Carl Jung, a sombra e os perigos da projeção

“A vida consiste em alcançar o bem, não isolado do mal, mas apesar dele.”

Rollo May, O Poder e a Inocência.

Nós podemos comparar a vida como se fosse um imenso campo de batalha. Nessa batalha, nosso próprio eu é tanto nosso maior aliado quanto nosso maior oponente, com uma tensão dinâmica existindo entre aqueles elementos da nossa personalidade que nos movem para o crescimento pessoal e aqueles que nos seguram ou nos fazem regredir para um estado de desamparo e medo.

Levando essa metáfora ainda mais adiante, pode-se dizer que teremos grandes chances de perder essa batalha da vida se não reconhecermos de antemão o nosso próprio lado destrutivo; aquele lado que tentamos esconder dos outros e até de nós mesmos. Utilizando vários mecanismos de defesa psicológicos, nós fazemos o melhor para permanecermos ignorantes de nossas falhas e fraquezas, como a inveja, a cobiça, a raiva e a necessidade por afeto.

Ao fazer isso, esses elementos da nossa personalidade são jogados para o inconsciente, e que vão constituir uma parte da psique que Jung chamou de sombra. Mas tudo aquilo que decidimos jogar para a sombra não desaparece simplesmente. Pelo contrário, ela passa a exercer influência de modo inconsciente no nosso comportamento e nas nossas atitudes.

Há grandes chances de que a nossa sombra esteja operando nos momentos em que exageramos nossos sentimentos de maneira desproporcional à situação, tendo um ataque de sentimentalismo; quando executamos atos impulsivos e não-intencionais; quando sentimos que estamos envergonhados com uma situação ou quando tratamos alguém mal indevidamente.

Só que, em vez de assumirmos a responsabilidade por tais ações, muitas vezes nós fazemos uso de um fenômeno psicológico conhecido como projeção para evitar enfrentar a nossa sombra e perceber que aquilo que consideramos repulsivo e inaceitável nas outras pessoas, na verdade é parte de nós mesmos.

Nesse vídeo, nós vamos nos concentrar nos aspectos projetivos da sombra. Eu já fiz dois vídeos explicando um pouco mais sobre a sombra, e um deles eu explico a parte oposta dela, que é a persona. Se você quiser saber mais sobre esse tema, dá uma conferida na playlist “sombra” aqui do canal, e aí então volta para esse vídeo.

Então, a projeção da sombra ocorre quando atribuímos um elemento que consideramos ruim da nossa personalidade, que reside em nosso inconsciente, a uma outra pessoa ou a um grupo de pessoas identificadas com um mesmo ideal. Acontece quando observamos as nossas próprias tendências inconscientes nos outros. É um mecanismo de defesa usado para evitar a angústia que é provocada quando alguém é forçado a encarar suas falhas, fraquezas e tendências destrutivas. 

Só que, a projeção também tem o seu lado positivo. Já que ninguém tem a capacidade de ler a mente do outro, a gente pode projetar nossa própria experiência subjetiva para tentar entender o mundo subjetivo do outro. Pense, por exemplo, em uma entrevista de emprego. Talvez, um fator decisivo que fez com que o entrevistador escolhesse você e não outro candidato para uma vaga de emprego tenha sido uma intuição que fez com que ele sentisse que você fosse a pessoal ideal para o cargo.

Ou quando temos desejo de se relacionar com alguém que conhecemos; nós projetamos nossos próprios atributos positivos na outra pessoa. É claro que nem tudo é projeção, se não, tudo seria sobre nós mesmos, e não é assim. O traço projetado talvez exista de alguma forma no outro; caso contrário, a projeção não se manteria. Mas é frequente que esse traço não exista no grau que o outro acredita ou vê. Há grandes chances de se tratar de uma projeção quando exacerbamos nossos sentimentos e emoções em relação aos outros, como eu havia dito.

Pense, por exemplo, em alguém que faz questão de falar para todo mundo que fulano é invejoso ou que está indignado que fulano fez tal coisa que aparentemente demonstra sua inveja. Talvez você, que está indignado com fulano, seja o invejoso, mas está projetando sua inveja no fulano porque não conseguiria suportar encarar sua própria inveja de frente.

É justamente quando as pessoas tentam ser desesperadamente boas e perfeitas, que a sombra vai ficando cada vez mais destrutiva e maligna, ou como o próprio Jung explicou:

“[…] Elas estão sempre se esforçando para ser maravilhosas, e então descobrem que coisas terríveis e destrutivas acontecem, as quais elas não conseguem entender, e elas negam que tais fatos tenham algo a ver com elas, ou se as admitem, elas as tomam por aflições naturais, ou tentam minimizá-las e transferir a responsabilidade para outro lugar. O fato é que se alguém tenta além de sua capacidade de ser perfeito, a sombra desce ao inferno e se torna o diabo.”

Carl Jung, Seminário das Visões.

