A pessoa que pensa mas não age — Dostoiévski e a racionalização
Transcrição do vídeo
“O que é que as pessoas mais temem? Um novo passo, uma palavra nova e própria, é isso que elas temem acima de tudo.”
Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo.
Muitas pessoas me procuram, buscando terapia, relatando mais ou menos a mesma situação: elas sabem, muitas vezes, qual é o problema delas; elas sabem o que precisa mudar, como devem mudar e o que devem fazer para atingir os resultados tão esperados, seja na vida profissional, amorosa, familiar ou pessoal. Mas, por algum motivo, elas não conseguem se movimentar, dar o primeiro passo. Sabem o que precisa ser feito, mas não fazem, para depois se remoerem numa angústia ocasionada por essa paralisação.
Parece que essa sensação é causada por uma lacuna entre a intenção e o comportamento. Você traça a meta, entende o passo-a-passo, sente até um entusiasmo honesto… mas, na hora H, parece que a energia evapora. Isso porque, de fato, há um abismo gigantesco entre esses dois componentes. Muita informação se perde no caminho entre o pensamento e a ação. Mas de que modo elas se perdem? No nosso dia-a-dia, pode ser de diversas maneiras.
Nós podemos ser brilhantes em organizar tudo, planejar treinos, estudar planilhas, comprar materiais e elaborar mapas mentais, mas, na hora da execução daquilo que planejamos, nós “lembramos” (entre aspas) de arrumar a nossa escrivaninha, ou de responder uma mensagem, ou simplesmente nos contentamos somente com a ideia, sem precisar colocá-la em prática.
Essa angústia do “não-fazer” raramente é um problema comportamental. Talvez não seja o seu TDAH ou a sua falta de disciplina. Esse “não-fazer” quase sempre pode ser um “fazer outra coisa” que te protege de um risco percebido. Ora, se eu não começo, então eu não fracasso. Se eu atraso, então eu posso justificar o resultado com o tempo curto. Se eu espero o momento ideal, então mantenho intacta a fantasia de que, quando eu finalmente começar, será o mais perfeito possível. Tudo isso são processos inconscientes que barram a sua ação de fato. É o que chamamos de ganhos secundários: são benefícios escondidos que tornam a não-ação valiosa para o psiquismo. Esses benefícios cumprem a função de preservar a autoestima, evitar a vergonha e manter a identidade atual sem ameaças.
E é nesse cenário que surge um mecanismo de defesa chamado racionalização. Ela constrói narrativas plausíveis que aliviam a culpa daquele “não-fazer” e, ao mesmo tempo, legitimam a nossa inércia. A racionalização pode aparecer em frases mentais como “eu só funciono sob pressão”, “A rotina mata o meu talento”, “Sem a ferramenta certa, não vale a pena.”, “Antes, eu preciso estudar tudo sobre o assunto”, “Eu funciono diferente”, “Se eu realmente quisesse eu faria”, “sem tempo”, “sem dinheiro” e por aí vai. Esses pensamentos podem até ter um fundo de verdade, mas são, muitas vezes, usados fora de contexto. O ego prefere ter uma razão bonita do que suportar um afeto difícil.
Para dar um fundamento teórico a tudo isso, esse sentimento de impotência diante do que precisa ser feito é descrito pelo psicólogo Carl Rogers como incongruência. A incongruência é a exata inadequação entre a experiência real e a imagem condicionada de quem você “deveria” ser para merecer valor.
Se a sua experiência real, que pode ser aquilo que você está sentindo, querendo ou suportando for de medo, insegurança ou vergonha, mas a imagem condicionada for a de ser perfeito em tudo que faz, não falhar nunca ou ser bem visto pelo outros, você vai empurrar cada vez mais a si mesmo para um lugar inalcançável — e, por medo de não corresponder a essa imagem condicionada, você decide não agir, consciente ou inconscientemente, racionalizando as coisas.
