram de adquirir.
A lógica do consumismo precisa que a gente se compare o tempo todo. Quando transformamos o feed numa vitrine, passamos a avaliar cada detalhe da nossa vida pelo padrão dos outros. O carro funciona bem, mas não é o mesmo do colega; a viagem foi ótima, só que não gera fotos tão chamativas quanto as do influenciador. Esse balanço diário de “faltas” cria uma sensação constante de não ser suficiente, alimenta a ansiedade e pode levar a um ressentimento e sentimento de inadequação.
As redes sociais tornam tudo mais intenso porque entregam, em minutos, dezenas de exemplos do que achamos que “está faltando” em nossas vidas. É aí que surgem síndromes como o FOMO, sigla em inglês que significa o medo de ficar de fora: a sensação de ansiedade ou inquietação que aparece quando percebemos que outras pessoas estão vivendo experiências das quais não estamos participando — uma festa, uma promoção relâmpago, um investimento promissor, um lançamento de produto, uma oportunidade de carreira.
Nas redes sociais, o FOMO se intensifica porque somos expostos, em tempo real, às conquistas e aos momentos felizes alheios: cada foto, story ou notificação lembra que “algo está acontecendo” e que talvez estejamos perdendo uma grande oportunidade.
O problema é que o desejo mimético não se satisfaz. Compramos o objeto, ou a ideia e, logo depois, outro toma seu lugar — agora valorizado pelo próximo grupo que o exibiu. A linha de chegada se desloca a cada conquista, transformando a busca em exaustão.
Girard alertava para o risco coletivo desse processo. Se todos priorizam ter o que o outro tem, a cooperação cede espaço à rivalidade; relações ficam rasas e o tempo que poderia ser investido em projetos significativos se perde numa corrida sem fim. Reconhecer esse mecanismo é o primeiro passo para sair dele.
Capítulo 4 — Dois Retratos Literários do Desejo que Se Perde de Si Mesmo
Vimos que o desejo mimético é muito exemplificado através da literatura. Duas grandes obras que mostram personagens que se perdem ao copiar vidas que não lhes pertencem é Dom Quixote e Madamy Bovary.
A história de Dom Quixote, escrita por Miguel de Cervantes e lançada em 1605, permite diversas interpretações, tanto psicológicas, sociais, históricas e por aí vai. Para este vídeo, ela vai servir como um belo exemplo de desejo mimético. Na história, Alonso Quijano, um fidalgo de meia-idade de uma pequena província da Espanha chamada La Mancha, se autointitula Dom Quixote depois de se entorpecer com romances de cavalaria, histórias que basicamente seguiam o mesmo enredo: um cavaleiro andante, luta com ladrões e criaturas míticas para conquistar o amor de uma donzela.
Dom Quixote, depois de virar noites lendo esses romances, decide que o único destino digno é repetir, passo a passo, a trajetória dos heróis que admirava. Ele, então, veste uma armadura corroída, arma-se com uma lança desgastada, coloca uma bacia na cabeça, batiza um cavalo esquelético de Rocinante e parte em busca de corrigir algumas “injustiças” que encontra pelo mundo.
Só que Dom Quixote não cria aventuras originais; ele imita, palavra por palavra, os romances de cavalaria que devorou. Seu desejo por glória não nasce do próprio pensamento, mas dos heróis fictícios que conhecia. Os moinhos de vento viram gigantes, as estalagens viram castelos e as ovelhas pastando viram um bando de ladrões.
Você pode dizer que Dom Quixote é só um velho louco; mas substitua lanças por smartphones e feudos por seguidores, e você verá que o desejo de Dom Quixote por feitos grandiosos depois de ficar iludido com os romances de cavalaria não é muito diferente do seu desejo em ficar rico rápido depois que você viu um cara vendendo na internet um curso de vender curso.
