Como o entretenimento é usado para te controlar — Fahrenheit 451
Transcrição do vídeo
“Não sei. Temos tudo de que precisamos para ser felizes, mas não somos felizes. Alguma coisa está faltando.”
Ray Bradbury, Fahrenheit 451.
Informação é poder
De todas as revoluções tecnológicas que geram mudanças culturais, as mudanças nas tecnologias de comunicação estão entre as mais impactantes. Essas tecnologias moldam a maneira como as informações são transmitidas e como elas chegam até nós. A informação direciona nosso foco e, portanto, influencia nossa percepção sobre a realidade. Ela demonstra o que é possível e influencia como agimos. E no âmbito da política, a informação legitima ou deslegitima toda uma estrutura de classes e partidos. Mudar a tecnologia de comunicação significa mudar o fluxo de informações. Mudar o fluxo de informações significa mudar a cultura. E mudar uma cultura significa, por fim, mudar o modo como as pessoas pensam.
As tecnologias, de forma geral, não são nem boas nem ruins, elas não possuem um valor moral intrínseco. Tudo vai depender da intenção humana. Elas só são prejudiciais quando o ser humano as utiliza para essa finalidade. Entretanto, as tecnologias têm a capacidade de mudar nossas estruturas cerebrais e a maneira como percebemos a realidade.
A invenção da escrita, por exemplo, trouxe grandes mudanças neurofisiológicas no nosso cérebro e alterou o modo como as informações eram compartilhadas. Além de permitir a externalização do raciocínio, nos permitia guardar as informações sem a necessidade de memoriza-las. Com o passar dos séculos, os textos evoluíram para atender leitores cada vez mais exigentes, ampliando os limites da linguagem e criando novos estilos de escrita, aprimorando a clareza, elegância e originalidade na comunicação. Nosso pensamento se tornou mais sequencial e linear porque eles passaram a imitar a leitura sequencial de um livro. O aspecto da informação mudou porque o meio de comunicação mudou. Esse foi só um exemplo do impacto que a tecnologia pode causar no ser humano.
Uma outra grande revolução na comunicação foi a invenção do telégrafo elétrico e do rádio. Essas tecnologias diminuíram a necessidade de uma rede de transporte ferroviária e marítima para espalhar informações e, assim, encurtaram muito o tempo que elas levavam para se difundirem. Com menos tempo para transmissão, acabamos não nos preocupando tanto assim com os detalhes das informações, já que poderiam ser enviadas em maiores quantidades. E no século XX, com a invenção da televisão, a capacidade de transmitir informações em larga escala deu origem ao paradigma da mídia de massa. As informações passaram a ser mais simplificadas, para atingir um público maior.
Só que, sempre que uma tecnologia surge, somente uma pequena parte de uma elite é que faz uso delas até passar para as massas, para a população em geral. E não é novidade que os poucos que possuem e operam a infraestrutura da transmissão, em cooperação com as corporações e as instituições, filtram, manipulam e empacotam as informações de maneira que atendam aos seus próprios interesses. Quando as massas consomem o mesmo tipo de conteúdo difundido pelos canais de comunicação, a conformidade entre elas torna possível o avanço de ideologias que favoreçam um controle centralizado, pois aqueles que detêm quais informações fluem pela mídia de massa têm o poder de direcionar a atenção da população para certos fins, e deixa-la longe de outros.
Os nazistas, os comunistas e os fascistas, durante o século XX, fizeram uso da mídia de massa para induzir sua população a aceitar seus governos totalitários através da manipulação e da doutrinação. Livros eram queimados e banidos, ou ideias eram distorcidas para se ajustarem aos interesses dos partidos. Foi isso que aconteceu, por exemplo, em abril de 1933 na Alemanha, quando os nazistas queimaram obras de diversos autores, dentre eles os livros de Freud, Franz Kafka, Hermann Hesse e Aldous Huxley. Também na União Soviética, Stalin proibiu diversos livros, dentre eles o 1984 de George Orwell, entendido como uma imensa sátira ao seu governo.