Aqueles que confiam muito na projeção para protegê-los de sua sombra, que nunca se esforçam para questionar se a imagem que têm de si mesmos talvez seja perfeita demais, passam a vida eternamente precisando de bodes expiatórios ou pessoas em quem culpar por todos os seus problemas. Um bode expiatório é um sujeito inocente a quem se atribui a culpa de algo que na verdade não cometeu, sendo julgado, portanto, injustamente, e ao ser julgado, espera-se que os problemas desapareçam de uma vez.

Muitas vezes, um amigo ou membro da família é escolhido como bode expiatório. Quando um membro da família tenta a todo custo esconder a sua sombra, ele pode usar outro familiar como bode expiatório, acusando-o de ser a causa dos seus problemas. E mesmo depois de afastar o bode expiatório, geralmente os problemas persistem mesmo assim.

Isso, em alguns casos, estimula alguns a olhar para dentro e a encarar os elementos de sua personalidade que tentaram negar por tanto tempo, ocasionando a reconciliação e o perdão daqueles que foram tidos como bodes expiatórios. Mas, em vez de participar dessa reflexão interna, a maioria das pessoas apenas procura outro bode expiatório e o problema se perpetua.

Vamos exemplificar com uma situação cotidiana. Seus colegas de trabalho decidiram criar um grupo no Whatsapp sem os chefes da empresa. Vocês conversam sobre diversas coisas, mas também tem momentos que criticam os chefes, às vezes injustamente, às vezes com alguma razão. No entanto, alguém escreve no grupo para tomar porque tem alguém denunciando para os chefes tudo aquilo que é dito no grupo.

Então, exasperados, todos começam a ruminar sobre quem estaria mandando as mensagens. A criação de um bode expiatório se torna inevitável. Cada um começa a achar que fulano ou ciclano seria o impostor devido aos comportamentos que eles já haviam demonstrado: “deve ser o fulano porque ele é mais chegado ao chefe”; “deve ser ciclano porque ele é mais fechado e não sai muito com a gente”; “deve ser beltrana porque ela é puxa-saco dos donos”.

Cada um vai tentar esconder ou minimizar suas possibilidades de ser o impostor, seja exacerbando suas indignações ou mesmo se abstendo de toda a confusão. O que vai acontecer é que as coisas não vão voltar ao normal enquanto o bode expiatório não for julgado, dando a sensação de que só assim o problema se resolverá.

Carl Jung, enfatizou que a projeção é um componente inevitável e necessário em nosso desenvolvimento psicológico, pois é um dos principais meios pelos quais podemos obter consciência dos elementos que residem em nosso inconsciente. Depois de projetar um elemento de nosso inconsciente, a coisa saudável a fazer é reconhecer a origem subjetiva da projeção, retirá-la do mundo externo e integrar esse elemento de nossa personalidade na consciência.

Somente retirando nossas projeções e nos conscientizando das falhas que projetamos anteriormente nos outros, podemos esperar tomar medidas corretivas. Esse processo de retirada e integração é uma tarefa difícil, pois exige coragem para enfrentar as próprias fraquezas e qualidades obscuras.

Rene Girard, um historiador e crítico literário francês, ao longo de suas obras, explica que os indivíduos enquadrados como bode expiatório são excluídos do restante da população, por causa de suas diferenças e tidos como responsáveis por gerarem a desordem social. Muitas vezes, o bode expiatório precisa ser ostracizado ou até mesmo sacrificado para que só assim a ordem possa ser restaurada.

Mas o que acontece é que esse mecanismo do bode expiatório é uma forma de projeção da nossa sombra, uma incapacidade de lidar com o mal potencial que está dentro de nós. E para negar esse mal, precisamos acusar alguém de fora de ser o responsável pelos males, ou dos nossos impulsos destrutivos, ou da sociedade em que estamos. Como o próprio Girard escreveu:

“As vítimas são escolhidas não por causa de crimes que lhes são atribuídos, mas de suas marcas vitimárias, de tudo aquilo que sugere sua afinidade culpável com a crise, […] o sentido da operação é o de lançar sobre as vítimas a responsabilidade desta crise e de agir sobre ela destruindo tais vítimas ou ao menos expulsando-as da comunidade que elas ‘poluem’”.

Rene Girard, Bode Expiatório.

Na literatura e na história da humanidade não faltam exemplos de bodes expiatórios ocasionados por essa situação conflitiva dos impulsos destrutivos do ser humano.

No mito de Rômulo e Remo, responsável pela fundação de Roma, os dois irmãos desejavam construir uma nova cidade, mas a desavença se inicia quando ambos escolhem territórios diferentes para fundar o novo local. Os irmãos, então, resolveram decidir por meio de uma pequena disputa, e Rômulo acaba sendo o vencedor. Com inveja do irmão, Remo transpassa os limites do território que Rômulo determinou para sua cidade, a Roma. Isso enfurece Rômulo, que acaba matando seu próprio irmão.

A história bíblica de Caim e Abel também é ocasionada por um conflito interno, onde termina na morte de Abel por Caim, com inveja das oferendas do seu irmão terem agradado mais a Deus do que as dele.

