Você não quer um relacionamento, você quer achar sua mãe e seu pai— complexo materno e paterno
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“É realmente assustador perceber quão pouco se é consciente na formação de um relacionamento íntimo, quão poderoso é nosso desejo programado pelo que conhecemos.”
Projeto Éden, James Hollis.
Talvez a tarefa mais difícil da vida seja perceber que, uma vez expulsos do paraíso, jamais podemos voltar para ele. Mas mesmo assim tentamos, muitas vezes, por toda uma vida, encontrar uma maneira de voltar para aquele estado de inconsciência, segurança e conforto que experimentamos na infância, quando não precisávamos tomar decisões, assumir responsabilidades e lidar com a própria vida.
Essa busca pelo paraíso perdido do qual me refiro é a tentativa de voltar à fusão originária com a nossa mãe, quando um outro regulava nosso mundo e nos alimentava, nos acolia e nos protegia. Quando perdemos essa ligação e adquirimos uma consciência separada desse outro, o choque da separação é tão sistêmico, tão traumático, que essa experiência permanece impressa nas nossas vias neurais, e boa parte dela é jogada no inconsciente. Mas o que está no inconsciente não significa que não nos cause uma certa influência, aliás, uma grande influência.
Quando éramos crianças, vivíamos o chamado pensamento mágico, um estado caracterizado pela falta de distinção entre sujeito e objeto. Para o bebê, o mundo e ele mesmo são um só. E na infância, nossos pais eram o nosso mundo, e a relação que tínhamos com eles era uma espécie de afirmação extrapolada sobre o mundo em geral.
Se a criança passou por alguma experiência ou várias experiências de desamparo, ela crescerá com um senso de hipervigilância, buscando no apego excessivo um antídoto contra o medo do mundo, interpretando ambiguidades como risco de abandono e exigindo garantias constantes de amor. Se a criança passou por negligências, ela crescerá se sentindo invisível e sem um senso de importância. Ela passará a calar suas necessidades ou minimizar a própria dor. Se a criança passou por repressões e maus-tratos, ela crescerá com a voz de um agressor interno, que vai se manifestar como vergonha, autocensura, obediência por medo, tolerância ao inaceitável e com uma tendência a confundir amor com controle e punição.
Essas dinâmicas, ao contrário do que pode parecer, não são deterministas e categóricas, mas elas expressam a lente ampliada da experiência infantil. E uma vez que a psique procura o que é conhecido, o que dá um senso de estabilidade e familiaridade, ela vai procurar na fase adulta vínculos que repetem as mesmas dores se elas não se tornarem conscientes de alguma maneira.
O conhecido atua como um sedativo psíquico: ele pode causar sofrimento, mas não assusta tanto quanto o desconhecido. A novidade — que aqui pode ser um amor mais paciente, claro e previsível — pode soar estranha, quase sem graça, porque não aciona o mesmo circuito. É por isso que muitas pessoas podem ficar confusas e se autossabotarem quando encontram alguém que as tratem bem, quando recebem um elogio ou quando conquistam alguma coisa importante para elas. Sem uma consciência desses padrões, a pessoa tende a rejeitar aquilo que a faria sair desse ciclo.
Para compreender a força que as imagens parentais exercem na nossa psique, precisamos olhar para a arquitetura afetiva que se formou em nós durante a infância. Na psicologia analítica, damos o nome de “complexo” aos vários núcleos vivos de memórias e emoções que se organizam em torno daquelas experiências iniciais que tivemos na infância. Os complexos são constelações de imagens, sensações corporais, crenças e expectativas. Vejamos como Jung define um complexo:
“[…] imagino o complexo como um conjunto de representações, relativamente independente (exatamente por causa de sua autonomia) do controle central da consciência e que está em condições de a cada momento, por assim dizer, dobrar ou atravessar as intenções do indivíduo.”
Estudos Experimentais, Carl Jung.
