A sensação de não conseguir tirar nada do papel — como superar o medo e a preguiça
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O psicanalista Erich Fromm, em um de seus textos, conta a anedota de um homem que aspirava se tornar um escritor talentoso de ficção, no entanto, resistências internas o impediam de sentar e escrever seus contos de ficção. Ele justificou sua procrastinação perpétua com o que Erich Fromm chamou de “crença no Tempo” – isto é, ele disse a si mesmo que “um dia” ele começaria a trabalhar. Mas como acontece com tanta frequência, esse “um dia” nunca chegou; e quando ele entrou na meia-idade e a morte foi ficando cada vez mais perto, o homem percebeu quanto tempo e energia ele havia desperdiçado – o que acabou levando a um colapso mental. Erich Fromm continua:
“Na realidade, ele ainda não havia escrito uma única linha […] Quanto mais velhas essas pessoas ficam, mais se apegam à ilusão de que um dia farão algo. Em certas pessoas, ao atingir uma certa idade, geralmente no início dos quarenta […] há um colapso neurótico que se baseia no fato de que não se pode viver se não se tem essa ilusão reconfortante do tempo.”
Erich Fromm, A sensação de ser incapaz de fazer qualquer coisa.
Para alguns, a preguiça é o principal obstáculo que as impedem de realizar seus potenciais criativos. Mas outros alegaram que o medo é a principal resistência à criatividade, e que a preguiça é apenas uma manifestação externa de medos subjacentes. No livro A Guerra da Arte, o escritor Steven Pressfield nos mostra que
“Resistência é medo. Mas a Resistência é astuta demais para se mostrar nua dessa forma […] Em vez de mostrar nosso medo — o que pode nos envergonhar e nos impelir a fazer nosso trabalho —, a resistência nos apresenta uma série de justificativas plausíveis e racionais para o porquê de não fazermos nosso trabalho.”
Steven Pressfield, A Guerra da Arte.
O medo de trabalhar duro em algo pode se manifestar como preguiça ou como medo de não sermos tão inteligentes ou talentosos o suficiente para criar algo de valor. Esses dois aspectos do medo conversam entre si e nos impedem de começar alguma coisa. Existe uma linha de pensamento, quase inconsciente, que passa na nossa cabeça mais ou menos assim: “Eu visualizei um projeto. Ele é perfeito. Mas eu tenho medo de traze-lo à realidade pois eu sei que não serei suficientemente capaz de deixa-lo da mesma maneira que eu imaginei”.
Quando pensamos pela primeira vez em algo para criar, tendemos a ficar psicologicamente e emocionalmente inflados e levados por um entusiasmo irrealista. Supervalorizamos nossa ideia, imaginamos quão glorioso será nosso produto final e presumimos que o processo de criação virá com relativa facilidade. Essa inflação criativa é uma parte normal e necessária do processo criativo, pois o entusiasmo associado a ela nos ajuda a superar nossos medos e preguiça e a nos dedicarmos ao difícil trabalho criativo. No entanto, muitas vezes, ao transformar uma ideia em realidade, algo nesse processo pode fazê-la parecer menor. Ele muda do sobrenatural para o mundano e começamos a perceber as falhas e o limites das nossas criações.
Isso é chamado de deflação criativa, que é a decepção inevitável que sentimos quando nosso produto criativo final não é tão bom quanto imaginávamos inicialmente. Até ocorre, muitas vezes, de termos feito um trabalho, mas sentirmos medo de fazer os próximos, ou até mesmo continuar com aquele que estávamos fazendo, justamente por conta da deflação criativa.
No entanto, ao olharmos para trás, é quase certo que nos arrependeremos de não termos colocado nossas aspirações criativas em ato. Mas, precisamos perceber que a criatividade é a capacidade de transformar as falhas ou as dúvidas em arte. A arte é a humanidade materializada. Se fôssemos como máquinas, a arte não aconteceria, pois não teria alma. Podemos pedir para uma inteligência artificial criar belas artes para nós, mas elas não terão humanidade. Para converter uma ideia em realidade, devemos canalizá-la por meio de nossas capacidades criativas desajeitadas, sujeitá-la às limitações de nossas ferramentas criativas e rebaixá-la com nossas próprias imperfeições e pontos cegos. Não é fácil suportar a deflação criativa e aceitar que com cada criação existirá um abismo entre nossa visão original e o produto final. Daí porque a maioria das pessoas com aspirações criativas nunca as realiza.
