A literatura é inútil — Você ainda perde seu tempo com isso?

Introdução

A literatura é inútil. Sim, o título do vídeo não é clickbait. A literatura é inútil. Ela é inútil para o uma sociedade que visa somente o desempenho das pessoas, onde há uma pressão constante em ser produtivo, eficiente e pensar positivamente, em todas as situações.

A literatura é uma perda de tempo para o indivíduo que busca apenas melhorar sua performance e que se sente coagido, interna ou externamente, a superar barreiras, a vencer o tédio, a obliterar os pensamentos negativos e ser livre para buscar a autorrealização a qualquer custo.

A literatura não serve para quem vive constantemente se atualizando, para quem sempre busca novidades, com medo de ficar de fora dos principais assuntos do momento.

Sociedade do Desempenho

Hoje, estamos cada vez mais fazendo por fazer, com medo de ficarmos parado e deixar que o tédio nos acometa. O descanso é visto como uma afronta e a reflexão é encarada como ineficiência. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han cunhou o termo sociedade do desempenho para descrever o modelo de sociedade contemporânea onde os indivíduos, ao contrário de outras épocas, onde eram explorados, agora se autoexploram. São senhores e escravos de si mesmos, ávidos a buscarem o sucesso a qualquer custo, mesmo não sabendo o que exatamente isso signifique.

É claro que, com o mundo cada vez mais acelerado, surgindo uma informação atrás da outra, sem tempo para processar o que já se passou, está se tornando cada vez mais desafiador sentar por 30 ou 40 minutos e ler um livro de literatura. E não é só isso. Já que a gratificação da leitura não é imediata — como a imensa descarga de satisfação instantânea que você recebe ao assistir um reels no Instagram, por exemplo —, a motivação de ler um livro é cada vez mais reduzida à medida que ela compete com todos os outros estímulos causados pelas redes sociais e pela avidez à novidade.

Nessa corrida pela produtividade, pelo desempenho e pelo medo de ficar de fora, muitas pessoas tendem a achar que ler literatura é perda de tempo. Qual seria a utilidade, eles pensariam, em ler 400, 500, 600 páginas de um livro, ou tentar ler um artigo científico, se o ChatGPT pode apresentar um resumo detalhado do assunto?  Mas, se a gente compreender o poder que a narrativa e o imaginário têm nas nossas vidas, vamos nos dar conta de que nossa percepção sobre a vida muda à medida que nosso repertório literário e imaginativo aumenta.

Um dos psicólogos da área comportamental e da neurociência mais influentes atualmente, o Eslen Delanogare, do qual eu o admiro por ser um exemplo de disciplina e resiliência, percebeu recentemente o poder que a vida estruturada como uma narrativa pode causar. Em uma postagem que fez nas suas redes sociais, ele disse que, em boa parte de sua vida, viu a literatura como perda de tempo, sendo possuído pelo fantasma do desempenho e da produtividade em tempo integral. À medida que ele foi lendo obras literárias, foi criando um arcabouço imaginativo subjacente que, a longo prazo, impactou sua visão de mundo.

O poder da literatura

O ponto é que: a literatura não tem efeito imediato, mas à medida que vamos tendo repertório literário, seu efeito é duradouro, tanto na nossa intenção quanto no nosso pensamento.

Isso porque, a literatura não se preocupa com o imediato, com o agora, mas com o que acontece sempre, em todas as épocas, independentemente das circunstâncias individuais. A literatura permite que você se dê conta de que um problema que você tem aqui, sendo um brasileiro médio do século XXI, apesar das peculiaridades, é semelhante, em sua forma, ao problema de um funcionário público da Rússia no século XIX, que é semelhante, em sua forma, a um pobre cidadão romano do Século I.

Muitas das aflições e angústias existenciais que sentimos, já foram poeticamente descritas nas obras literárias, o que pode nos confortar, de certo modo, ao perceber que muitos dos nossos estados emocionais, que achávamos serem incompreensíveis, na verdade, podem ser compartilhados e atribuídos de significado.

