Você nunca mais vai querer afastar o tédio — O segredo de Schopenhauer (+ Taoismo)

“O que significa ser um animal autoconsciente? A ideia é ridícula, se não monstruosa. Significa saber que alguém irá se tornar comida para vermes. Este é o terror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, sentimentos internos profundos, um anseio interno excruciante pela vida e pela autoexpressão – e com tudo isso ainda tendo um dia para morrer.”

Ernest Becker, A Negação da Morte.

Talvez a gente seja o único animal que sabe que, um dia, vai morrer. Não tem muito o que fazer quanto a isso. Durante grande parte da história, foi a religião que tentou afastar do homem o medo da morte. Os dogmas nos ensinavam que nosso sofrimento terreno, e até mesmo nossa morte, não são eventos sem sentido em um universo sem sentido, mas os passos necessários para chegar à verdadeira plenitude, que não está nesse mundo terreno, mas em um mundo além.

Hoje em dia, com o avanço do ceticismo e da ciência experimental, houve a substituição da crença de um céu transcendental para a possibilidade de um céu terreno, uma espécie de paraíso terrestre, mas que continua tendo a mesma promessa: a de que um futuro melhor nos aguarda, seja nesta vida ou na próxima. Mas essa nova crença é construída em torno da ideia de que nosso sofrimento não está tanto ligado à nossa natureza mortal, mas sim a um produto do que nos falta.

Com essa ideia em mente, pensamos que se conseguirmos realizar mais coisas, nos mover mais rápido, visitar mais lugares, conhecer mais pessoas, adquirir novos bens e alcançar novos patamares de status social e profissional, então experimentaremos esse paraíso terrestre individual. Afinal, temos apenas uma quantidade limitada de tempo antes que ele acabe para sempre.

Muitas vezes, pode ter uma sensação de que não estamos aproveitando nosso tempo tanto quanto deveríamos, e isso é intensificado com a constante comparação que fazemos de outras vidas ao olhar nossas redes sociais. Por lá, todos parecem ter uma vida extraordinária: um estilo de vida no qual a agenda está sempre cheia, muitos amigos e contatos, coisas para fazer, lugares para visitar, viagens de fim de ano e de férias, novos bens-materiais adquiridos, níveis sociais cada vez mais elevados e assim por diante.

Não que essas coisas sejam inerentemente ruins, mas também não são inerentemente boas. A questão está na comparação: o que é ruim é não saber a diferença para si mesmo. Essa idealização pode levar muitos de nós a perseguir esse tipo de vida altamente ativa e consumista sem considerar algumas coisas. Será que ter uma agenda sempre atarefada, viajar apenas por viajar ou adquirir novos bens materiais a todo o momento seja realmente aquilo que torna nossa vida significativa?

Para alguns, talvez é preciso que a vida seja realmente corrida, mas para outros seria apenas uma forma de autossabotagem que as evitam de olhar para aquilo que realmente importa e que precisa ser encarado.

Contudo, essa crença em um céu terrestre, de aproveitar a vida o máximo possível, faz pouco em termos de nos ajudar a lidar com o fato de que, um dia, nós vamos todos virar comida para vermes. Nós podemos, sim, ser um dos poucos que sobem nas escadas do sucesso profissional e financeiro, mas se isso veio ao custo de anos ou décadas de um trabalho que odiamos, e que fizeram excluir de nossas vidas as atividades que são mais gratificantes, ou melhor, que tornariam nossa vida significativa e com propósito, então será difícil não sentir que desperdiçamos nossa vida em buscas vãs.

Você já ouviu a expressão popular de que a vida é curta. E essa expressão é tão antiga que Sêneca, o filósofo estoico, há mais de 2000 anos, já tinha escrito algo sobre ela: “Não é que temos pouco tempo para viver, mas que desperdiçamos muito dele. A vida é longa o suficiente e nos foi dada em quantidade generosa para as maiores realizações, se for bem investida. Mas, quando é desperdiçada em luxos desnecessários e gasta em atividades sem valor, somos forçados, por fim, pela última imposição da morte, a perceber que passou antes mesmo de sabermos que estava passando. Assim, não nos é dada uma vida curta, mas nós a tornamos curta; e não somos mal abastecidos, mas desperdiçamos o que temos. A vida é longa, se você souber como usá-la.”

Sêneca, Sobre a Brevidade da Vida.

Um fator-chave para tudo isso, para não apenas entender como queremos gastar nosso tempo, mas também para executar com sucesso o que determinamos para nós mesmos, está no modo como encaramos o tédio.

Temos a sensação de que não estamos aproveitando tanto assim nossa vida quando somos acometidos por uma sensação de tédio. O tédio é a força que nos leva a evitar o que nós sabemos que deve ser feito. E muitos não suportam passar por momentos tediosos e nem parecer entediante para outras pessoas. No entanto, quem pode esclarecer melhor nossa relação com o tédio é o filósofo alemão do século XIX Arthur Schopenhauer.

Para Schopenhauer, aqueles que são incapazes de suportar o ócio, tão importante para o desenvolvimento da criatividade, são na verdade medrosos de encarar a própria liberdade. Ele escreve o seguinte:

”O valor que alguém atribui a si mesmo é revelado pela maneira com a qual passa seus momentos tediosos. […] Para o homem comum, o ócio torna-se logo um fardo e finalmente uma tortura, caso não seja capaz de preenche-lo com toda espécie de metas artificiais e fingidas, por meio de jogos, passatempos e toda forma de fixação.”

