Você não se apaixonou por ela, mas pela sua própria imagem…
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Capítulo 1 — Você se apaixonou por uma imagem sua
É muito bom estar apaixonado, claro que é. Quem nunca experimentou esse sentimento, o que talvez seja muito difícil, certamente tem uma vida empobrecida no que diz respeito ao número de experiências vitais. O mundo fica mais vivo e impregnado com esperança. O coração acelera, a mente dispara e o futuro parece que começa a se escrever sozinho ao lado da pessoa que nos apaixonamos.
Entretanto, esse sentimento de estar apaixonado, e os relacionamentos baseados unicamente nesse estado, nunca duram por muito tempo. Isso porque, quando nos apaixonamos por alguém que ainda não conhecemos direito, há sempre uma projeção acontecendo — isto é, uma imagem interna nossa foi acesa pelo encontro com a outra pessoa e, sem perceber, você passou a enxergar a pessoa através dela. John Sanford, um terapeuta junguiano, escreve que:
“A projeção é um mecanismo psíquico que ocorre sempre que um aspecto vital de nossa personalidade que desconhecemos é ativado. Quando algo é projetado, vemo-lo fora de nós, como se fizesse parte de outra pessoa e nada tivesse a ver conosco. A projeção é um mecanismo inconsciente.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
Projeção é quando deslocamos conteúdos da nossa psique para fora dela, atribuindo-os a alguém — seja os desejos, as qualidades, os medos ou as expectativas. Então, quando nos apaixonamos por alguém, o que estamos vendo, na verdade, é a imagem da nossa própria psique, do nosso lado feminino ou nosso lado masculino na outra pessoa. John Sanford completamente da seguinte forma:
“Quando nos apaixonamos por alguém que não conhecemos como pessoa, mas por quem somos atraídos porque reflete para nós a imagem do deus ou da deusa em nossas almas, é, num certo sentido, apaixonarmo-nos por nós mesmos, apaixonar-se cada um por si mesmo, e não pela outra pessoa.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
Essa imagem da deusa ou do deus no nosso interior é chamado, na psicologia analítica, respectivamente, de anima e animus. A anima e o animus são estruturas vivas da psique que há séculos procuram uma forma de se expressar. Em termos básicos, a anima personifica o elemento feminino no homem e o animus, o elemento masculino na mulher — essas são definições úteis, embora elas não esgotem a complexidade do tema. Carl Jung definiu essas estruturas da seguinte forma:
“A anima, sendo feminina, é a figura que compensa a consciência masculina. Na mulher, a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus […] Se eu tivesse que caracterizar, resumindo em poucas palavras, a diferença entre homem e mulher no tocante ao problema que nos ocupa, isto é, como se confrontam anima e animus, eu diria: assim como a anima produz caprichos, o animus produz opiniões.”
Carl Jung, O Eu e o Inconsciente.
Essas figuras não são inventadas por nós; elas emergem do inconsciente e, por isso, escapam ao nosso controle direto. Na prática, elas aparecem como uma “ponte” entre a consciência e o inconsciente: elas trazem à tona humores, fantasias, opiniões e impulsos que revelam pedaços de nós que ainda não conhecemos bem. O papel psicológico central de anima/animus é justamente facilitar essa relação com o mundo interior — e é por isso que o impacto delas nos vínculos amorosos costuma ser tão intenso.
E como o próprio Jung escreveu, tudo que não é muito conhecido pela consciência do ego costuma ser projetado. Desse modo, a paixão que temos por alguém nos faz projetar a anima e o animus na outra pessoa. É por isso que o outro parece tão impressionante e enigmático quando nos apaixonamos. Afinal, é como se estivéssemos vendo um deus ou uma deusa bem diante de nós.
Capítulo 2 — Anima e Animus, os arquétipos do mundo interior
Por se tratarem de arquétipos, isto é, estruturas inconscientes da própria psique, a anima e o animus, quando projetados na outra pessoa, carregam consigo uma enorme carga emocional. E não é à toa, o outro de repente recebe a capa da nossa própria alma. A pessoa vira a nossa salvadora, nossa musa, nosso herói, ou o inverso, nosso demônio ou nosso vilão. Nesse estado, tendemos a supervalorizar ou desvalorizar intensamente, perdendo de vista a pessoa real atrás desse brilho da projeção.
Existem algumas formas de reconhecer a projeção quando ela acontece. Uma delas é a urgência. Quando estamos apaixonados, tendemos a pular diversas etapas e já pensamos em morar juntos com a pessoa, fundir as vidas e se tornar um só com ela da noite para o dia.