São Jorge enfrentando o dragão.
Saint George and the Dragon (1470), de Paolo Uccello

Um dos maiores críticos literários do século XX chamado Northrop Frye, em seu livro, A Imaginação Educada, escreve que:

“Nossas impressões sobre a vida humana vão acumulando-se uma a uma e, para a maioria de nós, permanecem vagas e desorganizadas. Na literatura, porém, muitas dessas impressões de repente ganham ordem e foco.”

Northrop Frye, A Imaginação Educada.

A abstração

Uma das funções da literatura é pegar ideias abstratas e coloca-las em imagens que ilustram situações concretas. Ela condensa emoções, dramas e comportamentos humanos, que são universais, em personagens, que passam por situações que conversam com os nossos próprios dramas particulares.

Dessa forma, ao lermos Macbeth, de Shakespeare, por exemplo, estaremos lendo sobre o que se passa na cabeça de um homem que decide conquistar um reino inteiro às custas da sua própria dignidade e da sua alma. Mas uma parte desse drama é universalizado, porque mostra o que acontece quando alguém decide colocar a busca pelo poder acima de tudo.

Uma parte da avidez por poder de Macbeth é uma parte da nossa própria avidez por poder. Algo do ciúme de Bentinho, personagem do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, é uma parte universalidade do nosso próprio ciúme. Uma parte do ressentimento e da frustação humana de Aquiles, no poema Ilíada, de Homero, é uma parte universalizada do nosso próprio ressentimento.

É como se a literatura permitisse que soframos simbolicamente antes de sofrer na realidade, pois as personagens encenam dramas existenciais a partir da abstração de um estado emocional. Dessa forma, ela estampa na nossa cara vários elementos da vida humana que não seriam tão bem reconhecidos no cotidiano, pois eles se encontram misturados com várias outras coisas presentes na realidade.

Ao lermos Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, por exemplo, vamos conseguir abstrair o ressentimento da personagem e analisa-lo separadamente, podendo, assim, compreender o ressentimento de uma forma mais robusta. Ao lermos o Morro dos Ventos Uivantes, conseguimos abstrair a força que a paixão exerce sobre nós; o mesmo acontece com Os Sofrimentos do Jovem Werther, ou com a história medieval de Tristão e Isolda. A literatura separa um aspecto do mundo e confere dignidade e elegância ao observá-lo.

Tristão e Isolda com a poção mágica
Tristão e Isolda com a poção mágica (1916), por John William Waterhouse.

Um estudo publicado em 2008 por dois pesquisadores da Universidade Iorque e da Universidade de Toronto explicou que a literatura permite criar modelos que inferem os estados mentais das pessoas, aos quais não temos o acesso direto, o que nos proporciona insights sobre o comportamento humano e sobre como esse comportamento pode impactar nossas vidas.

A personagem das histórias literárias é uma simulação que nos permite compreender o que outra pessoa pode estar desejando, pensando e sentindo. Só em Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, por exemplo, temos um exemplo de cinco personalidades e modos de pensar diferentes através das irmãs Bennet, que são personagens do romance. Os três irmãos Karamázov, por exemplo, do romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov, não dão modos completamente distintos de compreender nossos próprios estados emocionais diante de uma situação parecida com aquela vivenciada pelas personagens.

A construção das possibilidades

Outra função da literatura é a de construir possibilidades, justamente por meio da abstração, como explica Northop Frye:

“[a imaginação] é o poder de construir modelos possíveis da experiência humana. No mundo da imaginação vale tudo que seja imaginável…”

Northrop Frye, A Imaginação Educada.

E isso também foi demostrado pela pesquisa que eu havia mencionado. A literatura, além de ser um meio pelo qual damos sentido à nossa história e à nossa vida atual, nos permite fazer previsões e tomar decisões sobre um mundo futuro. Pelo fato do caráter abstrativo e generalizante da literatura, a obra pode retratar cenários extremos que demonstram as consequências das nossas ações no presente.