Entre os mais fortes estão os complexos materno e paterno. Mas esses complexos não são “sobre” a sua mãe e o seu pai reais — são sobre as funções psíquicas que essas figuras encarnaram: a nutrição, o acolhimento, a previsibilidade, por exemplo, encarnam a função materna; a orientação, o limite, e o reconhecimento, por exemplo, encarnam a função paterna. Quando essas funções foram oferecidas de forma inconsistente, excessiva ou ausente, o complexo vai guardar essa marca e, mais tarde, procura uma compensação ou a mera repetição nos relacionamentos adultos, pelo fato de já ser algo conhecido pela psique, mesmo que esse algo conhecido foi uma experiência desagradável. O terapeuta junguiano James Hollis, em seu livro, Projeto Éden, explica o seguinte:
“Observou-se que os casais que vivem juntos por muito tempo muitas vezes acabam se parecendo. (As pessoas e seus cachorros também podem começar a ficar parecidos, mas isso é outra história). Ou, ao entrar na casa dos cinqüenta, o parceiro pode parecer com o pai. Pense naquelas pessoas mais velhas que se dirigem ou se referem umas às outras como mamãe e papai. Tais fenômenos sugerem que a atração original pelo parceiro foi em grande parte guiada pela imago parental.”
Projeto Éden, James Hollis.
Imagine os complexos como um campo magnético: quando um relacionamento amoroso toca nesse campo, tudo em volta começa a girar em sua órbita. Se, por exemplo, a função materna foi experienciada pela criança com bastante afeto, mas também com bastante intrusão e dependência, quando ela se tornar adulta, pode haver o desejo por proximidade, mas ao mesmo tempo ela pode se sentir sufocada quando tenta se aproximar. Se a função paterna foi distante ou imprevisível, o vínculo pode se organizar em torno de autoavaliações intermináveis: a pessoa age como se sempre precisasse pedir permissão ou que fosse avaliada para dizer ou fazer as coisas.
O ponto central é que o complexo reage àquilo que lhe parece familiar. Eles estão conectados à nossa rede neurológica e emocional. E, quando constelado, é como se ele tomasse conta da nossa personalidade e nos fizesse repetir o mesmo padrão de sempre, caindo nas mesmas armadilhas e tendo os mesmos desfechos. Jung explica que:
“Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão “está constelado” indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por vontade própria.”
A Natureza da Psique, Carl Jung.
Como são estruturas inconscientes da psique, os complexos são constelados, isto é, ativados, sem que tenhamos pleno controle. Pode parecer uma injustiça da vida, mas não podemos ter consciência de um complexo enquanto ele não agir nas nossas vidas, como complementa James Hollis:
“Estamos condenados a esses padrões? Certamente somos livres para ser e nos comportar de outra forma. Sim, mas isso requer um alto grau de percepção consciente do padrão, e só podemos saber que algo é um padrão quando o tivermos feito várias vezes. Além disso, até a meia-idade ou mais tarde, raramente ganhamos força de ego suficiente para refletir sobre nossas escolhas. O jovem ainda está muito inconsciente e não pode arriscar nenhuma dúvida no já instável empreendimento da vida. Mesmo o envelhecimento não necessariamente produz consciência.”
Projeto Éden, James Hollis.
Portanto, ninguém chega a tais reconhecimentos desses padrões de maneira fácil, sem ter sofrido alguns fracassos, vergonha, raiva ou humilhações. Mas é justamente nesses estados que pode ser encontrado um belíssimo material sobre nós mesmos. O problema é que raramente queremos olhá-lo, pois isso, de fato, poderia trazer um enorme sofrimento. Então, a tendência é, de forma inconsciente, terceirizar a responsabilidade dessa análise sobre aquilo que nos faz sofrer para alguém que cumpra o papel de ser um verdadeiro salvador, ou de uma salvadora, que irá nos curar e nos livrar de todos os problemas. James Hollis chamou esse complexo de Outro Mágico, como ele escreve:
“A [grande] ]ideia falsa que impulsiona a humanidade é a fantasia do Outro Mágico, a noção de que existe uma pessoa lá fora que é certa para nós, fará nossas vidas funcionarem, uma alma gêmea que consertará os estragos de nossa história pessoal; alguém que estará ao nosso lado, que lerá nossas mentes, saberá o que queremos e atenderá às nossas necessidades mais profundas; um bom pai que nos protegerá do sofrimento e, se tivermos sorte, nos poupará da perigosa jornada da individuação. Praticamente toda a cultura popular é alimentada por essa ideia e suas consequências.”