Rene Girard também cita a história de Jesus Cristo, a partir dos evangelhos, como um mecanismo de bode expiatório. Ao falarmos do Jesus histórico, que não diferenciava ou esteriotipava as pessoas, que atraia para si cada vez mais fiéis e não expressava preconceitos com os outros, fez com que a sociedade da época o considerasse como causa de uma possível desordem futura. Temendo isso, um coletivo, impulsionado pelos desejos destrutivos internos que não conseguiam uma saída no exterior, viram em Jesus um perfeito bode expiatório para a necessidade de liberar toda a sombra e a violência que sentiam dentro de si, culminando, claro, na sua crucificação.

No século XV tivemos o caso de Joana D,arc, que foi injustamente condenada à fogueira, aos 19 anos de idade, por um tribunal inglês depois de ter feito um acordo com um bispo católico francês, com o objetivo de deslegitimar a coroação do rei Carlos VII, da França, e provar que Joana era uma farsa, e que tudo não passava alucinações da sua cabeça, porque Joana D’arc, aos 13 anos, teria tido uma visão de três santos, onde disseram a ela para ajudar o exército francês a coroar Carlos VII como futuro rei da França. Somente no século XX é que Joana foi canonizada como santa joana D’arc.

Na literatura moderna, tivemos o exemplo contado no livro os Demônios, de Dostoiévski, escrito no século XIX. Nele, o personagem Piotr, para justificar o começo de uma revolução, assassina Chatóv, um dos próprios membros da sua organização depois que ele estava pensando em se desassociar do grupo, pois era contra os movimentos revolucionários. Piotr, então, vê em Chatóv um bode expiatório, pois temia que, caso ele saísse da organização, pudesse denunciá-la.

Nesse processo, muitas vezes descobre-se que a forma mais eficaz de bode expiatório não é nenhum indivíduo em particular, mas sim grupos inteiros de pessoas. Ou seja, a projeção da sombra não se limita àqueles com quem se tem um relacionamento pessoal, em vez disso, podem surgir situações em que as massas de uma sociedade fazem uso de uma projeção compartilhada apontando para um grupo minoritário a causa dos males, tornando-os bodes expiatórios que devem ser combatidos.

Essa projeção da sombra de um grupo apontando outro como bode expiatório para a causa dos males pode ajudar a explicar por que tantas pessoas apoiaram e auxiliaram os regimes tirânicos do século XX. A adesão das pessoas a um sistema de crenças ideológicas e totalitárias provoca níveis altos de repressão, pois, uma vez suprimida a liberdade individual, as pessoas passam a se comportar como membros homogêneos de uma massa, onde o líder dessas ideologias pode facilmente direcionar a agressividade reprimida para ser liberada em qualquer alvo que ele queira. Essa repressão dos impulsos destrutivos cria uma sombra cada vez mais rígida, o que faz com que surja em nós um lado mais bestial e submisso a um ideal.

Jung, em uma série de escritos chamados Civilização em Transição, interpretou o caos social criado na Alemanha, na Rússia e na China do século XX, como uma manipulação dos tiranos por meio das ideologias coletivistas, que ao usarem de propagandas e dos fortes níveis de agressividade reprimidos da população, ocasionados pelos próprios regimes totalitários, fez com que os tiranos dos regimes pudessem direcionar o olhar dessas pessoas não para a verdadeira fonte das suas misérias, ou seja, o seu próprio governo totalitário, mas para grupos minoritários.

Como bodes expiatórios, esses grupos minoritários foram marcados como a causa do infortúnio e da miséria que afligiam as massas e, portanto, como uma fonte de todo mal que os assolava. Quando visto sob essa luz, não é surpreendente que as massas pudessem ser persuadidas de que era justificado que essas pessoas fossem expulsas da comunidade, presas ou, se necessário, exterminadas. Isso culminou nos horrores dos campos de concentração, nos gulags soviéticos e nas chacinas revolucionários do século passado.

A projeção no nível de coletivos se torna ainda mais perigosa, pois aqueles em posições de poder podem desviar a atenção de suas próprias atividades e do dano que podem estar causando, usando a própria propaganda, bandeiras falsas e outras técnicas de manipulação, a fim de lançar a culpa em bodes expiatórios prontos. Em todo caso, aqueles que não querem, ou não conseguem, encarar suas sombras, são presas fáceis para movimentos coletivistas que têm bodes expiatórios prontos na forma de oponentes políticos, membros de diferentes grupos étnicos ou classes socioeconômicas.

Jung chegou a sugerir que se a projeção psicológica em um nível coletivo se tornasse muito difundida, a guerra seria o resultado provável, e foi isso que aconteceu. Pois ele acreditava que o maior perigo para a civilização humana não estava nas armas que temos à nossa disposição, mas na incapacidade de compreender a nós mesmos. Pois é essa ignorância e a incapacidade de enfrentar nossas próprias fraquezas e nossa própria destrutividade que faz com que o que deveria ser uma batalha interna se manifeste no mundo externo, e as consequências podem ser desastrosas.

Parafraseando Viktor Frankl, um psiquiatra austríaco, sobrevivente de quatro campos de concentração: “Se não soubermos quem somos, outros vão dizer para nós o que o que devemos ser.”

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