O mal da geração que ri de tudo (e não acredita em nada) — O cinismo das redes sociais

Introdução

“Não é possível ser amigo de muitas pessoas, da mesma forma que não é possível estar apaixonado por muitos simultaneamente.”

Aristóteles, Ética a Nicômaco.

Essa frase de Aristóteles, tirada de “Ética a Nicômaco”, um dos seus escritos mais influentes e estudados, nos faz refletir sobre a amizade e o verdadeiro significado das relações humanas.

A Personalidade Cínica

Agora, imagine a seguinte situação: você decide ser mais sociável e começa a se aproximar de vários grupos de amigos que possuem gostos e conversas diferentes. No começo, parece uma ideia muito boa. Mas, conforme os diálogos se desenrolam, algo lhe incomoda. As crenças e pressupostos que sustentam aquelas conversas vão na contramão daquilo que você acredita. E não se trata de preconceito ou arrogância, mas de valores fundamentais para você.

No entanto, você ignora esse desconforto, e, com o tempo, você passa a rir quando deveria ficar em silêncio, e a se calar quando deveria rir. Vai tolerando comentários que antes consideraria inaceitáveis, obscurecendo pouco a pouco a sua identidade. Sem perceber, começa a viver vidas paralelas.

Simposium por Akseli Gallen kallela, , 1894
Simposium por Akseli Gallen kallela, , 1894

Um grupo faz piadas sobre o mesmo assunto que outro grupo defende com fervor. E, para lidar com essa dissonância, você encontra um artifício: você acredita que existe um mundo dentro de você, profundo e complexo, que ninguém ali compreenderia. Isso lhe dá a ilusão de que pode navegar por esses universos distintos sem ser afetado.

Mas a verdade é que você muda. Com o tempo, não apenas parecerá ser uma pessoa diferente em cada círculo social, mas de fato será. O descompromisso com a verdade se torna um hábito. E, em vez de sentir culpa por isso, você sente uma estranha satisfação.

O problema é que essa flexibilidade extrema tem um preço. Você se torna tão cético e confuso sobre suas próprias crenças que nada mais lhe fascina. Nada lhe importa, porque tudo se tornou objeto de piada. Você se convence de que levar qualquer coisa a sério é sinal de ingenuidade, que acreditar em algo é ser uma pessoa limitada. O sarcasmo passa a ser sua armadura. Mas o que começa como um escudo acaba se tornando um verdadeiro cárcere.

O cinismo, então, passa a ser chamado de tolerância e a petulância de bom humor. Você se orgulha da sua suposta capacidade de se adaptar, convencido de que, ao evitar conflitos e tomar posições, está fazendo um bem aos outros, quando, na realidade, você está apenas abrindo mão daquilo que realmente é.

Consequências do cinismo

A situação que eu acabei de descrever é apenas um exemplo de como uma personalidade cínica pode se desenvolver. Esse traço se caracteriza por uma visão desconfiada, pessimista e, muitas vezes, sarcástica do mundo.

A necessidade de agradar a todos e o medo de desagradar podem parecer qualidades à primeira vista. Mas, quando levadas ao extremo, essas características fazem com que a pessoa abandone suas opiniões e valores para evitar conflitos e não se comprometer com alguma coisa. Sua defesa, então, passa a ser o descaso nos assuntos que antes consideraria com um pouco mais de seriedade. No esforço de ser aceito por todos, ela se torna ninguém. E, mesmo rodeada de gente, sente-se sozinha, pois seus relacionamentos são superficiais. A conexão genuína desaparece, substituída por um teatro social constante.

O cinismo como defesa nas redes sociais

O cinismo moderno não surgiu do nada. Ele é alimentado por um ciclo constante de decepção. A exposição excessiva a escândalos, desilusões políticas e manipulações midiáticas criam um ambiente onde acreditar em algo parece ingênuo. A pessoa acaba vendo tudo como corrompido e passa a duvidar de qualquer possibilidade de mudança real.

Como mecanismo de defesa, muitas pessoas adotam o cinismo como um filtro automático. O humor sarcástico se torna a principal ferramenta para lidar com a realidade. A ironia vira a moeda de troca nas interações. Mas, com o tempo, esse humor corrosivo se infiltra na mentalidade do indivíduo, tornando-o incapaz de levar qualquer coisa a sério.