E um livro que retrata o controle total do estado sobre a informação e o modo de vida das pessoas é o Fahrenheit 451, do escritor inglês Ray Bradbury, publicado em 1953. Fahrenheit 451 se encaixa na categoria dos grandes livros de distopias lançados ao longo do século XX. Dentre eles podemos citar o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o 1984, de George Orwell e o Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, que inclusive foi banido aqui do Brasil durante a ditadura militar. Eu fiz um vídeo para cada um desses livros aqui no canal. Você pode encontrar na playlist “distopias”. Uma distopia pode ser um gênero literário que serve como um alerta, oferecendo uma visão exagerada de um futuro, onde as instituições, os governos e as ideologias podem se desenvolver de maneira totalitária.
E o cenário de Fahrenheit 451 se passa num futuro onde Estados Unidos proibiram a leitura de livros. A tecnologia avançou tanto que as pessoas perderam o interesse pelos livros, e o estado os considera perigosos. Como resultado disso, qualquer pessoa encontrada na posse de um livro é presa, e o livro é queimado pelos bombeiros. Sim, exatamente, os bombeiros, em vez de apagarem os incêndios, os iniciam para queimar os livros. O título do livro, aliás, é uma é uma referência à temperatura em que o papel queima, em 451 Fahrenheit, que daria 233º graus Celsius. Essa inversão da função dos bombeiros só foi possível justamente porque a população não conseguia mais verificar a história, o passado, já que todos os livros eram queimados. Sem um parâmetro de comparação, qualquer coisa que o estado fale é tido como verdade. No século XX, Stalin tentou, em grande medida, reescrever e apagar partes da história russa para consolidar seu poder e reforçar sua ideologia, variando entre alterações de livros escolares, edição de fotografias e propaganda midiática.
Mas voltando à história de Fahrenheit 451, para o governo, os livros estão cheios de ideias que só prejudicarão a população em geral, pois oferecem diferentes perspectivas para um mesmo problema, e se eles quiserem ser pessoas felizes, não precisam se preocupar com alternativas e visões de mundo diferentes, como é possível perceber neste seguinte trecho do livro:
“Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso.”
Ray Bradbury, Fahrenheit 451. F3F3F3
Na história do livro, a população geral consome apenas conteúdos aprovados pelo governo através de programas de televisão, o que faz com que elas permaneçam passivas e alienadas com conteúdo superficiais.
É importante ressaltar que o governo de Fahrenheit 451 não teve grandes dificuldades de chegar ao poder porque teve forte apoio da população. E isso de certo modo reflete e muito o que aconteceu no século XX durante a ascensão dos regimes totalitários. Mas já no século 16, O filósofo francês Etienne de La Boétie, em seu livro O Discurso sobre a Servidão Voluntária, que escreveu quando tinha apenas 18 anos, mostrou que todos os governos, incluindo os mais tirânicos, só podem governar por períodos prolongados se tiverem o apoio geral da população. Dentre as inúmeras maneiras de conseguirem esse apoio, os governos detêm o poder através de uma engenharia de consentimento. Na antiguidade, escreve Etienne de La Boétie
“Peças, farsas, espetáculos, gladiadores, animais estranhos, medalhas, pinturas e outros ópios semelhantes eram para os povos antigos a isca para a escravidão, o preço de sua liberdade, os instrumentos de tirania.”
Étienne de La Boétie, O Discurso sobre a Servidão Voluntária.
Hoje em dia, esses instrumentos usados para manter a tirania mudaram de aspecto, mas sua essência permanece a mesma. Uma enorme indústria de entretenimento pode ser usada para tornar a população passiva e alheia aos problemas do governo. Na época de Ray Bradbury, era a televisão. O protagonista de Fahrenheit 451, Guy Montag, tem uma esposa, a Mildred, que fica o tempo todo assistindo a tv. Seu quarto não possui janelas e as paredes são tv’s de tela plana que fornecem 24 horas de programação.
