A sensação de ser incapaz de fazer qualquer coisa — Hamlet e Dom Quixote
Transcrição do vídeo
Bom, nesse vídeo, eu vou explicar, exemplificar e mostrar o máximo que eu conseguir sobre esse sentimento de incapacidade diante da vida. Eu peguei referências de vários autores, da minha experiencia como terapeuta e também das grandes obras literárias para te ajudar a combater essa forma de angústia. Então, vamos lá.
Uma característica compartilhada por todo mundo, isto é, nós seres humanos, é a de que somos falhos. Todos nós temos fraquezas e traços de personalidade que são um obstáculo na direção da nossa totalidade. No entanto, nós também temos o desejo de nos livrar dessas falhas, ou pelo menos minimizar muito o efeito que elas têm em nossa vida.
Só que, no meio dessa ponte entre nossas falhas e nosso desejo de mudança, podemos ser acometidos por um sentimento de impotência, isto é, a sensação de ser incapaz de sair do lugar ou mesmo de fazer alguma coisa. Nesses momentos, nossas fraquezas, maus hábitos, medos e dúvidas ganham uma certa vantagem e passamos a nos ver como amplamente desamparados na formação de nossas vidas e na atualização dos nossos potenciais.
Quando esses momentos recaem sobre nós, é muito comum pensarmos que não podemos mudar ou que não vamos conseguir mudar, já que isso está associado com uma propriedade inerente a nós que pode ser ou boa ou ruim, dependendo de como direcionamos ela, que é o hábito — a capacidade do ser humano de se adaptar às circunstâncias para a melhor ou para a pior. Quando sentimos esse sentimento de impotência, de não sermos capazes de fazer nada e de não conseguir levar nada adiante, tendemos a achar que esse é o nosso estado normal e vamos nos conformar com isso pela simples força do hábito.
Erich Fromm, um psicanalista alemão, em seu texto sobre o sentimento de impotência, descreve essa sensação da seguinte forma:
“Eu não consigo influenciar nada, mobilizar nada, não consigo realizar nada por meio da minha vontade – seja uma mudança no mundo exterior ou em mim mesmo –, eu não sou levado a sério e eu passo despercebido pelos outros.”
Erich Fromm, Sobre o Sentimento de Impotência.
Vamos exemplificar. As pessoas com o sentimento de impotência não acreditam que de alguma maneira sejam capazes de fazer alguma coisa que alguém possa gostar. Elas também não fazem nenhum esforço para se expor, para se comportar de maneira ativa quando necessário, com o intuito de ganhar amor e simpatia dos outros. Elas, em vez disso, esperam que o tempo possa consertar tudo; de que alguma coisa vai cair do céu, e a oportunidade perfeita vai aparecer para elas demonstrarem todo o seu potencial.
Enquanto elas querem dizer que não encontram ninguém que as ame por conta de alguma falha sua ou por conta de quaisquer circunstâncias infelizes, o que de fato está na raiz da situação da qual se queixam é a sua incapacidade de fazer qualquer esforço para ganhar o amor do outro. O sentimento de impotência pode fazer com que elas fiquem indefesas a todas as críticas direcionadas para elas. Às vezes, elas sabem que a crítica é injustificada, mas não conseguem expressar nada para se defenderem.
Em casos extremos, o desamparo vai tão longe que elas também não são mais capazes de sentirem que foram injustamente criticadas, e toda crítica ou toda acusação é internamente aceita como válida. E muitas vezes acontece delas perceberem a injustiça horas ou dias depois. Só então ocorrem a elas todos os argumentos que elas poderiam ter usado para refutar a acusação, ou todas as grosserias que elas poderiam ter expressado contra os insultos.
Elas visualizam a situação repetidamente, fantasiam em todos os detalhes aquilo que deveriam ter feito, aumentando ainda mais raiva que sentem por si mesmas. Elas não acreditam que podem impor seus desejos e que podem conseguir algo por si mesmas. E caso tomem alguma decisão, sua decisão se torna uma ruminação tão grande que a faz pensar que, se der um passo, sua esposa ficará irritada, por exemplo, ou se fizer tal coisa, seu pai é que vai ficar irritado. No fim, elas se decidem pelo lado onde está a irritação que temem menos.
Isso faz com que se sintam, de algum modo, violentadas pelos outros e começam a alimentar um ressentimento por causa das suas próprias ruminações, mas não percebem que elas mesmas é que estão se violentando. Só que, o sentimento de impotência produz uma forte angústia, e a angústia, por sua vez, fortalece por si mesma ainda mais o sentimento de impotência. Esse ciclo fica responsável pela sensação cada vez mais pesada de não conseguir sair do lugar.
