Por que você não pode confiar em pessoas boas — A Metamorfose de Franz Kafka
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“É praticamente impossível dizer a uma pessoa de trinta anos que tem um emprego produtivo, é casada e está com um segundo filho a caminho que ela está numa forma de infância prolongada.”
James Hollis, A Passagem do Meio.
Sim, você pode estranhar e muito essa frase. Como pode, você pensaria, uma pessoa casada, com filhos e bem sucedida no trabalho não passar de uma criança mais alta? Com essa citação, o analista Junguiano James Hollis está querendo nos mostrar a força que os papéis sociais exercem nas nossas vidas. Quando não sabemos aquilo que queremos, somos influenciados a querer aquilo que os outros querem para nós. Dessa forma, nos comportamos como crianças, esperando que os outros determinem o modo como devemos nos comportar.
Durante a infância, nossa identidade é centrada no relacionamento com os nossas pais ou com qualquer figura paterna e materna. No entanto, essa identidade pode ser prolongada durante a vida adulta. As projeções de segurança e necessidade de afeto advindas dos pais podem ser retiradas e projetadas em vários papeis sociais, como do trabalho, do casamento e da faculdade, buscando aquela segurança e necessidade de afeto que buscávamos dos nossos pais. No entanto, essas projeções são compreensíveis, como James Hollis explica:
“É uma ilusão compreensível achar que se nos comportarmos como nossos pais, ou nos rebelarmos contra seu exemplo, seremos desse modo um adulto. Se conseguirmos um emprego, nos casarmos, formos pais e pagarmos nossos impostos, a confirmação da idade adulta certamente se seguirá. Com efeito, o que ocorreu foi que a dependência da infância se tornou parcialmente submersa e foi projetada sobre os papéis da idade adulta.”
James Hollis, A Passagem do Meio.
Contudo, os papéis sociais são importantes. Algumas pessoas realmente encontram uma vida significativa no trabalho ou no casamento, e isso não deixa de ser um ciclo normal e saudável da vida. O problema é viver uma vida que não é verdadeiramente sua, sem significado ou propósito.
Um exemplo disso está no conto de Tolstói, chamado A Morte de Ivan Ilitch. Ao longo da sua vida, Ivan Ilitch casou-se por mera convenção, teve filhos por mera imposição e ocupou um cargo elevado no governo só para ter o gosto de estar em uma posição privilegiada da dos demais. Somente quando Ivan Ilitch contraiu uma doença mortal é que se deu conta de que viveu uma vida de mentiras e projeções, o que o fez confrontar-se com sua finitude.
E uma hora, todas essas projeções que sustentam nossas ilusões podem cair, e seremos confrontados com aquelas perguntas que estávamos tentando o tempo todo desviar: “Quem sou eu? O que minha vida está pedindo que eu realize? Como servir ao mesmo tempo, ao relacionamento e a minha individuação?”
Nesse sentido, temos muito o que aprender com os artistas, com os santos e com os poetas. Eles desafiaram o status quo das sociedades e tiveram a coragem de viveram vidas verdadeiramente significativas, como escreveu o psicólogo existencial Rollo May:
“são os artistas que apresentam direta e imediatamente as novas formas e símbolos, e os poetas da religião aos quais chamamos santos. Vivem o que imaginam […] [Eles] dão-nos um ‘aviso distante e antecipado’ do que está acontecendo à nossa cultura.”
Rollo May, A Coragem de Criar.
O estado de alienação, então, pode significar a perda da identidade ocasionada por algum sofrimento ou adversidade, onde tal identidade era sustentada justamente pelas projeções fornecidas pelas fórmulas sociais que nos prometiam felicidade e autorrealização. Quando percebemos que estamos alienados do nosso verdadeiro eu, nos sentimos um estrangeiro no mundo, um inseto no meio de pessoas, e foi assim que, um dia, Gregor Samsa, o personagem de Metamorfose, do escritor Franz Kafka se sentiu:
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
Franz Kafka, Metamorfose.
A Metamorfose de Kafka, publicada em 1915, é a história de um homem que, por algum meio mágico desconhecido, transformou-se da noite para o dia em um inseto gigante, cuja visão causa repulsa em todos ao seu redor. O livro nos mostra como ele lida com a mudança, como sua família o trata e também revela alguns dos aspectos mais sombrios dos seres humanos quando estes são dominados pelo desespero.