O mundo de Fahrenheit 451 é focado na distração por meio da mídia. Como a televisão permite que as informações sejam disseminadas de maneira mais simples e compactada, podendo alcançar um público maior, as pessoas não viam mais nenhuma vantagem em ler livros, decidindo abandoná-los por conta própria. As pessoas se acostumaram às distrações fáceis e prazerosas. O governo, então, encontrou terreno fértil para sua ascensão, pois só bastava continuar alimentando a população com entretenimento barato e que apela aos sentidos e as emoções para que elas continuassem submissas e manipuláveis, da mesma forma que Étienne de La Boétie escreveu:
“São, portanto, os próprios habitantes que permitem, ou melhor, provocam sua própria submissão, pois ao deixar de se submeter, eles poriam fim à sua servidão. Um povo se escraviza, corta sua própria garganta, quando, tendo a escolha entre ser vassalo e ser homem livre, ele abandona suas liberdades e assume o jugo, dá consentimento à sua própria miséria, ou melhor, aparentemente a acolhe.”
Étienne de La Boétie, O Discurso sobre a Servidão Voluntária.
Entretenimento como manipulação.
Em Fahrenheit 451, Beatty, o chefe de Montag e do corpo de bombeiros onde ele trabalha, descreve como o processo de simplificação das ideias foi feito e que permitiu a abolição dos livros:
“Clássicos reduzidos para se adaptarem a programas de rádio de quinze minutos, depois reduzidos novamente para uma coluna de livro de dois minutos de leitura, e, por fim, encerrando-se num dicionário, num verbete de dez a doze linhas. A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”
Ray Bradbury, Fahrenheit 451.
De forma geral, as informações foram encurtadas e a qualidade foi substituída pela quantidade, permitindo que as pessoas a consumissem no menor tempo possível, deixando espaço para receber cada vez mais informações, dando a sensação de sempre estarem muito bem informadas.
Isso reflete muito na nossa sociedade atual. Não vemos vantagem nenhuma em ler livros de 300, 400 páginas e manter a atenção em um mesmo assunto, sendo que podemos nos manter informados, entre aspas, através de manchetes de notícias ou pedir para uma inteligência artificial fornecer as respostas. Além disso, as redes sociais foram estrategicamente projetadas para que permaneçamos presos a elas o maior tempo possível, assim como Mildred ficava presa à sua cama cercada por telas de televisão nas paredes.
Com o algoritmo de recomendação das redes sociais cada vez mais sofisticado, à medida que você permanece conectado e fornecendo mais dados, conteúdos cada vez mais personalizados e moldados para os seus gostos te impedem de ficar muito tempo sem usa-las, o que permite que as empresas tomem cada vez mais o seu dinheiro e determinem cada vez mais aquilo que você pensa e gosta. Brainrot é o termo utilizado para o excesso de conteúdo superficial consumido em um espaço curto de tempo que não agrega em nada de significativo na sua vida, mas que destrói cada vez mais a sua capacidade de atenção e foco concentrado em uma única tarefa, pois os estímulos proporcionados pelos vídeos curtos e as informações facilmente encontradas na internet geram prazeres cada vez mais instantâneos e rápidos. Na narrativa de Fahrenheit, as fofocas eram contadas a partir das novelas que as amigas de Mildred assistiam.
Hoje, páginas e mais páginas de fofocas nas redes sociais só servem para dispersar sua atenção e te deixar cada vez mais alienado ao que realmente importa. E esse é o ponto. A principal crítica de Ray Bradbury ao escrever Fahrenhei 451 não era a censura em si mesma. Ele viveu em uma época onde não existia internet, e a televisão era uma coisa totalmente nova. Sua principal crítica ao escrever o livro era alertar as pessoas para a forma pela qual a televisão, assim como outros tipos de mídia, fazia com que elas se interessassem cada vez menos pela leitura.