Outra obra que retrata as consequências do desejo mimético é Madamy Bovary. Escrita por Gustave Flaubert e lançada em 1856, Emma Bovary, a protagonista do romance, da mesma forma que Dom Quixote, se entorpece com as histórias dos livros que lia, só que ao invés de ser sobre cavalaria, são contos sentimentais que descrevem fantasias românticas, amores intensos e proibidos e vidas de luxo em mansões e viagens pela Europa. Esperando viver as fantasias que encontrava nos livros, ela decide sair do interior de sua pequena província no campo e se casar com um médico da cidade que não tem muitas ambições na vida.
Ela começa a comprar roupas, porcelanas e joias com o dinheiro do marido, acreditando que esses objetos a levariam para o enredo dos romances que admirava. Mas o que acontece é que, à medida que comparava sua nova vida com os livros, começa a sentir cada vez mais um vazio impossível de preencher. Ela, então, se dá conta de que precisa de mais. Procura amantes que prometem o frenesi emocional dos contos, mas encontra apenas novas decepções. As dívidas crescem, a autoestima despenca, e a busca por uma vida “igual à do romance” termina em uma das piores tragédias da literatura. A imitação do ideal romântico consome não só o patrimônio de Bovary, mas sua saúde mental e seu senso de identidade.
Dom Quixote e Madamy Bovary, portanto, mostram o mesmo mecanismo sob roupagens diferentes: o sujeito vê um modelo, deseja o que esse modelo valoriza e reorganiza toda a existência para alcançá-lo. Em ambos os casos, o objeto de desejo não é alcançado, ou, quando parece ao alcance, revela-se, na verdade, apenas um vazio. As histórias lembram que copiar ambições externas pode levar ao ridículo, à ruína financeira ou ao desespero, mas dificilmente à realização. Elas revelam o alerta central de René Girard: sem consciência do espelho que carregamos, podemos caminhar a vida inteira perseguindo reflexos — e descobrir tarde demais que a imagem nunca foi nossa.
Capítulo 5 — Rompendo o Ciclo
O desejo mimético não é um vírus que precisa ser extirpado; ele é o alicerce de quase tudo que consideramos humano. Um bebê aprende a falar porque imita o som dos pais, uma criança se aventura a andar de bicicleta porque viu o irmão mais velho andar, um jovem decide ser médico ao observar o cuidado de uma mentora. Esse impulso de copiar é o motor da cultura: transmite linguagem, técnicas, arte, valores. Sem ele, viveríamos reinventando a roda a cada geração ou recomeçando tudo do zero.
Quando bem orientado, o mesmo mecanismo de desejo se torna uma força de progresso. Copiar o empenho de um professor inspirador leva ao domínio de um instrumento, por exemplo; admirar a coragem de um ativista pode gerar mudanças sociais concretas; seguir os passos de um empreendedor cria empregos e soluções. Em todos esses casos o modelo está distante o bastante para evitar rivalidade direta, mas próximo o suficiente para oferecer uma direção. Girard não condena o ato de seguir exemplos; ele critica a cegueira que nos faz transformá-los em alvos de disputa.
O perigo começa quando confundimos o brilho do outro com medida obrigatória para a nossa vida. A mediação interna, aquela cópia de quem está ao alcance da nossa mão, acende a comparação que acaba corroendo. Ainda assim, mesmo nesse território delicado, a saída não é abolir o desejo, mas conhecê-lo. Reconhecer que imitamos liberta nossa escolha: podemos decidir entre rivalizar com o colega ou aprender com ele; entre comprar algo só pelo status ou investigar se aquilo serve ao nosso caminho.
O problema nunca foi desejar como o outro; o problema é deixar que esse reflexo nos empurre por caminhos que esvaziam a identidade e os vínculos. Reconhecer, escolher e direcionar — faz com que o espelho deixe de comandar e se transforma em ferramenta. E, com ele nas mãos, finalmente podemos escrever a história que é nossa.
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