Franz Kafka realmente escreveu um livro aberto a diversas interpretações, mas que nos faz aprender muito sobre as dinâmicas e os papéis sociais, e acima de tudo sobre o desespero humano.
Pode-se dizer que Gregor Samsa era uma pessoa extremamente identificada com a sua persona, isto é, a máscara social que cada pessoa se apresenta para o mundo. É muito fácil se perder na persona quando atingimos certo status social, ou somos respeitados pelo nosso cargo ou pela nossa família.
Passamos a negligenciar outros campos da nossa vida em detrimento da nossa aprovação social. E após a transformação em um inseto, a mente de Gregor é consumida pela ansiedade sobre sua identidade. Era ele quem sustentava toda a sua família, seus pais e sua irmã, trabalhando como um caixeiro-viajante, e sua família via nele alguém útil e colaborativo.
Só que depois de ter se transformado em um inseto gigante, ele não pôde mais sustentar sua família, não pôde trabalhar e nem parecia mais humano. Essa transformação em um inseto gigante é a forma genial que Kafka encontrou de demonstrar a ambiguidade dos papeis sociais que acreditamos que devemos desempenhar.
Por um lado, esse papel social funcionou muito bem para Gregor enquanto ele podia cumpri-lo. Ele se sentia alegre e realizado por ser o provedor, e sua família o respeitava profundamente por isso, e não pelo que ele era. Mas, quando ele não conseguiu mais desempenhar esse papel, tanto ele quanto sua família se perdem em um profundo desespero que assumem diversas características, que serão comentadas mais para frente.
Desde pequenos, fomos ensinados que o valor de um homem está no seu trabalho, qualquer tipo de trabalho que sustentasse aqueles pelos quais se é responsável. Isso significa deixar a satisfação pessoal de lado em benefício da fidelidade a essa enorme responsabilidade, ainda que essa satisfação possa também ajudar os outros de alguma forma.
E isso também refletiu profundamente na vida pessoal de Franz Kakfa. Desde pequeno foi pressionado pelo pai, que não aprovava seus dotes artísticos, a seguir a vida como advogado. Para Kafka, seu trabalho era um mal necessário frente às demandas da sociedade que lhe exigia um posicionamento perante as expectativas familiares. Ele sentia um medo profundo de seu pai, como ele um dia o tentou escrever:
“Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justo como pai você era forte demais para mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais.”
Franz Kafka, Carta ao Pai.
Kafka nos mostra como os papéis sociais são tão fortes nas nossas vidas que, na estória do livro A Metamorfose, o chefe de Gregor vai até a casa dele para saber o motivo do seu atraso no trabalho. Ele questiona o comprometimento de Gregor e menciona que sua posição na empresa pode estar em risco. Gregor, ainda preso em seu quarto, por não conseguir lidar com a sua nova forma de inseto, tenta desesperadamente responder e justificar seu atraso. Contudo, sua transformação impede que ele fale de maneira compreensível.
Quando Gregor finalmente consegue abrir a porta, arrastando seu novo corpo de inseto, o gerente tem uma reação de horror total. Ele recua imediatamente, expressando nojo e medo, e foge da casa sem oferecer qualquer ajuda ou compaixão. Toda essa situação faz referência a uma condição existencial alienante que diz respeito a nossa utilidade na sociedade: Gregor não fica desesperado por ter se transformado em um inseto gigante, mas fica profundamente desesperado em perder o emprego e decepcionar seu chefe e sua família.
Não é à toa que os dramas dos contos de Kafka receberam um termo próprio: Kafkaesco. Kafkaesco evoca um senso de absurdo, alienação e opressão, muitas vezes associado à burocracia, à perda de controle e à luta fútil contra forças intransponíveis.
Eu havia dito que a família de Gregor Samsa, incluindo o próprio Gregor, sucumbem ao desespero quando ele se transforma num inseto. Esse outro ponto é interessante, o desespero.