A incongruência cria um ruído constante entre o corpo e os pensamentos. O organismo — que é como Carl Rogers chama a experiência total de um indivíduo — envia sinais legítimos de ansiedade para o nosso corpo antes de nos expormos a alguma situação, por exemplo; em outras situações, ele pode enviar um sinal de cansaço real ou, em outros casos, uma vontade real para começar alguma coisa dando um pequeno passo de cada vez. Só que, dada a incongruência entre a experiência real desses sinais legítimos e o pensamento, a imagem condicionado que criamos vai chamar todos esses sinais de fraqueza. A ansiedade antes da exposição vai ser interpretada como covardia; o cansaço como preguiça; e a vontade de começar pequeno como falta de ambição.
Cada passo, então, vira um teste de valor pessoal, e viver em teste permanente é viver constantemente em alerta: você posterga as coisas até se sentir realmente “apto” para fazer aquilo, mas a aptidão que você exige nunca chega — justamente porque é idealizada.
Então, se o seu plano é racionalmente perfeito, mas não sai do papel, está faltando uma peça; duas, aliás: o corpo e a emoção. A mente pensa, mas é o corpo que decide. É no corpo que a decisão ganha tração. É no corpo que acontecem os batimentos, a respiração, a tensão, o calor, o frio na barriga. Quando você ignora esse nível e tenta “se convencer” apenas com lógica, o ego, então, vai reagir com mais racionalização. Já quando você inclui o próprio sentir, você cria um circuito completo que parte da percepção, passa pela nomeação dos sentimentos, que ocasiona a regulação das emoções pelo corpo e, finalmente, culmina na ação. Como escreve Carl Rogers:
“A pessoa descobre cada vez mais que seu próprio organismo é digno de confiança, que constitui um instrumento adequado para descobrir o comportamento mais satisfatório em cada situação imediata […] na medida em que esta pessoa está aberta a toda a sua experiência, ela tem acesso a todos os dados disponíveis na situação.”
Carl Rogers, Torna-se Pessoa.
O problema é que hoje em dia nós aprendemos a ver as emoções e as sensações — como a ansiedade, o tédio, a tristeza, a vergonha ou o cansaço — como defeitos de caráter e não como dados disponíveis para as nossas situações. De que serve a tal “mente blindada” que tanto vendem por aí, se você está ignorando os sinais do seu corpo, racionalizando e se fechando para cada sentimento e emoção que venha a sentir? Uma pessoa assim tem a cabeça performática, que produz narrativas impecáveis, enquanto o corpo vive no caos, pois a pessoa não sabe o que está se passando com ela e se afasta cada vez mais do que a moveria de verdade. Se não soubermos nomear nossas emoções e sensações, a estrada da nossa motivação vai terminar no planejamento e não vai sair da idealização.
Se soubermos nomear nossas emoções com mais precisão, mais informações teremos ao nosso dispor para saber por que a ação está paralisada. A maioria de nós usa rótulos amplos que não orientam a ação, como “ansiedade” e “preguiça”. Mas se tudo for ansiedade ou preguiça, nada também será ansiedade e preguiça. Se, em vez de ansiedade, que é muito amplo, você detectar uma apreensão, que é mais local e controlado, isso significa que você deve parar e respirar fundo por uns 30 a 90 segundos antes de iniciar o que está te deixando apreensivo. Se for uma agitação sem um foco preciso, isso requer que você se movimente e solte seus músculos por uns 30 segundos antes de sentar e começar a sua tarefa. Nomeando corretamente o que você está sentindo, a razão vai saber o que precisa ser feito para iniciar a ação correta.
A racionalização faz o oposto disso: quanto mais coerente a história para adiar ou legitimar algo que está sendo evitado, mais distante você fica do que sente; só que não podemos permanecer muito longe daquilo que sentimos.