Ao tentarmos nos livrar desesperadamente desse sentimento de impotência, um perigo que podemos estar acometidos é o de começar a racionalizar a nossa sensação de incapacidade diante da vida. Ou seja, vamos começar a alimentar um sentimento de autopiedade e nos consolar por não conseguirmos sair do lugar.
Vamos, então, começar a girar em torno dos mesmos tipos de explicações: alguém ou algum grupo me sabotou, talvez por antipatia; grandes forças antagônicas lá fora, como o governo ou convenções sociais, me atrapalharam; recebi maus conselhos, ou informações foram escondidas de mim. Finalmente — se o pior acontecer — foi tudo má sorte e circunstâncias infelizes. A maioria de nós, em outras palavras, foca em causas externas e desconsidera o papel que desempenhamos na gênese e perpetuação de nossos problemas. Isso não quer dizer que sejamos totalmente responsáveis pela maneira como nos desenvolvemos.
Muitos de nós somos vítimas de uma educação ruim, de maus-tratos por outros e de reviravoltas cruéis do destino. Mas se focarmos muito nessas causas externas, podemos inadvertidamente exacerbar nossos sentimentos de desamparo e, no processo, nos trancar em nosso problema atual. A gente pode, inconscientemente, começar a empilhar dificuldades que criamos na nossa própria fantasia e fazer com que o sentimento da falta de perspectiva faça com que nosso desamparo seja compreensível.
Se essa situação piorar, a pessoa pode querer provocar, consciente ou inconscientemente, o seu chefe para ela ser demitida do emprego, por exemplo, ou brigar com a esposa ou com o marido a ponto de sempre tentar criar um clima ruim — e quando consegue tudo isso, ela então obtém a justificativa que queria para o seu sentimento de impotência, aumentando ainda mais a convicção de que não podem sair do lugar ou de que não pode mudar nada.
E já que essas pessoas, incapazes de executarem qualquer coisa, tentam compensar a inatividade produzindo todo tipo de pensamento fantasioso, como, por exemplo, o anseio por controle e comando em todas as situações. Elas imaginam que poderiam ser um líder muito melhor que o atual delas na empresa, ou de que conduziriam uma tarefa muito melhor que o mais capacitado para aquilo e etc.
A partir daqui, fica nítido, que a pessoa está trocando suas ações por potencialidades fantasiosas que não vão encontrar respaldo na realidade, com medo de que essas fantasias se mostrem aquilo que elas realmente são: fantasias. E quando não são pensamentos fantasiosos, são geralmente supercompensações em atividades frenéticas que somente aparentam ter resolvido o problema da impotência.
Então por exemplo, se precisam começar um projeto para o trabalho ou para a faculdade, elas não sentam na cadeira e começam a imaginar o trabalho feito, mas saem, por exemplo, em busca de milhares de livros, pesquisam trocentos artigos, falam com trocentas pessoas, vão a trocentos lugares para se proteger do sentimento de impotência ao tentar realmente sentar na cadeira e saber que vão negligenciar o começo do projeto de fato.
A consequência mais importante e mais geral do sentimento de impotência, o que resulta de tudo isso que eu falei aqui, é o ressentimento, que é uma espécie de raiva marcada justamente pela sua impotência. Quando a pessoa cai nesse ressentimento, a sua meta não é, como em outros tipos de raiva, a destruição ativa e consciente de algo, mas ela é muito mais vaga e indeterminada, e também é direcionada de modo muito mais destrutivo contra o mundo exterior e contra si próprio
O ponto disso tudo é que, quando temos um problema, é comum nos perguntarmos “por quê”. Por que fomos amaldiçoados com essas falhas? O que havia em nossa vida, nossa educação, nossos relacionamentos interpessoais que nos levaram a esse ponto? Achamos que se conseguíssemos descobrir o porquê, uma grande transformação irá acontecer, uma mudança de chave vai ocorrer e tudo, de repente, vai se esclarecer. Embora isso possa, de fato, ser transformador, muitas vezes não é bem assim.
Uma característica dos nossos ancestrais era o de perpetuar os ritos que a tribo possuía. Esses ritos, além de fortalecer os laços entres os indivíduos, fazia com que cada um deles conhecessem a sua origem e seu lugar na família. Perpetuar um rito não era saber por que ele estava sendo executado, mas era simplesmente executá-lo. Nas palavras de Mircea Eliade, um dos maiores mitólogos do século passado:
“O homem das sociedades arcaicas é obrigado não somente a rememorar a história mítica de sua tribo, mas também a reatualiza-la periodicamente em grande parte. De modo análogo, um primitivo poderia dizer: ‘eu sou o que sou hoje porque antes de mim houve uma série de eventos’”.
Mircea Eliade, Mito e Realidade.