Muitos preferem passar pela vida com grandes ideias criativas que permanecem não realizadas, do que começar a trabalhar e arriscar criar algo tangível que pode não ser tão bom quanto o planejado. Exemplo disso é mostrado em um dos contos de Machado de Assis chamado O Homem Célebre. No conto, um músico chamado Pestana tem um grande desejo em se eternizar com composições tão boas quanto a de Beethoven e Mozart, o que o impede de trabalhar em projetos mais simples, mas que garantiriam seu sustento. O que acontece é que Pestana construiu um ideal fixo de perfeição, supervalorizando sua importância e sempre comparando seus feitos com a ideia de ser um gênio ou ser humano perfeito e culto. É justamente essa comparação que o faz pensar que suas composições nunca estão à altura do que imaginava.
Mas isso teve um custo até mesmo para os que estavam ao seu redor, pois pestana começou a atribuir o seu fracasso às circunstâncias externas. Após realizar inúmeras tentativas para transformar essa vontade de ser um grande compositor em realidade, chegou até a se casar com uma compositora achando que daí lhe viria a inspiração. Mas, como já era de se pensar, ele não conseguiu superar essa falta de criatividade. No final, acabou doente, pois uma das piores coisas que podem acontecer é não utilizarmos essa energia criativa, exatamente como escreveu a terapeuta junguiana Marie Louise von Franz:
“Pessoas que têm um lado criativo e não o vivem são os clientes mais desagradáveis. Elas fazem tempestade em copo d’água, se preocupam com coisas desnecessárias, estão apaixonadas demais por alguém que não merece tanta atenção, e assim por diante. Há um tipo de carga flutuante de energia nelas que não está ligada ao seu objeto certo e, portanto, tende a aplicar dinamismo exagerado à situação errada.”
Marie-Louise von Franz, Sombra e o Mal nos Contos de Fadas.
Quando falhamos em canalizar nossas energias criativas, essas energias não desaparecem completamente. Em vez disso, elas ficam presas dentro de nós e, em sua estagnação, tornam-se destrutivas e nos impelem a descontar nossas frustrações criativas nos outros, ou então a sucumbir a vícios para encontrar alívio temporário do estresse crônico causado pela energia criativa reprimida.
Uma das maneiras mais eficazes de lidar com essa deflação criativa, como a que ocorreu com Pestana, é em vez de trabalhar em um único projeto criativo que passamos anos tentando transformar em uma obra-prima, podemos tentar trabalhar em um número maior de projetos menores. Quando lidamos com projetos menores, é mais fácil experimentar e correr riscos e ver cada criação como uma experiência de aprendizado e um verdadeiro laboratório criativo para aprimorar nossas habilidades. Além disso, quando outros projetos criativos estão esperando na nossa lista, não temos tempo para ruminar os pensamentos na decepção da nossa deflação criativa. Depois que fizemos o nosso melhor e terminamos um projeto, ficamos ansiosos para liberá-lo e deixá-lo de lado para que possamos passar para o próximo. E é exatamente isso que muitas vezes precisa nos ocorrer: precisamos deixar nossas obras acontecerem e não as guardar conosco, em nossos pensamentos.
Valorizar somente os feitos grandiosos causa desgosto pela vida, que é, justamente, feita de pequenas coisas, construídas um dia de cada vez. É certo que, ao fazermos criarmos obras, muitas delas inevitavelmente serão ótimas. Mais uma vez, não é fácil suportar a deflação criativa e perceber que nada que criamos nesse mundo pode ser perfeito. Somos falhos e, portanto, nossa criação será falha. Não seria coerente esperar criações perfeitas de seres limitados. Mas isso não nos impede de aspirar por coisas grandes, desde que sejam realizáveis. Para nos dar a melhor chance de sucesso mundano, devemos atualizar nosso potencial criativo, e isso só pode ser feito se nossas principais motivações para criar transcenderem o desejo pelo sucesso a qualquer custo, seja financeiro ou outras coisas mundanas. Muitas vezes, é pelo fato de nossas motivações estarem no lugar errado que não conseguimos canalizar a energia criativa para produzir nossos projetos.
A questão final é que, muitos não querem passar por esse processo que pode ser doloroso, mas transformador, e preferem permanecer por toda a vida como aspirantes a artistas, ou aspirantes a gênios, em uma escala muito grande, em vez de produtores de um produto mais simples em uma escala muito menor, porém realizável e que lhes dê capacidade para até mesmo criar as grandes obras. Não devemos esperar que a inspiração caia do céu ou ter medo de materializar aquilo que visualizamos no pensamento. Pois, no final, não queremos acabar igual o Pestana:
“[…] expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.”
Um Homem Célebre, Machado de Assis.
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