O filósofo existencialista Søren Kierkegaard escreveu que o desespero é uma relação do eu consigo mesmo. É a culpa daquele que não sabe aceitar a si mesmo em sua profundidade. Para Kierkegaard, a morte não é o pior evento da vida, mas o desespero, pois isso significa estar morto antes de morrer. Ele escreve:
“O desespero é a doença até a morte; o desespero é um estado em que uma pessoa não pode morrer, mas tampouco pode viver.”
Søren Kierkegaard, O Desespero Humano.
O desespero não é simplesmente um sentimento de tristeza ou depressão; é um problema espiritual profundo que reflete a alienação do indivíduo em relação a si mesmo, ao mundo e, em última instância, a Deus. Segundo Kierkegaard, há diferentes formas de desespero. Existe o desespero inconsciente: quando a pessoa está em desespero, mas não tem consciência disso.
Ela vive na ilusão de que está satisfeita com sua vida. É quando Gregor, por exemplo, vivia a vida a partir da sua projeção no papel social de provedor da família, que escondia dele os verdadeiros sentimentos que eles tinham com relação a ele, já que Gregor era útil enquanto conseguia prover. O outro tipo de desespero é o consciente: quando a pessoa reconhece seu desespero, mas não sabe como superá-lo.
Aqui, pode haver uma luta para encontrar significado. É quando Gregor, após ter se transformado num inseto, busca o reconhecimento de sua identidade através da sua família, mas seus familiares passam a enxerga-lo cada vez mais como um fardo, um peso, já que ele não pode mais sustenta-los. Existe também o desespero por querer ser ou não ser o próprio eu: isso ocorre quando o indivíduo rejeita sua verdadeira natureza — que para Kierkegaard, é a relação do sujeito com Deus — ou tenta definir-se de forma absoluta sem considerar essa relação.
Essa forma de desespero é quando Gregor não encontra mais um significado em sua existência, pois a projeção que sustentava sua identidade foi destruída, e sua família se afastava cada mais de sua condição, sem ampará-lo ou se preocuparem com ele de verdade.
À medida que Gregor afunda mais e mais no desespero, e à medida que a atitude de sua família não muda, sua perspectiva começa a se transformar. No início, Gregor se força a acreditar que seus familiares estão apenas superando o choque de sua transformação e que logo o acolheriam de volta com os braços abertos. O que Gregor busca é o que todos nós desejamos de nossos familiares: que eles nos notem e nos respeitem como iguais.
Mas, eventualmente, ele é desiludido dessa esperança e reage com uma rebeldia compreensível: ele escapa do quarto e rasteja até a cozinha, confrontando seus pais com o pedido deles para que ele permanecesse no quarto para não assustar ninguém. Só que a família de Gregor também está desesperada; mas aqui o desespero assume uma outra cara. É um desespero que se transforma em raiva no restante da estória. Kierkegaard também fala do desespero demoníaco, um tipo de pessoa tão consumida pelo próprio desespero que acaba odiando o mundo inteiro e tudo que há nele por causa de seu sofrimento. É uma espécie de eu passivo que espera receber tudo sem oferecer nada em troca. Kierkegaard escreve:
“[…] há nesse eu passivo, que sofre e quer desesperadamente ser ele mesmo, tanto mais o desespero se condensa e tende para o demoníaco, do mal eis a frequente origem. Um desesperado, que quer ser ele mesmo, suporta de má vontade qualquer estado penoso ou inseparável do seu eu concreto. Então lança-se com toda a sua paixão nesse tormento, que acaba de se tornar num delírio demoníaco.”
Søren Kierkegaard, O Desespero Humano.
Esse desespero demoníaco, que é transformado pela família em ódio por causa do medo de continuar naquele estado em que Gregor os deixou, culmina na cena sufocante do próprio pai atacando uma maça nas costas de Gregor, quando ele vai para a cozinha. Depois de um tempo, o ferimento causado pela maça logo infecciona e Gregor, depois várias reprimendas e negligências, perde a vontade de viver e morre sozinho, agonizando no seu quarto. Kafka faz aqui um trabalho brilhante ao mostrar um aspecto verdadeiramente sombrio da natureza humana: frequentemente, as coisas que tememos e atacamos não fizeram nada de errado.