Projeto Éden, James Hollis.
Em algum lugar, de alguma maneira, esperamos esse alguém que irá nos compreender e carregar nossas demandas e frustrações, como outrora fizera nosso pai ou nossa mãe quando éramos crianças. Pela falta de conhecimento próprio, buscamos nossa identidade neste Outro Mágico, que passará a ser o nosso mundo, como foram um dia os nossos pais. Daí aquela tentativa de retorno ao paraíso perdido.
E é importante notar que os complexos não são apenas “negativos”. Às vezes, a função materna foi tão abundante que gerou dependência: tudo era feito para a criança. Então o amor adulto vira uma busca por continuidade dessa facilidade — alguém que antecipe, resolva e organize as coisas. Às vezes, a função paterna foi tão rígida que gerou uma hiperautonomia: você aprendeu a nunca precisar de ninguém; mas, lá no seu íntimo, sempre anseia por alguém que finalmente permita com que você descanse. Em ambos os cenários, o Outro Mágico tenta reequilibrar esse pêndulo dentro de você, e os vínculos que se formam na idade adulta oscilam entre a onipotência total e o colapso por não dar conta de sustentar uma autossuficiência ilusória.
O processo de individuação, que é o objetivo da psicologia analítica, isto é, o processo de tornar quem você realmente é, passa por uma parte de justamente retirar do parceiro a obrigação de encarnar nossas imagens paternas e, pouco a pouco, integrar essas funções dentro de nós. Quando atribuímos ao nosso parceiro a tarefa de carregar a nossa própria alma, o que estamos fazemos é abuso de poder e não um movimento de amor; e como escreveu Jung:
“Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.” D
ois Escritos Sobre Psicologia Analítica, Carl Jung.
A forma como não queremos encarar a nossa própria alma está diretamente relacionada com a nossa sombra. A sombra são aqueles conteúdos dentro de nós do qual nos sentimos desconfortáveis quando são manifestados. A sombra pode ser a raiva, a vergonha, o medo de rejeição, de humilhação e assim por diante. E é justamente pelo fato de nos sentirmos desconfortáveis com esses conteúdos que projetamos na outra pessoa aquilo que temos medo de encarar por conta própria, esperando que ela nos poupe da nossa própria responsabilidade, isto é, em perceber que, enquanto não nos tornarmos conscientes da nossa sombra, desses conteúdos que ferem a nossa imagem consciente, vamos pular de relacionamento em relacionamento, atribuindo aos outros falhas que são nossas, pois ninguém consegue carregar o nosso próprio fardo por muito tempo, como explica James Hollis:
“Quando os casais caem no problema do poder, torna-se muito fácil criticar o Outro. De repente, vemos todas as suas falhas de caráter e comportamentos irritantes. […] Não demorará muito para que esse material primordial encontre outro objeto no qual pousar. […] buscando a renovação, a recuperação de energia, o renascimento da esperança.”
Projeto Éden, James Hollis.
É difícil perceber os padrões, olhar para as próprias feridas e assumir total responsabilidade pela nossa experiência de vida. Se não estivermos dispostos a assumir esse árduo trabalho, nunca sairemos do ciclo interminável de buscar um pai e uma mãe que nos digam o que precisa ser feito. Por isso que, assumir a responsabilidade por nós mesmos é o maior gesto de amor que podemos fazer para o outro, pois isso elimina o fardo que o outro precisaria carregar; o deixamos mais leve para ele ser justamente isso, um inteiramente Outro, e não um outro eu. E o amor é deixar que esse Outro seja, simplesmente seja, pois como escreve Santo Agostinho:
“Amar é querer que o outro seja”.