Outra forma de reconhecer a projeção é perceber a cegueira coletiva. Quando estamos apaixonados, nós desconsideramos, ou até mesmo fingimos não ver os defeitos, os limites e as peculiaridades da outra pessoa. Qualquer incômodo que você talvez perceba na outra pessoa é encarado como uma prova da intensidade da sua paixão por ela.
E uma outra forma de reconhecer a projeção é pela discrepância entre a fantasia e a realidade. No início, você fala da pessoa como se fosse uma epifania — porém descreve muito mais a sensação que ela provoca do que quem ela é. Quando a narrativa é feita de adjetivos grandiosos e pouquíssimos fatos concretos, é provável que você esteja descrevendo a sua imagem interna, não o indivíduo à sua frente. Projeções fazem exatamente isso: tornam-se um espelho que nos mostra conteúdos nossos, mais do que verdades sobre o outro.
No entanto, nada disso invalida o encontro real com a outra pessoa. Pelo contrário: projeções são inevitáveis e, se bem trabalhadas, viram portas para o autoconhecimento e para um amor mais real. Como escreve John Sanford:
“A projeção em si não é boa nem má; o que fazemos com ela é que deve ser levado em conta.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
Quase todos os relacionamentos começam com algum grau de projeção — é ela que aproxima e põe a vida em movimento. Mas a pergunta é: “o que acontece depois que a projeção acaba?”, e sim, ela vai acabar. A imagem do deus ou da deusa vai desaparecer e você, um belo dia, verá a pessoa real na sua frente, com seus defeitos e trejeitos. A partir desse ponto, você vai ter que aprender a diferenciar encanto de conhecimento, imagem de pessoa, e transformar o ímpeto inicial em um vínculo consciente. Do contrário, a tendência será sempre buscar novos relacionamentos, pular de galho em galho em busca de novas experiências tão intensas quanto aquela do começo do relacionamento. Como escreve John Sanford:
“A projeção positiva diminui sua intensidade, enfraquece-se quando a familiaridade expõe o relacionamento a uma grande dose de realidade, e no caso a projeção negativa está logo a postos para ocupar seu lugar. O homem que já foi supervalorizado agora é desvalorizado. Um dia visto como herói, agora se transforma num demônio que parece responsável por todas as desilusões da mulher no amor e por sentir-se ela diminuída.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
Mas antes de lidarmos com a desprojeção, vejamos como a projeção da anima e do animus acontece no homem e na mulher.
Capítulo 3 — A projeção da anima na mulher
Quando um homem “se apaixona” de repente por uma mulher que mal conhece, quase sempre é a anima projetada sobre ela. E daqui decorre alguns eventos.
O caráter individual da anima no homem quase sempre é determinado pela experiência que ele teve com a sua mãe, como Jung escreveu:
“A primeira portadora da imagem da alma é sempre a mãe; depois, serão as mulheres que estimularem o sentimento do homem, quer seja no sentido positivo ou negativo. Sendo a mãe, como dissemos, a primeira portadora dessa imagem, separar-se dela é um assunto tão delicado como importante, e da maior significação pedagógica.”
Carl Jung, O Eu e o Inconsciente.
Se a experiência com a mãe foi de todo negativa, a anima do homem vai se expressar de forma depreciativa, incerta e insegura. É a anima que é responsável pelas alterações de humor no homem. Se ele não souber ter um bom relacionamento com ela, a indecisão, a insegurança emocional e o comportamento passivo-agressivo vão tomar conta da sua vida.
Dessa forma, toda mulher que encarna esses elementos perigosos e sedutores ao mesmo tempo, vão servir como objeto de projeção da anima. É aqui que os mitos e os filmes dão os exemplos: As sereias representam esses aspectos projetivos: são belas, mas que conduzem os marinheiros que passam por elas ao inconsciente do fundo do mar, devorando-os em seguida. As sereias representam o calor materno que devora o homem se ele se deixar levar por esse estado de inércia.
No cinema, as chamadas “femme fatale” encarnam esse aspecto da anima. O homem se apaixona por uma mulher sedutora que o leva a se humilhar e se degradar como um reflexo de como ele mesmo enxerga o seu próprio interior. Filmes como Anjo Azul, que está disponível no Youtube, inclusive, e Eva, representam esse aspecto da anima.
Quando o homem não reconhece os seus próprios potenciais (seja a criatividade, a ternura ou a vitalidade), ele tende a procurá-los do lado de fora, elegendo mulheres que os encarnem para ele — e, assim, fica dependente da presença delas para se sentir “inteiro”. É por isso que, muitos homens só conseguem produzir e se dedicar a algo quando estão em um relacionamento. Mas isso acaba se tornando perigoso, pois o objeto da sua motivação depende exclusivamente de alguma coisa externa a ele.