No entanto, extrapolando esses conceitos para uma perspectiva mais ampla, está acontecendo algo relativamente novo na sociedade, principalmente com o advento da comunicação em larga escala iniciada neste século. O cinismo apresentado através das redes sociais é um fenômeno cada vez mais evidente, moldado pela sobrecarga das informações, pela exposição constante a discursos polarizados e pela sensação de impotência diante dos problemas do mundo, já que podemos ficar sabendo, em questão de instantes, quais decisões estão sendo tomadas em qualquer país.

Nós não nos preparamos para receber tantas informações ao mesmo tempo, conhecer tantas pessoas ao mesmo tempo e, ainda pior, ter a sensação de proximidade com tantas pessoas e fatos alheios. Você, um cidadão de um centro urbano do século XXI, viu mais pessoas em um único dia do que um camponês do século XIX viu a sua vida inteira.

Diante dessa avalanche de informações, a descrença e o sarcasmo podem atuar como defesas que as pessoas usam para lidar com a aparente falta de sentido e a constante exposição a crises e polêmicas. A consequência disso é um distanciamento emocional. E esse comportamento pode se alastrar tanto no discurso online quanto nas interações offline, dificultando a construção de relações genuínas.

As redes sociais, ao mesmo tempo que conectam as pessoas e facilitam a nossa vida, também promovem um ambiente onde a desconfiança, o sarcasmo e o pessimismo se tornam estratégias de sobrevivência emocional. Não é como se precisássemos abolir as redes sociais da nossa vida, mas, como eu sempre falo por aqui, é estarmos conscientes dos seus males.

Em questão de segundos, você vê um meme irônico, seguido de uma notícia devastadora, seguida de uma decisão política, seguido de um vídeo engraçado de um animal. A velocidade com que as informações são apresentadas reduz nossa capacidade de absorvê-las da maneira devida. Assim como na situação do começo do vídeo, nos tornamos incapazes de discernir quando devemos rir e quando devemos ficar em silêncio; quando devemos nos indignar e quando devemos participar.

O cinismo nas redes sociais
Cinismo, niilismo e redes sociais

A mistura caótica de informações nos dessensibiliza. Uma tragédia aparece entre um meme engraçado e um vídeo de gatinhos. Com o tempo, nossa capacidade de reagir emocionalmente se reduz. Nada parece sério o suficiente. A cada instante, algo novo surge para substituir a indignação ou o entusiasmo do momento anterior.

Notícias falsas, escândalos políticos, tragédias globais e a hiperexposição da vida alheia criam um ambiente onde a confiança e a autenticidade são corroídas. Como resultado, o cinismo surge como um mecanismo de defesa: as pessoas passam a duvidar de tudo, adotando uma postura sarcástica e desiludida para evitar envolvimento emocional ou frustração.

O filósofo Zygmunt Bauman descreve com o seu conceito de modernidade líquida, um mundo onde tudo é fluido, instável e transitório. As relações interpessoais são mais superficiais, os empregos são temporários, e até as identidades são mutáveis. O mundo se tornou mais dinâmico e veloz, mas isso trouxe insegurança e ansiedade, pois as pessoas têm dificuldade em construir algo duradouro.

Parafraseando algo escrito por Dostoiévski, a gente se acostuma a tudo, inclusive ao absurdo. O problema é que essa dessensibilização gera uma falta de engajamento real. Quando tudo é tratado como uma piada, nada importa de verdade.

Cinismo e niilismo

O problema do cinismo constante é que ele mina qualquer possibilidade de comprometimento genuíno. Quando tudo é tratado com ironia, nada parece valer a pena. Essa atitude leva a um tipo de niilismo passivo, onde a pessoa não apenas duvida dos valores tradicionais, mas também perde o interesse em criar novos. Afinal, se tudo é ridículo, por que se importar com alguma coisa?

Esse niilismo, entre aspas, “digital”, se reflete na forma como as pessoas consomem conteúdo:

  • Tragédias viram memes.
  • Movimentos sociais são reduzidos a modismos.
  • O apocalipse não assusta mais—vira piada.
  • Não há nada que possamos fazer, afinal estamos no “bostil”.