O sentimento de ser incapaz de fazer qualquer coisa está na crença de que primeiro temos que saber para fazer, mas, muitas vezes, é o contrário, precisamos fazer para saber. Invertendo uma frase dita por Sócrates no diálogo Apologia, de Platão, em que ele fala que a vida não examinada não vale a pena ser vivida; para os casos de impotência também é verdade o contrário: a vida não vivida não vale a pena ser examinada. Nesses casos, não é necessário perguntar “por quê”. É muito mais fácil perguntar “o que”. O que precisa ser feito?
É claro que é preciso sempre deliberar sobre as nossas ações, mas aqui, estamos falando das pessoas que estão desesperadas com a inércia da existência e encarando a angústia do fazer e não fazer, ou mesmo sem um objetivo para encobrir a sensação de impotência.
Se pudermos reconhecer que nossos problemas, qualquer que seja sua natureza, não são sinais de que estamos sozinhos e loucos em um mundo cheio de pessoas, entre aspas, normais, mas, em vez disso, são apenas uma manifestação de nossa situação existencial compartilhada, é muito mais fácil responder à pergunta “o quê” de uma maneira honesta. Jung costumava mostrar mitos e contos aos seus pacientes que pensavam estarem se tornando loucos por alguma coisa que eles não conseguiam entender, para fazê-los perceber suas fantasias nas formas em que elas apareciam há mais de 1500 anos.
Isso tem um efeito calmante, porque o paciente vê que ele não está sozinho em um mundo estranho que ninguém entende. E é exatamente isso que eu fiz lá no começo do vídeo, descrevendo vários sentimentos e comportamentos das pessoas que estão sofrendo com a sensação de impotência. Te digo que isso é mais normal do que você imagina. Há mais de 2000 anos, um poeta romano chamado Terêncio escreveu o seguinte:
“Sou humano: nada do que é humano me é estranho.”
Terêncio, O Punidor de Si Mesmo.
E onde que o sentimento de impotência aparece na literatura? Em várias obras, mas podemos pegar o exemplo de Hamlet, da peça de Shakespeare.
Lembra que eu disse que as pessoas acometidas com o sentimento de impotência são incapazes de fazer algo para os outros? Então, isso porque elas creem muito em si mesmas, mas alimentam ao mesmo tempo um autodesprezo, por mais paradoxal que isso possa ser, mas é disso que se trata um conflito interno. Elas agem como Hamlet, que não encontra nada no mundo inteiro a que possa se apegar com toda a sua inteireza; ele é cético, dedica-se somente a si mesmo e se consola o tempo todo; está continuamente ocupado não com as suas obrigações, mas com a sua posição.
É justamente por isso que, ao duvidar de tudo, Hamlet duvida até de si mesmo; seu intelecto é desenvolvido demais para se contentar até com aquilo que se encontra dentro dele. Ele é incapaz de agir pois sua imagem idealizada de perfeição o impede de manifestar qualquer coisa na realidade, com medo de não se apresentar tão perfeito como ele visualizou na cabeça. Hamlet despreza a si mesmo, mas — olha que interessante — se alimenta do seu próprio desprezo. Seu amor próprio é o que impede de agir. Sim, é preciso dizer com todas as palavras para ficar claro.
O sentimento de impotência não passa de egoísmo, não passa de uma preocupação excessiva com a própria posição. Na peça, a prometida de Hamlet era Ofélia, que nutria esperanças de que um dia poderia se casar com ele. Mas o ceticismo de Hamlet impede que ele ame Ofélia. E o amor não abre muito espaço para análises e reflexões, pois para se amar é preciso passar por cima dos defeitos e das manias dos outros, e isso é muito difícil para uma mente extremamente cética e racional. Hamlet não consegue fazer isso.
Bom, onde está então a cura para os Hamlets modernos? Em Dom Quixote, o princípio oposto de Hamlet. Dom Quixote, escrito por Miguel de Cervantes, na mesma época que foi também foi escrita a peça de Shakespeare inclusive, lá no século 17. Dom Quixote é talvez a maior obra literária de todos os tempos, e nos mostra como o distanciamento de nós mesmos é a melhor maneira de lidar com o sentimento de impotência. Dom Quixote representa a fé em algo eterno, incorruptível. Dom Quixote se dedica a algo que está fora dele mesmo.
Ele vive inteiramente fora de si, e por isso consegue agir. Ele crê, por isso é destemido e paciente, sem angústias e temores insanos. Ele, acima de tudo é um entusiasta da vida porque mantém sua criança interior sempre atenta. A criança simbólica que habita dentro de nós é a portadora da renovação pelo renascimento, uma vitalidade ingênua, aparecendo em nossa vida sempre que nos desapegamos e nos abrimos às mudanças, pois toda mudança carrega consigo a novidade. Enquanto Hamlet duvida, Dom Quixote age; Hamlet analisa, Dom Quixote executa; Hamlet abandonou sua criança interior, Dom Quixote carrega sua criança interior nos ombros.