São os casos, por exemplo, das inúmeras distopias escritas durante o século XX, que retratam um futuro onde a sociedade é controlada por uma entidade totalitária ou pelos próprios vícios descontrolados dos cidadãos. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, retrata uma sociedade onde a busca pelo prazer foi levada às últimas consequências. 1984, de George Orwell, retrata uma sociedade onde o medo é a principal arma de controle usada pelo governo autoritário. Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, retrata uma sociedade onde o condicionamento comportamental foi usado como lavagem cerebral para controlar a reação da população frente aos estímulos que lhe são fornecidos.

Assim como nos contos de fadas, onde cada personagem é sempre retratado como inteiramente bom ou inteiramente mal, o que permite a criança compreender mais facilmente essa dualidade sem as nuances da vida real, a literatura isola um fator ou alguns fatores da natureza e dos nossos estados mentais e permite simular um acontecimento a partir dessas combinações.

A função das distopias

E por falar em distopias, um ponto comum em todas elas, ou pelos menos em sua maioria, é a restrição do vocabulário que o governo totalitário impõe para controlar o pensamento das pessoas e impedi-las de expressarem sua indignação com o mundo.

A linguagem e as estruturas cognitivas formam o pano de fundo para o modo como entendemos nossos próprios estados emocionais. Dessa forma, se eu tiver um vocabulário rico para descrever meus sentimentos, posso ter uma compreensão mais profunda do meu estado emocional e, com essa compreensão, o controle das minhas emoções. Se eu tivesse somente duas palavras para expressar algo bom ou ruim, ou seja, as próprias palavras “bom” e “ruim”, eu perderia muita informação no meio do caminho.

Em 1984, por exemplo, o governo totalitário implementa uma técnica de lavagem cerebral na população chamada de novilíngua, que consiste em retirar ou proibir o máximo possível de palavras do vocabulário para impedir que o povo expresse sua indignação perante o governo. Em Farenheit 451, de Ray Bradbury, os bombeiros, a mando do governo, ao invés de apagarem os incêndios e salvar vidas, são responsáveis por queimar livros.

A população, então, vive em um estado de alienação das próprias emoções e do próprio pensamento, porque não conseguem abstrair ideias, expressar as emoções e ter um senso de alteridade, isto é, a capacidade de perceber e intuir uma separação entre o eu e o outro. E é a literatura que permite justamente aumentarmos nosso vocabulário e compreender nossos estados emocionais.

A literatura promove o incentivo à tolerância

Outro ponto é que, tanto a pesquisa que eu mencionei, quanto o livro de Northrop Frye, explicam que a literatura também é um grande incentivo a tolerância, ela nos dá a capacidade de lutar contra o fanatismo e confrontar nossas próprias crenças quando não temos capacidade para sustenta-las, como escreveu Northrop Frye:

“Na imaginação as nossas próprias crenças são simples possibilidades, e ainda enxergamos as possibilidades das crenças alheias. Fanáticos e preconceituosos raramente tentam tirar algum proveito da arte — estão obcecados demais por suas crenças e ações para enxergá-las como talvez simples possibilidades. O que produz a tolerância é o poder do distanciamento imaginativo, que nos permite tirar as coisas do alcance da ação e da crença.”

Northrop Frye, A Imaginação Educada.

Esse distanciamento da ação que a literatura causa é importante porque não precisamos experimentar todas as coisas e passar por todo tipo de provação na vida para termos um senso de proporção e perspectiva diante delas. Não precisamos conhecer todas as pessoas do mundo para compreender um pouco do comportamento humano.

A tentação de Eva
The temptation of Eve (1910), por Pierre Jean van der Ouderaa.

A literatura nos dá uma visão do todo sem precisarmos passar por certas coisas. Podemos, dessa forma, ter uma visão ampla da guerra ao lermos Guerra e Paz, de Tolstói, por exemplo. Ou ter uma perspectiva da mente de alguém imensamente acometido pela culpa diante de um crime que cometeu ao lermos Crime e Castigo, de Dostoiévski.

A literatura não é um guia para a vida

Mas é claro que a literatura não é uma panaceia, ela não resolve todos os problemas, como o próprio Northrop Frey escreveu:

“[…] por mais útil que seja a literatura para o enriquecimento da imaginação e do vocabulário, seria de um pedantismo atroz utilizar-se dela diretamente como guia para a vida.”