Schopenhauer, Aforismos Para a Sabedoria de Vida.

O ócio é o momento do livre desfrute da nossa consciência e da nossa personalidade. Muitas coisas podem surgir desses momentos. Mas para muitas pessoas, o ócio não rende nada mais do que o tédio, e quando são acometidos por essa sensação, acabam mergulhando no trabalho, ou em bate-papos descompromissados, ou simplesmente arrastando a tela do celular, porque querem se livrar de si mesmas o mais rápido possível, fugindo das coisas que realmente precisam ser feitas.

E talvez seja este realmente o problema: não suportamos o tédio porque ele nos força a confrontar nossas negligências. Quando não somos compelidos a preencher nossa agenda com qualquer coisa apenas para evitar o tédio ou parecer entediantes, começamos, com mais frequência, a fazer as coisas que adiamos, mas que realmente queremos fazer e nas quais queremos realmente nos dedicar.

O ponto não é fazer mais ou menos, mas determinar o que nossas vidas realmente precisam para nos mantermos em movimento. Não adianta viajar o mundo para esquecer dos problemas ou de si mesmo, já que você se carrega consigo aonde você for. Uma hora não vai ter escapatória e a vida vai te impelir a fazer alguma coisa dela. Como escreveu Sêneca:

“Por que te admiras de que em nada as viagens te beneficiam quando te levas contigo? Vai atrás de ti a mesma causa que te faz fugir. Perguntas por que, ao retornar à sua pátria, essa fuga não te ajuda; ora, tu foges de ti mesmo. É o peso da alma que deves deixar”.

Sêneca, Aprendendo a Viver.

Além disso, Schopenhauer escreve que o momentos de ócio é um encontro espiritual com a parte superior dentro de nós. É quando podemos desenvolver uma atividade intelectual ou novas habilidades que exercitam nossa mente e deixam nossa vida mais significativa. Não teria sentido estar no ócio sem qualquer tipo de esforço intelectual.

São nesses momentos que alguém pode descobrir uma certa aptidão para as artes, para a poesia, para a ciência ou para as atividades manuais. É nessas horas que percebemos que muitas coisas que são externas eram apenas fugas que nos faziam obter prazeres momentâneas, e que a verdadeira satisfação e a verdadeira felicidade estava dentro de nós, quando decidimos prestar atenção ao nosso ócio, e, dele, veio a nossa potência para criar.

Abraçar esses momentos criativos proporcionados pelo tédio é a melhor maneira de neutralizar a sensação de incapacidade diante da vida. A sensação de estarmos incapacitados ou estagnados prega peças na mente, faz com que questionemos o sentido da nossa existência e nos dá uma amostra do que nos espera. Para neutralizar esses sentimentos, precisamos nos mover e mudar. Já dizia Aristóteles a mais de 2300 anos:

“A vida é uma atividade e cada indivíduo exerce sua atividade sobre as coisas mediante as faculdades que lhes são prediletas; por exemplo o músico atua com a audição sobre as melodias, o estudante com o seu intelecto sobre os objetos de estudo, e assim por diante.”

Aristóteles, Ética a Nicômaco.

Esse movimento que marca a vida como atividade não deve ser interpretado meramente como seguir o fluxo, como se deixando levar pela correnteza, sem ser o responsável pelas próprias ações. É, antes, se deixar levar pelas coisas que são naturais.

Sendo o tédio um produto natural da atividade humana, talvez devemos deixar que ele nos acometa por um tempo. Seguir esse fluxo espontâneo da vida é se esvaziar-se e ser natural como a água, que, inclusive é um dos ensinamentos encontrados no livro Tao Te Ching,  de Lao-Tsé, um dos livros que fundamentam o Taoismo: “

A bondade sublime é como a água

A água, na sua bondade, beneficia os dez mil seres sem preferência

Permanece nos lugares desprezados pelos outros

Por isso assemelha-se ao Caminho

Viva com bondade na terra

Pense com bondade, como um lago

Conviva com bondade, como irmãos

Fale com a bondade de quem tem palavra

Governe com a bondade de quem tem ordem

Realize com a bondade de quem é capaz

Aja com bondade todo o tempo

Não dispute, assim não haverá rivalidade”

Lao-Tsé, Tao Te Ching.

Precisamos do devir, desse fluxo constante que demarca aquilo que está vivo, ou seja, em movimento, daquilo que está morto, e a vida significativa é um veículo para nos mover nessa direção. Quanto mais tempo permanecermos nesse modo de vida, aproveitando nossos estados ociosos, nem que seja por 30 minutos durante o dia, mas todos os dias, mais aprenderemos do que somos capazes e menos seremos assombrados pelos fantasmas de uma vida desperdiçada.

Nada disso significa que uma vida mais tranquila e simples seja a vida certa ou a melhor. Mas significa que ela é a vida certa e melhor para algumas pessoas que estão se enganando quando querem cada vez mais, sem perceber que tudo que elas precisam pode estar dentro delas mesmas.

“Quanto mais alguém tiver em si mesmo, tanto menos necessitará de coisas exteriores.”

Schopenhauer, Aforismos Para a Sabedoria de Vida.

 

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