Como uma criança, que não teme os olhares dos demais ao se comportar de maneira excêntrica, aquele que não se preocupa excessivamente com a sua própria condição é quem consegue se mover e não recuar diante da vida. Apenas na medida em que o homem está espiritualmente com algo ou com alguém – apenas na medida deste “estar com” é que o homem está “consigo”.
Só nos preocupamos excessivamente como a nossa condição quando não temos um objetivo no mundo a que possamos ter a responsabilidade de lidar. Pense em um bumerang: ele apenas retornar às mãos de quem o atirou porque não encontrou um alvo. Da mesma forma, nós só voltamos à nossa própria condição quando não encontramos um alvo no mundo a que possamos nos dedicar. O sentimento de impotência é o medo de se dedicar.
Claro, a vida não é feita de extremos, mas justamente da união desses opostos que caracterizam a personalidade própria de cada indivíduo porque essa união cria algo totalmente novo e único. Com isso, não estou dizendo para um Hamlet ser inteiramente um Dom Quixote, até porque Hamlet e Dom Quixote são apenas representações extremas do ceticismo angustiante e do altruísmo idealista. De um lado, Hamlet é trágico por ser extremamente cético; do outro, Dom Quixote é cômico por ser extremamente ingênuo e altruísta.
Nós estamos no meio, na realidade. Para não ser um Hamlet é preciso ir mais para o lado de um Dom Quixote. E para não ser um Dom Quixote é preciso ir mais para o lado de um Hamlet. A literatura nos ajuda porque as histórias são situações existências condensadas de grandes dramas universais dos seres humanos. Aqui, não estamos procurando uma solução puramente racional, mas intuitiva e irracional — e irracional não deve ser entendida de forma negativa.
Um objetivo de vida autoselecionado nos ajudará ainda mais no cultivo dessa coragem diante da vida, desse impulso para perceber que só vamos nos movimentar se tivermos um porquê que nos faça movimentar.
Como eu havia dito, um dos fatores do sentimento de impotência é que o indivíduo criou uma imagem fixa tão perfeita de si mesmo que ele teme dar qualquer passo, com medo dessa imagem desmoronar quando percebe que as coisas que ele faz na realidade não são tão perfeitas assim, ou quando ele acha que existe dentro dele um baú de habilidades que serão ativadas a qualquer momento, sem ele precisar fazer nada. Imagina se eu, por exemplo, ficar matutando na minha cabeça o vídeo perfeito, irretocável, livre de falhas, para que ninguém consiga criticar, não teria nenhum vídeo no canal até hoje se eu pensasse assim.
Só não vão existir críticas se eu não postar nenhum vídeo. É essa coragem para experimentar, para se mover para algo, que força a pessoa a lidar com um dos maiores medos da humanidade, que é o medo do ridículo, da rejeição. A coragem é a exata união de Hamlet e Dom Quixote, ou seja: é a capacidade de agir diante do medo; a capacidade de executar apesar da dúvida. Supondo, então, que selecionamos um objetivo que nos ajudará a concretizar nosso potencial, em vez de selecionar algo meramente por recompensas externas como riqueza e status social, então a busca por nosso objetivo nos removerá do caminho seguro da conformidade e da apatia.
Nos tornamos construtores construindo casas; violinistas, tocando violão; desenhistas, desenhando, não pensando sobre construir casas, tocar violão e desenhar. Da mesma forma, nos tornamos corajosos realizando atos de coragem.
Portanto, sempre que estivermos em um precipício entre a coragem e a covardia, entre o fazer e o não fazer, devemos nos perguntar se essas evasões valem uma eternidade de arrependimentos futuros, que alimentam cada vez mais a nossa angústia. Pois, no final, não há nada que fará nos conhecer melhor do que as nossas ações diante da vida.
Não somos nós quem perguntamos o que vamos fazer da vida, mas, pelo contrário, é a vida que pergunta, a todo instante, o que vamos fazer dela. E só conseguimos responde-la na medida em que formos responsáveis por algo no mundo. Também não devemos ter esperança de que uma epifania nos atingirá e nos mudará para sempre, para melhor, ou de que todos os nossos problemas vão ser resolvidos se tivermos uma descoberta esdrúxula sobre o nosso passado. Em vez disso, tudo se resume a se estamos ou não dispostos a dar o que no final pode ser um salto no escuro; um salto de fé. Mas um salto que não é uma negação da vida, mas sim a sua afirmação.
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