Northrop Frye, A Imaginação Educada.

Nem toda literatura é boa. Muitos livros mais destroem do que edificam as pessoas. Existem perigos em todos os lugares. Mas isso não significa que não podemos ler tais livros. No entanto, se começarmos, pelo menos por meio dos clássicos ou dos romances mais referenciados, já vamos ter formado um imaginário que nos permita classificar, por nós mesmos, o que consideramos ser uma boa literatura.

Afinal, já que a literatura é o que nos permite expandir a consciência, seria controverso se ficarmos dependentes somente de indicações de leituras e listas de livros das outras pessoas. Com o tempo, precisamos ter um repertório para montar nossa própria lista de livros.

Mas para te ajudar, pelo menos nesse começo, eu selecionei uma lista de alguns livros de literatura que são considerados clássicos e outros do meu gosto pessoal, para que então, com o tempo, você mesmo possa estar criando a sua própria lista e seguir na sua caminhada. Essa lista foi criada com base na lista de livros do filósofo americano Mortimer Adler, encontrada no apêndice do seu livro chamado Como Ler Livros. A lista de livros que eu selecionei está na descrição do vídeo e no primeiro comentário fixado.

A falta de hábito da leitura no Brasil

Fora tudo isso que foi comentado até aqui, ainda precisamos acrescentar uma boa parte da população brasileira que simplesmente não lê livros. Um levantamento da Câmara Brasileira do Livro, a CBL, publicou um panorama do consumo de livros no Brasil em 2023.

A pesquisa, feita com 16.000 pessoas de todas as classes socioeconômicas e a partir dos 18 anos, mostrou que 84% das pessoas não compraram um único livro nos últimos 12 meses em que a pesquisa foi feita. Uma das principais alegações que as pessoas fizeram para justificar o porquê de não terem comprado algum livro foi devido ao preço. E sim, alguns livros, de fato, estão muito caros.

Mas será que, hoje, isso realmente impediria o acesso à leitura de qualquer jeito? Uma das coisas mais interessantes em um vídeo que eu fiz sobre o brasileiro não estar lendo livros foi os comentários. Muitos usaram essa desculpa do preço dos livros estarem muito altos, mas como bem escreveu uma pessoa por lá: a desculpa do peidorreiro é a tosse.

Há diversas alternativas aos livros novos: nós podemos comprar livros em sebos, usar bibliotecas, acessar livros gratuitos disponibilizados por diretórios on-line. Toda a obra do Machado de Assis está em domínio público, por exemplo. É só você acessar o site do domínio público e baixar. A própria Amazon oferece um acervo gigante de livros com uma assinatura mensal que custa menos do que um lanche no McDonalds. E não, não estou sendo patrocinado pela Amazon.

Conclusão

A questão é que o conhecimento nunca foi um incentivo para o brasileiro. A categoria do ter é confundida com a do ser, e muitos preferem se endividar, parcelando um novo iPhone, do que pagar 1% do valor dele em um livro novo.

Um outro ponto do levantamento feito pela CBL, foi o fato da falta de tempo das pessoas para ler livros. Mas isso também não seria um impedimento incondicional à leitura. Voltando ao vídeo sobre o brasileiro não estar lendo livros, muitas pessoas comentaram, por exemplo, que gastam mais de 4 horas em ônibus e nem por isso deixam de ler. Eu mesmo perdi a conta de quantos livros já li no ônibus e no metrô.

E o impacto das redes sociais também é mostrado na pesquisa feita pela CBL. Dentre os não-compradores de livros, ou seja, as pessoas que não haviam comprado nenhum livro nos últimos 12 meses anterior à pesquisa, somente 9% alegaram que leem livros no tempo livre, e 44% usam as redes sociais no tempo livre.

Se nós realmente déssemos conta da quantidade de horas que gastamos por dia nas redes sociais, certamente, em alguma medida, sobraria tempo, nem que fosse 15 minutos por dia.

Então, apenas comece. Defina um horário para a leitura, nem que seja, de início, 15 minutos por dia, nem que seja, de início, 1 página por dia.

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