Essa transformação de assuntos sérios em espetáculos faz parte da lógica do entretenimento das redes sociais. Conteúdos polêmicos, escandalosos ou emocionalmente carregados têm maior potencial de serem viralizados. Como resultado, há um incentivo implícito para que os usuários adotem uma postura provocativa, pois isso gera mais interações.

A ideia de que “nada faz sentido” passa a ser não apenas uma conclusão filosófica, mas uma sensação cotidiana reforçada pelo consumo acelerado de informações que parecem, no final das contas, vazias.

Esse ciclo cria um efeito dominó:

  • A exposição excessiva ao caos das redes sociais gera desilusão.
  • A desilusão alimenta o cinismo como forma de lidar com essa desilusão.
  • O cinismo prolongado leva ao niilismo, tornando qualquer ação ou crença vazia.
  • O niilismo, por sua vez, aprofunda a apatia, fazendo com que a pessoa continue imersa nas redes sociais sem realmente se comprometer com nada.

Quando tudo parece manipulado e toda ação parece inútil, a consequência natural é o conformismo. Você já deve ter visto essa frase que que citei, onde diz que o apocalipse, que antes era um medo, agora se tornou uma esperança. Esse tipo de humor, quando consumido em excesso, vai pouco a pouco moldando nossa visão de mundo. A seriedade passa a ser vista como algo antiquado diante da nossa sensação de impotência perante o mundo.

O sarcasmo e o humor em si não são problemas, eles até podem ser usados como ferramentas mais sofisticadas de educação e de crítica. De fato, ninguém consegue ficar perto de uma pessoa obtusa por muito tempo, mas alguém que passa a levar tudo para o lado cômico, como uma forma de superioridade intelectual ou como uma forma de esconder a sensação de impotência e vulnerabilidade, pode ter problemas de confiança e em lidar com as próprias emoções.

Aristóteles, em seu tratado de ética, escreve que:

“O bufão é aquele que não consegue conter o humor; ele não poupará a si mesmo ou a quem quer que seja para provocar uma boa risada. […] O rude (ou obtuso) representa uma completa inutilidade no relacionamento social: de fato, não contribui em nada e se ofende com tudo; todavia, o descanso e o entretenimento parecem ser necessários à vida.”

Aristóteles, Ética a Nicômaco.

O que podemos fazer?

Mas qual é a saída? Aristóteles, ainda em seu Ética a Nicômaco, fala sobre ter “tato”, isto é, o equilíbrio entre o humor exagerado e a seriedade excessiva. Ele escreve:  

“Considerando que a vida também inclui o descanso, percebemos que há, também, certo padrão de bom gosto no relacionamento social e certa compostura no que dizemos e na nossa maneira de dizê-lo, e ainda no que permitimos ouvir; igualmente caberá a nós saber se as pessoas com as quais falamos e ouvimos se conformam ao mesmo padrão. O indivíduo que ocupa a mediania, seja ele denominado o indivíduo de tato ou o espirituoso, é esse que acabamos de apontar.”

Aristóteles, Ética a Nicômaco.

Esse tato, ou essa espirituosidade, só poderão ser alcançadas através de um autoexame constante. Se nossas ações são aquilo que nos fazem conhecer a nós mesmos, é através da reflexão dessas ações que solidificados nossa personalidade.

Aristóteles em sua escrivaninha
Aristóteles em sua escrivaninha,1457, autor desconhecido.

Conclusão

O humor pode ser uma ferramenta poderosa para enfrentar a realidade, mas não pode ser o nosso único recurso. Ele não pode se transformar em descaso, precisamos preservar a capacidade de nos importar e de defender aquilo que acreditamos.

O desafio é encontrar um meio-termo: questionar sem se tornar amargo, rir sem desprezar, e, acima de tudo, manter a capacidade de se conectar com sinceridade.

No fim das contas, a verdadeira resistência ao cinismo está na coragem de acreditar, de se importar e de construir relações autênticas. A pergunta que fica é: você ainda consegue se importar de verdade?

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