No entanto, se o relacionamento de um homem com a sua mãe foi de todo positivo, sem haver conflitos de nenhum tipo, o famoso “filho bonzinho”, ele tenderá a ser muito submisso às mulheres ou incapaz de lutar frente as dificuldades da vida. A terapeuta junguiana Marie-Louise von Franz escreve que:
“Uma anima desse tipo pode fazer do homem um sentimental, ou deixá-lo tão melindroso como uma solteirona, ou tão sensível como aquela princesa de um conto de fadas que, mesmo deitada sobre trinta colchões, ainda sentia um pequeno grão de ervilha.”
Marie-Louise von Franz, O Homem e Seus Símbolos.
Outro fenômeno típico é o da chamada “dupla anima”: quando o homem tem uma imagem fixa do seu ideal de mulher, a de ser uma mulher extremamente bondosa e submissa, a da anima que é puxada para o lar, a parceria ideal, estável e que cuida dos filhos; a outra imagem da anima chama ele para experiências mais intensas e para novos relacionamentos, como uma forma de compensar o outro estado unilateral.
Sem uma consciência desses estados, o homem pode oscilar entre esses polos, confundindo crescimento psíquico com a troca de parceiras, achando que a parceira atual já não pode mais lhe proporcionar nada, o que o faz sempre ter relacionamentos extraconjugais. Com a consciência desses estados, ele percebe que é uma tensão interna para compensar um lado que pede justamente a integração — e não um passe livre para abandonar vínculos sempre que a projeção se desgasta.
Enfim, é claro que essas projeções não se esgotam com os exemplos citados. Mas tudo isso é para chamar atenção ao fato de que, quando assumimos responsabilidade pelos próprios afetos, a relação deixa de ser palco da nossa fantasia e vira caminho de crescimento, e dessa forma, tiramos da mulher a responsabilidade de carregar a nossa própria alma.
Capítulo 4 — A projeção do animus no homem
Quando uma mulher “se apaixona” por um homem que mal conhece e o enxerga como herói, mentor ou salvador, na maior parte das vezes é o animus — seu princípio masculino interno — que encontrou nele uma tela para se projetar. Essa projeção que gera a paixão na mulher costuma ser mais intensa nos homens que são caracterizados pela “palavra” (os professores, os comunicadores, os líderes ou os artistas), porque o animus se fascina justamente pelo Logos: o princípio da clareza, das ideias e do discernimento.
Para o homem, receber essa projeção tem um lado um tanto quanto lisonjeiro, só que tem um lado mais pesado também. No começo, ele pode gostar do brilho e do status invisível que a idealização traz; logo depois, porém, percebe uma qualidade “irreal e viscosa” nesse vínculo, como se algo nele estivesse sendo engolido pela fantasia da mulher. O próprio Jung comenta sobre essa sensação:
“Quando alguém projeta o animus sobre mim, sinto-me como se fosse um túmulo com um cadáver dentro, um peso morto peculiar; sou como um desses sepulcros de que Jesus fala, com toda espécie de vermes por dentro.”
Carl Jung, Seminário das Visões.
E assim como a anima masculina é moldada pela mãe, o animus é moldado, de início, pelo pai da mulher, como escreve Marie-Louise von Franz:
“É o pai que dá ao animus da filha convicções incontestavelmente ‘verdadeiras’, irretrucáveis e de um colorido todo especial — convicções que nunca têm a ver com a pessoa real que é aquela mulher.”
Marie-Louise von Franz, O Homem e Seus Símbolos.
Uma mulher dominada internamente por um animus negativo (aquele animus que é derrotista e crítico) tende, sem perceber, a escolher homens que encarnem exatamente esse padrão — dominando-a, minimizando-a e criticando-a — reproduzindo por fora o que ela mesma vive por dentro. É por isso que a liberdade real de escolha cresce junto com a consciência psicológica.
Assim como há o fenômeno da dupla-anima no homem, também há a dupla imagem do animus. Aqui, duas figuras distintas dividem a atração — por exemplo, um homem que encarna a segurança e outro que encarna a aventura intelectual. Enquanto a projeção estiver ativa, ela se sente literalmente rasgada entre os dois, como se renunciar a um fosse “perder o próprio braço”. É o que acontece madame Bovary, no romance escrito por Gustave Flaubert. Enquanto ela se sustenta às custas de um médico, ela passa por inúmeros relacionamentos extraconjugais com diversos homens do qual recai a projeção do seu animus.