O autor, inclusive, previu algumas tecnologias que seriam construídas posteriormente, como por exemplo as telas que ficam nas paredes do quarto da Mildred, são tv’s de tela plana que possuem funções interativas. Mildred também usa um dispositivo chamado seashells que ela coloca no ouvido. É uma tecnologia sem fio que permite ouvir notícias, músicas e conversar com os amigos, funcionando como a internet de hoje em dia.
Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida
Ray Bradbury, você poderia pensar, não era contra o entretenimento e contra o avanço tecnológico, ele só estava demonstrando o que eu disse no começo do vídeo. As tecnologias não possuem um valor moral por si mesmas, e em Fahrenheit 451, elas foram usadas estrategicamente para substituir o pensamento pelo entretenimento barato, fazendo a população entregar sua servidão mais facilmente ao governo. Os cidadãos do livro são completamente acríticos. Eles perderam a capacidade de perceber qualquer problema em sua situação, se tornando seres quase inconscientes.
Montag, o protagonista, percebe que há algo de errado no mundo em que vive quando conhece Clarisse, uma mulher que se mudou para o lado da sua casa. Ela o surpreende completamente porque parece interessada nele como pessoa. Isso contrasta fortemente com as outras pessoas que ele encontra, cujo tema favorito é quase sempre elas mesmas e que estão muito mais preocupadas com a aparência das coisas do que em investigar a realidade ou explorar as ideias de alguém. Quando Clarisse pergunta a Montag se ele é feliz, ele fica sem palavras. Ele tenta desconsiderar a pergunta. Só quando ele para e pensa é que percebe que na verdade está profundamente infeliz, e que todo esse tempo ele apenas estava fazendo uma fachada.
É nesse momento que começa sua transformação. Clarisse, a partir de uma perspectiva da psicologia analítica, representa a anima de Montag, isto é, a personificação do mundo interior dos seres humanos, que até então era completamente fechado para Montag. Quando Clarisse conhece Montag, é como se ele voltasse pela primeira vez seus olhos para dentro, descobrindo que lá há um mundo inexplorado e até maior do que o mundo exterior.
Mas a grande reviravolta na vida de Montag é quando ele é acionado pelo corpo de bombeiros para queimar os livros que foram encontrados na casa de uma mulher. O choque ocorreu quando a mulher se recusou a sair de casa e deixar os seus livros para trás, e preferiu se queimar junto com eles. Desde então, Montag começa a roubar livros das casas que os bombeiros queimam e os guarda em sua própria casa. Não é coincidência que uma das obras que Montag rouba seja o Livro do Eclesiastes, do Antigo Testamento. Nesse livro, o Rei Salomão reflete sobre sua crise existencial e a resolve gradualmente restaurando sua fé em Deus. É dessa forma que os cidadãos do livro se sentem. Vivem um dia após o outro sem nenhuma perspectiva, parecendo que todos os dias são iguais e inúteis, como Salomão escreveu:
“Já não há lembranças das coisas que se foram; e das coisas que ainda virão também não haverá memória entre os que hão de vir depois delas.”
Eclesiastes 1:11.
O vazio interior causado pela incapacidade de considerar ideias e examinar a vida abala profundamente Montag. No entanto, mesmo percebendo que é capaz de ler, Montag não consegue entender aquilo que leu. Suas próprias emoções parecem misteriosas e caóticas porque ele não consegue encontrar as palavras certas para expressa-las. Isso porque a linguagem é crucial para entendermos nossos próprios estados emocionais. Quanto maior o nosso vocabulário, melhor podemos compreender como nos sentimos, e com essa compreensão, vem o controle. As nossas ações, impulsos e desejos, então, começam a fazer sentido.