E para ilustrar isso, vamos usar como exemplo o maior racionalizador da literatura mundial: Raskólnikov, personagem do romance Crime e Castigo, de Dostoiévski.
Raskólnikov é um ex-estudante pobre de São Petersburgo que elabora uma teoria para apaziguar os seus sentimentos de miséria, medo e humilhação durante a vida: a teoria de que existem certos “homens extraordinários” que teriam o direito de transgredir a lei em nome de um bem maior. Vale a pena a gente ler na íntegra a sua ideia. Olha só o que ele fala:
“É só na minha ideia central que eu acredito. Ela consiste precisamente em que os indivíduos, por lei da natureza, dividem-se geralmente em duas categorias: uma inferior (a dos ordinários), isto é, por assim dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes; e propriamente os indivíduos, ou seja, os dotados de dom ou talento para dizer em seu meio a palavra nova. Aqui as subdivisões, naturalmente, são infinitas, mas os traços que distinguem ambas as Categorias são bastante nítidos: em linhas gerais, formam a primeira categoria, ou seja, o material, as pessoas conservadoras por natureza, corretas, que vivem na obediência e gostam de ser obedientes. A meu ver, elas são obrigadas a ser obedientes porque esse é o seu destino, e nisso não há decididamente nada de humilhante para elas. Formam a segunda categoria todos os que Infringem a lei, os destruidores ou inclinados a isso, a julgar por suas capacidades. Os crimes desses indivíduos, naturalmente, são relativos e muito diversos; em sua maioria eles exigem, em declarações bastante variadas, a destruição do presente em nome de algo melhor. Mas se um deles, para realizar sua ideia, precisar passar por cima ainda que seja de um cadáver, de sangue, a meu ver ele pode se permitir, no seu interior, na sua consciência passar por cima do sangue — todavia, conforme a ideia e suas dimensões — observe isso.”
Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo.
Então, para “testar” a ideia e aliviar os seus sentimentos de miséria, ele assassina uma velha usurária (e, acidentalmente, sua meia-irmã), que são pessoas das quais ele não considerava importantes para os outros ou para a sociedade. Note, aqui, todo o desenho psíquico de Raskolnikov: ele eleva o argumento a uma altura onde a emoção não consegue alcançar. A velha usurária deixa de ser uma pessoa e vira um símbolo; o ato deixa de ser um crime e vira um “experimento”. É assim que a racionalização opera: ela desumaniza o objeto e anestesia o sujeito para legitimar alguma insatisfação.
Depois do crime, a razão que Raskolnikov convenceu começa a desabar. A lógica já não dá mais conta do real: ele tem febre, delírios e crises de pânico, vive entre o orgulho e a culpa, e passa a oscilar entre confissão e a fuga.
A racionalização de Raskólnikov teve os seus ganhos secundários no início. Ao se autoproclamar como “extraordinário”, ele protege a autoestima ferida pela miséria e pelo fracasso estudantil. Ao transformar a vítima numa “parasita social”, ele se autoriza a agir sem compaixão. Ao chamar o assassinato de “teste filosófico”, ele se distancia da própria violência. Tudo isso para não entrar em contato com os seus sentimentos de insignificância e impotência perante o mundo. Mas depois de algum tempo, as emoções não podem mais ser reprimidas e elas retornam de maneira avassaladora.
Então, no meio do seu colapso, surge Sônia, uma jovem prostituta, humilde e compassiva, que se torna o contraponto moral e afetivo de Raskólnikov. É ela que o encoraja a admitir o seu crime e a aceitar a responsabilidade pelos seus atos. E após longas resistências, Raskolnikov confessa o seu crime e é condenado a trabalhos forçados na Sibéria. Sônia representa a possibilidade de redenção pela verdade, pelo amor e pelo sofrimento assumido.