Frase atribuída a Santo Agostinho.
E amar sobretudo envolve ter coragem, pois perceber o outro como alteridade, isto é, deixando-o livre das nossas projeções, significa que podemos ser contrariados, que nossos desejos podem ser frustrados ou que nossas exigências podem ser ilusórias. Quando eu percebo o outro como outro e não como parte de mim, então eu estou disposto para celebrar um relacionamento pelo que o outro pode oferecer.
Muitas pessoas podem reclamar dos pais, dizendo que, apesar de alguns estarem presentes em suas vidas, não se sentiam conectados; a atenção que deram não era suficiente ou faltava algumas coisa para fechar o vínculo. Sim, isso pode ser verdade. Mas a questão é que sempre vamos achar que a quantidade de atenção que recebemos não foi a que gostaríamos. Você pode achar que seus pais não te ofereceram tanto, mas muitos, com certeza, ofereceram tudo o que tinham., ainda que esse tudo fosse pouco.
“Sem a alteridade do Outro, não teríamos nada para contrariar as certezas infladas e a unilateralidade da consciência do ego. Se apenas meditássemos no topo de uma montanha pelo resto de nossas vidas, acabaríamos conversando com fantasmas, ou seja, nossos próprios fragmentos psíquicos desencarnados.”
Projeto Éden, James Hollis.
A qualquer momento, podemos regredir a um estado de negligência com a nossa alma e delegar ao outro a tarefa de sustentá-la. Eu estou usando o termo alma, aqui, como aquilo que nos impele a viver de acordo com quem somos em potencial. E colocar em ato as potencialidades da alma requer um maior nível de consciência sobre nós mesmos.
É por isso que essa compreensão requer uma vigilância sem fim. A conquista da consciência nos impõe um autoexame contínuo, já que o inconsciente sempre nos puxará para aquele estado de inconsciência do paraíso infantil. O mito grego de Prometeu nos lembra dessa enorme empreitada. Quando ele roubou o fogo do Olimpo e entregou aos humanos, a consciência neles foi despertada. Mas quando Zeus ficou sabendo que o fogo havia sido roubado por Prometeu, ele mandou que o prendessem em uma montanha, onde seria bicado por uma águia durante o dia, mas a ferida se curava durante a noite, para que no dia seguinte a águia viesse e o bicasse novamente. É mais ou menos assim que é o peso da consciência: ela exige que a suportemos durante o dia, para que possamos descansar e curá-la durante a noite.
Toda a perspectiva de amor do ocidente se baseia naquele ideal romântico de salvação: se apaixonar perdidamente por alguém e viver uma projeção de dependência sem fim. Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Os Sofrimentos do Jovem Werther, O Morro dos Ventos Uivantes, são alguns exemplos dessa diluição do nosso próprio eu no outro. São formas de poder disfarçadas de amor, onde toda a responsabilidade pela própria vida é colocada nas costas um do outro. Não há nada que seja mais oposto ao amor do que isso.
O relacionamento pode ser uma fonte riquíssima para o autoconhecimento. No começo é normal projetarmos nossas imagens parentais no outro, mas com o tempo, precisamos recolher essas projeções e dar espaço para que ambas as partes sejam elas mesmas e com isso possa nascer algo novo. Um relacionamento é o envolvimento de duas almas que causam o fenômeno que Jung chama de função transcendente, que é quando um terceiro elemento nasce da união de outros dois. Esse terceiro elemento é inteiramente único e simbólico, mas que só pode acontecer quando você se torna você mesmo, e o outro tem a liberdade de ser o outro.
“Se, por exemplo, estou pedindo ao Outro que esteja atento à minha auto-estima, tenho um projeto esperando sem solução. Se estou esperando que o Outro seja o bom pai e cuide de mim, então não cresci. Se espero que o Outro me poupe do rigor e do terror de viver minha própria jornada, abdico da tarefa principal e da razão mais digna de minha encarnação nesta terra.”
Projeto Éden, James Hollis.