O governo totalitário de 1984 de George Orwell também faz uma reestruturação na linguagem, eliminando o máximo de palavras possíveis e fundindo várias outras entre si, chegando a tal ponto de ficar impossível criticar o partido autoritário do livro. Com a restrição da linguagem, o pensamento inevitavelmente é estreitado.
Fahrenheit faz isso através da queima dos livros e do entretenimento permanente. É por isso que a literatura é crucial para entendermos nossos estados emocionais com mais clareza. Quanto mais literatura, e boa literatura, você lê, mais conceitos e palavras você aprende e mais facilmente conseguirá compreender suas emoções. Pense o quão difícil seria se só existissem duas palavras para descrever o que você sente. Ou você se sente bem ou se sente mal. Você sempre viveria confuso e com a sensação de alheamento em relação a si mesmo, pois muita informação seria perdida entre essas duas palavras.
Em determinado trecho do livro, Montag conhece um professor de inglês aposentado chamado Faber, que o ensina a como interpretar e entender os livros. E aqui está uma coisa interessante. Faber diz que os livros não são importantes por si mesmos, mas sim o que eles dizem:
“A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo”.
Ray Bradbury, Fahrenheit 451.
Faber elenca três coisas que estão faltando em Montag para que ele entenda o que está lendo. A primeira coisa é que os livros, de algum modo, precisam conversar com a realidade, seja através da ficção, seja através de tratados filosóficos. Faber diz que:
“Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais ‘literário’ você será. […] Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a violam e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida.”
Ray Bradbury, Fahrenheit 451.
Ou seja, Faber está dizendo que é um erro ler para esquecer da realidade. Pelo contrário, bons livros servem justamente para voltarmos à realidade e lidarmos melhor com ela. A segunda coisa que Montag precisa é de tempo para confrontar e validar as ideias que leu. Os livros foram proibidos em Fahrenheit pois também davam tempo para as pessoas pensarem. Elas podiam fechar os livros e pensar sobre o que estavam lendo, e isso conferia uma melhor capacidade de raciocínio, permitindo confrontar melhor a realidade. Com a televisão, eles não conseguiam fazer isso. É a mesma coisa que está acontecendo hoje com os nossos celulares. Ler está se tornando uma prática negligenciada pois é muito mais atrativo e estimulante ficar grudado na tela do celular recebendo doses baratas de dopamina a cada segundo. Não precisamos pensar, só precisar arrastar o dedo.
A terceira coisa que Faber diz é uma junção das duas primeiras, ou seja: ler, absorver o que leu e ter a liberdade para agir a partir do que se aprendeu. A leitura nunca pode ser um fim em sim mesma, ela é um meio, uma forma de tentar compreender e expandir a nossa percepção sobre a realidade. Em Fahrenheit 451, não é apenas as pessoas perderam o interesse por informações de qualidade, mas aqueles que claramente estavam interessados, não agiam com base nessa informação por que os cidadãos eram proibidos de andar nas ruas e contemplar as coisas, de conversar e de trocar ideias. Então, mesmo que eles lessem, aqueles livros não serviriam de nada, já que não poderiam discuti-los ou valida-los. Não adianta nada ler um livro e se não tivermos como agir no mundo a partir daquele conhecimento, como certa vez escreveu Franz Kafka
“Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, por que o estamos lendo?”
Franz Kafka, carta a Oscar Pollak, 1904.
Fomos feitos para contemplar.
No mundo de Fahrenheit, o respeito geral pelas ideias foi tão degradado que uma disposição para refletir é vista como uma espécie de doença. As pessoas ficam aterrorizadas quando Montag começa a fazer perguntas para elas. Em uma cena, quando Montag cita um poema para um grupo de amigas de Mildred, uma delas começa a chorar, mas não porque o poema a tocou, mas porque simplesmente não tinha a capacidade de explicar o que estava sentindo. Como nunca parou para questionar por que acredita no que acredita, sua paz de espírito é tão frágil que uma simples perturbação é o suficiente para desestabiliza-la.