Contudo, a anima e o animus não tem só um lado negativo, mas um positivo também. A anima no homem é responsável por ser uma ponte entre a consciência e o inconsciente. Quando o homem observa seus estados internos e consegue nomear os seus sentimentos, ele está dialogando com a sua anima, que se sente satisfeita por seu ouvida, já que a pior coisa para uma mulher é não se sentir amada ou desejada.
Já o animus pode servir como guia espiritual da mulher, porque ela já tem acesso à sua alma e aos seus sentimentos mais facilmente que o homem. Se o animus negativo inculca na mulher o seu caráter opinativo e inflexível, o animus positivo lhe dá iniciativa e coragem, como escreve Marie-Louise:
“Por meio do animus a mulher pode tornar-se consciente dos processos básicos de desenvolvimento da sua posição objetiva, tanto cultural quanto pessoal, e encontrar, assim, o seu caminho para uma atitude intensamente espiritual em relação à vida. Isso naturalmente pressupõe que seu animus já tenha cessado de emitir opiniões absolutas. A mulher deve buscar a coragem e a grandeza de espírito interior capazes de lhe permitir avaliar a inviolabilidade das suas convicções.”
Marie-Louise von Franz, O Homem e Seus Símbolos.
A saída começa quando essas partes projetadas são reconhecidas como nossas— e não do mundo —, abrindo espaço para um vínculo pessoal, em vez de um triângulo entre egos e imagens.
Capítulo 5 — Do encantamento à maturidade
A projeção costuma “sumir” com o tempo por um motivo simples: quando algo do inconsciente se torna consciente, a projeção cessa — e a pessoa volta a aparecer como pessoa, não como uma tela para a nossa fantasia. Paixões intensas geralmente começam assim, por um encanto involuntário; não controlamos o disparo da projeção, ela acontece espontaneamente. O problema é que, se não soubermos lidar com o fim de uma projeção, vamos pensar que aquele momento de êxtase do começo de um relacionamento deveria durar para sempre, como escreve John Sanford:
“Preferimos continuar procurando o homem ou a mulher perfeitos, no caso o homem ou a mulher que corresponderá à imagem ideal e à garantia de que com ele ou ela nós nos sentiremos felizes e realizados, ainda que isto leve a um desapontamento ou decepção depois do outro, e vá acrescentando cada vez mais amargura ao nosso cálice de vida.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
Vamos começar a culpa o outro, dizendo que ele mudou, que ele não era assim no começo e que talvez nós fomos enganados. Essa é fórmula perfeita para pularmos de caso em caso, sem assumir a responsabilidade de olhar para dentro e perceber que precisamos lidar com as nossas imagens internas.
O lado luminoso e o sombrio caminham juntos. Quando essa projeção se torna negativa, a mesma mulher que ontem parecia uma deusa pode, no dia seguinte, ser percebida como uma “bruxa”. É frequente o homem atribuir à mulher a responsabilidade por seus próprios humores — mas, clinicamente, sabemos que o mau humor e o ressentimento são sinais de que a anima capturou afetos que ele não conseguiu expressar diretamente. Diferenciar sentimento de humor e nomear o que se sente, em vez de agir de modo passivo-agressivo, evita que a anima “possua” as relações.
Da mesma forma com a mulher. O herói de ontem vira o “homem frustrante” de hoje quando a realidade cotidiana dissolve a fantasia. A idealização perde força, e a imagem negativa se instala: ele passa a carregar, aos olhos dela, a culpa por cada desilusão. Esse vai-e-vem é típico quando a relação foi montada sobre a imagem do animus, e não sobre a pessoa real do parceiro.
“Quando uma mulher olha para um homem como se fosse o protetor de sua alrna, isso apenas irá fazê-lo declarar-lhe com impaciência que ela está vendo, no relacionamento, mais coisas do que as que realmente existem.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
Como dissemos anteriormente, é inevitável que haja a projeção da anima e do animus no começo de um relacionamento. É isso que aproxima as pessoas e inicia as relações amorosas. Mas quando esse começo paradisíaco cede espaço à vida cotidiana e o deus ou a deusa na nossa frente vai embora e vemos aquele humano, demasiado humano, na nossa frente, o que vai ser exigido de nós é manutenção para o relacionamento e, principalmente, autoconhecimento.
“O amor real começa somente quando uma pessoa chega a conhecer a outra, para quem ele ou ela é realmente um ser humano, e quando começa a amar esse ser humano e a preocupar-se com ele.”
John Sanford, Parceiros Invisíveis.
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