Geralmente tememos coisas por serem desconhecidas ou por nos ameaçarem de alguma forma, intencionalmente ou não. O pai de Gregor passou a temer Gregor porque, se alguém visse o inseto, poderia considerar a família impura – algo que não era culpa do próprio Gregor. Ainda assim, o medo se transformou em raiva e ódio na mente do pai, e o mesmo pode acontecer conosco, se não soubermos a que projeções estamos nos agarrando, a que vida estamos tentando levar.
Quando enfrentamos um sofrimento que nos obriga a abandonar nossas projeções, podemos reagir com revolta contra o mundo e ressentimento em relação aos outros. No entanto, não percebemos que, no fundo, essa revolta é direcionada a nós mesmos, por termos sido arrancados do que considerávamos nosso paraíso. A resignação de Gregor em desistir de sua vida sem buscar nenhum tipo de amparo divino ou transcendental é o que Kierkegaard chama de desespero sem gritar por socorro.
Nesse sentido, o resignado quer encontrar uma possibilidade de vivenciar o seu eu eterno, mas, cego pelo seu ódio em tentar ser notado e compreendido, e nada parece funcionar, é o momento em que a pessoa não consegue fazer mais nada e se afunda em sua tristeza. Isso tudo reflete e muito e nossa sociedade atual.
Com a falta de ritos de passagem que nos retiram dos complexos paterno e materno, com a falta de orientação espiritual e a impossibilidade de vislumbrar uma vida para além das projeções dúbias dos papéis sociais, o ser humano se encontra desamparado e desiludido de tudo.
Hoje, não temos mais velhos sábios que nos possam orientar na vida; a religião está perdendo cada vez mais relevância, e por consequência, deixa o nosso sofrimento existencial cada vez mais sem sentido e cada vez menos sendo visto como uma possibilidade de superação e reconstrução do eu verdadeiro; com a falta de pontos de referência, estamos cada vez mais precisando encontrar a cura para as nossas angústias por conta própria. Muitos estão como Gregor Samsa, sozinhos, alienados de suas vidas e desesperados em encontrar a si mesmos.
E depois de tudo isso, como se tudo isso não bastasse, quando a empregada da casa descobre o corpo de Gregor na cama, a reação da família é, em grande parte, de alívio. Sim, de alívio. Eles interpretam sua morte como uma libertação do fardo que ele representava depois da transformação. A família não demonstra pesar significativo por Gregor como pessoa. Sua morte é tratada como uma solução prática para os problemas que enfrentavam.
Depois disso, os Samsa começam a pensar em reconstruir suas vidas. Decidem mudar-se para um apartamento menor e mais econômico, já que não precisam mais acomodar Gregor. O último parágrafo do livro descreve a Grete, irmã de Gregor, esticando seu corpo, como se florescesse. Isso sugere que a família vê nela uma nova esperança e uma oportunidade para ela ser a nova provedora da família no futuro, enquanto Gregor é completamente deixado para trás, como uma memória indesejada.
A morte de Gregor é o desfecho inevitável de seu isolamento, simbolizando a indiferença da sociedade e da família em relação àqueles que não cumprem suas funções utilitárias e seus papéis sociais.
A Metamorfose é um livro difícil de ler, difícil no sentido de ser indigesto e desconfortável. No entanto, é um livro extremamente importante para nos fazer refletir e pensar que, em algum momento, precisaremos viver aquelas perguntas que estávamos deixando para depois. E isso não é nem um pouco fácil, como escreve James Hollis:
“É extremamente difícil saber o que queremos. Como separar a verdade interior da cacofonia dos complexos pessoais e das diretrizes culturais? É esse tipo de questionamento tanto no mundo exterior quanto no interior, que nos tornam [pessoas].”
James Hollis, Sob a Sombra de Saturno.
A experiência consciente da alienação do eu pode ser uma excelente oportunidade para reencontrar o eixo que nos conecta àquilo que em nós é mais verdadeiro e mais divino; faz com que separemos quem realmente somos da soma das experiências que interiorizamos. Quando encontramos esse eixo, nossas relações com os outros tornam-se menos dependentes, exigindo menos delas e mais de nós mesmos.
Mas ao exigir mais de nós mesmos, evitamos que os outros fiquem desapontados por não fornecerem o que jamais poderiam fornecer. Se conseguirmos sustentar nossa coragem, nosso desespero pode ser um caminho que trará de volta nossa vida depois de sermos separados dela.
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