Raskólnikov não encontra a paz quando “se explica melhor”, mas só muda quando cessa a guerra contra a emoção. Depois do crime, a lógica não dá mais conta do real. E o gesto simbólico que une corpo e pensamento, coração e cabeça, é quando Raskólnikov, por sugestão de Sônia, se ajoelha numa uma praça e beija o chão. É aqui que Raskolnikov sai do pedestal de sua racionalização e visita o mundo ordinário, que ele tanto desprezava, mas que também é o mundo da ação e do contato com a comunidade e com o corpo.
Na psicologia analítica, pode-se dizer que Raskolnikov é o puro Logos, o componente universal da razão e da palavra. Sônia é o Eros, o componente universal do vínculo, da compaixão e do cuidado. Um Logos sem Eros se torna frio e racionalizante. Mas um Eros sem Logos se torna sentimental e histérico. Ambos se complementam. Sabedoria sem amor corre o risco enorme de se tornar tirania. Em outras palavras, precisamos desse componente erótico nas nossas vidas, que reintroduz a sensibilidade e integra esses dois opostos. No fim, o caminho de volta passa pelo corpo, pela realidade do outro e por um ato que você pode executar no aqui e agora.
A racionalização costuma “usar palavras bonitas” justamente para você não sentir o aperto de começar. Por isso, algo que pode ser feito, é trazer o corpo para a equação: antes de iniciar uma tarefa, por exemplo, feche os olhos por 20 segundos e faça um escaneamento rápido do seu corpo (rosto, mandíbula, peito, abdômen, mãos), e se pergunte: “Onde estou sentindo uma resistência agora?” Se a tensão está no peito, provavelmente há apreensão; se está no maxilar, há defesa; se está no estômago, medo de exposição; se está no ombro, peso de obrigação. Em seguida, aplique um microajuste físico específico (relaxar mandíbula, alongar peitoral, expirar mais longo) e só então execute a tarefa que está te trazendo resistência, em pequenos passos, sem pensar muito no resultado.
A emoção não é inimiga da disciplina. O problema não é “sentir demais”; é sentir sem uma devida condução. As emoções têm duas mensagens úteis. A raiva pode te dizer que talvez “você estaja ultrapassando certos limites” — se canalizada, a raiva vira assertividade para cortar tarefas que não são importantes. A frustração pode te informar que o desafio está acima do seu nível atual — ajustando, então, a dificuldade, você volta ao fluxo. A vergonha pode te alertar para um medo de exclusão — se ela for reconhecida, você pode calibrar a sua exposição. Se não entrarmos em contato e enfrentarmos essas emoções, tudo o que sobra é a racionalização.
Mas então vem a pergunta que você deve estar se fazendo: “como vou conseguir nomear corretamente minhas emoções?”. Você pode manter um caderno de emoções ou de pensamentos. Nele você vai escrever, com as suas palavras, a definição de cada emoção que você conhece e ir atualizando com o tempo. Você pode descrever as emoções fazendo analogias com coisas e situações, contando uma história ou simplesmente definindo-as.
Para expandir ainda mais o seu vocabulário, a literatura vai ser muito importante. Os livros de literatura são uma fonte riquíssima para você encontrar formas de conhecer melhor cada emoção. Qualquer romance da Jane Austen, Dostoiévski, Machado de Assis, entre outros, vão te oferecer diversas descrições diferentes, e você pode copiá-las no seu caderno de emoções.
No final, a razão ordena os sentimentos, e a emoção equilibrada e devidamente nomeada conduz a ação em sua medida certa. Se você está paralisado pelos seus pensamentos, talvez seja porque esteja faltando uma Sônia em sua vida. Mas ela não precisa ser encontrada fora. Sônia é também Sofia, a sabedoria divina e intuitiva que vive dentro de nós. É a Dulcineia de Dom Quixote, a Beatriz de Dante, a Ariadne de Teseu e a Penélope de Ulisses. Em outras palavras, é aquela pulsão de vida que nos dá ânimo e nos conduz para a prática. Ela está dentro de você, basta dar atenção.
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