Os cidadãos de Fahrenheit, além de serem privados de criticar o estado ou de aprender novos conceitos, são privados de se refugiarem até mesmo em suas mentes. Ou seja, o estado retirou a principal faculdade que difere o ser humano de todos os outros animais, a sua razão. Para muitos, o refúgio em seu próprio interior foi é a única saída que resta para se sentiram livres. Santo Agostinho percebeu que o verdadeiro mistério não é do mundo, mas nós para nós mesmos, e que para encontrarmos a verdade, não devemos olhar para fora, mas para dentro:
“Não busques fora de ti […] entra em ti mesmo. A verdade está no homem interior.”
Santo Agostinho, A Verdadeira Religião.
Aristóteles, há mais de 2300 anos, escreveu que a felicidade do ser humano deriva da contemplação da verdade, fruto do conhecimento em seu nível mais elevado. A contemplação, segundo Aristóteles, é a atividade própria de deus, pois ele pensa aquilo que é há de melhor no universo, ou seja, ele mesmo. Portanto, a atividade humana que é mais semelhante à atividade de deus será a que produzirá mais felicidade para nós, e essa atividade é a contemplação.
“Para os deuses, de fato, toda a vida é feliz, ao passo que, para os homens, o é na medida em que lhes compete uma semelhança com a atividade de deus [a contemplação]”.
Aristóteles, Ética a Nicômaco.
O processo de contemplação também pode ser melhor exemplificado pelo psicólogo tcheco Mihaly Csikszentmihalyi. Ele observou que os seres humanos estão em seu nível mais realizado quando estão envolvidos em uma tarefa que exige toda a sua atenção. No livro Foco Roubado, o pesquisador Johann Hari conta que Mihaly observou diversos pintores e viu que eles poderiam passar horas montando seus quadros pois entravam em um estado de fluxo. Eles não estavam se importando com a utilidade e com o objetivo, mas sim com o processo. A finalização era apenas a consequência do processo.
No estado de fluxo, no foco total, na contemplação, é que se encontrava a verdadeira felicidade. Nossa sociedade contemporânea está caminhando para uma direção em que somente a performance e a utilidade é que contam. Raramente paramos para processar nossas experiências e refletir sobre aquilo que estamos fazendo. Com o mundo cada vez mais acelerado, nossas cabeças estão ficando cada vez mais barulhentas. Cada segundo gasto nas redes sociais consumindo futilidades é uma nota dissonante na grande orquestra da nossa mente. Cada vez mais nossa desatenção está se tornando a brecha para a nossa servidão. Sem o silêncio, a contemplação fica impossível. E hoje, mais do que nunca, precisamos desacelerar e encontrar o nosso estado de fluxo para não sucumbir ao mundo e a nós mesmos.
Ao longo do livro, Montag se desilude cada vez mais com seu trabalho e começa a questionar a ideologia do governo. Quando ele abandonou os hábitos de conformidade e parou de perseguir seus ideais, abriu caminho para o surgimento de um eu mais autêntico. Ao tirar a máscara de conformidade, Montag permitiu que sua personalidade individual aparecesse. Isso, é claro, custou seu relacionamento com os outros, que ainda se encontravam conformados diante do que estava acontecendo. Sempre que nos desviarmos do status quo de uma nação, mesmo que ela esteja degradada e submersa em ideologias, seremos rejeitados, taxados como traidores e loucos. Mas esse é o preço da consciência. Uma frase atribuída à psicanalista Melaine Klein diz que
“Quem come do fruto proibido é sempre expulso de algum paraíso.”
Melaine Klein.
Muitos acham que estudar e adquirir autoconsciência é sinônimo de tristeza e sofrimento. Para muitos a ignorância é uma benção. Mas Bradbury demonstrou com Fahrenheit 451 o que Sócrates, há mais de 2300 já havia dito, e que está sendo cada vez mais esquecido:
“Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.”
Platão, Apologia de Sócrates.
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