A pessoa que sempre está (quase) pronta — Aristóteles
Transcrição do vídeo
Vamos imaginar a seguinte situação: você assistiu algum vídeo numa noite de terça-feira que te deu um pico extremo de motivação e decide que, a partir do dia seguinte, vai mudar os seus hábitos e tirar alguns projetos do papel. Então você decide acordar mais cedo, “taca” a cara num balde com água gelada, faz o seu café e começa a montar uma planilha junto de uma lista de tarefas no Notion para visualizar tudo o que precisa para começar aquele projeto, ao mesmo tempo que mentaliza palavras de dedicação, esforço e ambição.
Só que você ainda não se sente pronto. Você tem aquela sensação de que falta alguma coisa. Então você abre o Youtube e decide procurar vídeos sobre como organizar o seu dia e tirar um projeto do papel; você assiste e anota tudo o que o cara do vídeo fala para você fazer. Ok, até aqui você sente que já progrediu. Olha o tanto de coisa que você já fez! Não custa nada olhar um pouco as redes sociais, né?
Entre um reels e outro, você encontra um influenciador recomendando um livro de autoajuda mais ou menos genérico que promete acabar com a sua procrastinação, e você pensa: “Meu Deus, esse era o livro que faltava para eu começar o meu projeto!” Então você decide dar uma pausa no projeto para comprar o livro e absorver o máximo que conseguir daquele conteúdo.
Enquanto o livro não chega, você vai salvando alguns reels para assistir depois, consumindo mais vídeos, caçando mais insights e se preparando cada vez mais para ter a certeza de que vai começar da melhor maneira possível.
O livro finalmente chega, você lê; só que acabou de lançar aquele curso de como lançar um produto que você não pode perder. E então você pensa: “Sim, é isso mesmo, acho que depois desse curso eu vou estar pronto para começar o meu projeto”. E esse ciclo se repete… infinitamente.
Você já deve ter passado por uma situação assim. É como se você precisasse ter certeza de que tem todas as ferramentas e mapeou todas as possibilidades de erro antes de pôr em prática alguma coisa. Só que, vai passando o tempo, e tudo o que você conseguiu foi só uma sensação de progresso sem risco, uma sensação de mudança sem desconforto. No fim, apenas uma ilusão de felicidade, mas na realidade você não saiu do lugar.
Quantos livros de autoajuda você já leu, mas tudo o que você conseguiu foi uma coleção de técnicas que nunca colocou em prática?
Por incrível que pareça, muitas vezes, nos contentamos apenas com a possibilidade de conseguir algo na imaginação, ocasionada por todo aquele preparo prévio, sem nos esforçarmos para conseguir o que imaginamos de fato. Isso evita danos que ocasionalmente podemos fazer na nossa imagem idealizada de perfeição. E a prática quebra justamente essa imagem que construímos de nós mesmos, pois envolve lidar com a realidade e as suas vicissitudes.
Seu eu ficasse preocupado em fazer um vídeo perfeito, não teria vídeo e não teria o canal Ato e Potência até hoje. No começo eu gravava com o áudio do meu celular e, depois, com o crescimento do canal, eu fui trocando de equipamentos e melhorando meus vídeos.
Mas a questão é que ninguém é corajoso se imaginando corajoso, ou justo se imaginando justo, mas sim através de ações práticas de coragem e de justiça. Nesse sentido, ninguém será feliz, ou pelo menos ninguém terá uma vida plena, imaginando ou mentalizando palavras de prosperidade ou de gratidão, mas sim praticando a felicidade. Sim, a felicidade é uma ação prática, um hábito, não um estado passivo ou uma sensação de bem-estar. Foi isso que Aristóteles, há mais de 2300 anos, nos mostrou no seu tratado chamado Ética a Nicômaco. A eudaimonia, traduzida como felicidade — mas que também pode ser traduzida como plenitude —, é o bem que buscamos acima de todos os outros bens. Fazemos o que fazemos com o objetivo de buscar a felicidade, como escreve Aristóteles:
“[…] uma coisa buscada em função de si mesma é mais completa do que uma buscada como meio para alguma coisa mais […] Ora, a felicidade [eudaimonia], acima de tudo o mais, nos ocorre como tal, uma vez que sempre a escolhemos por ela mesma e jamais como um meio para algo mais, enquanto a honra, o prazer, a inteligência e todas as virtudes, embora as escolhamos por elas mesmas, também as escolhemos em vista da felicidade na crença de que contribuirão para sermos felizes.”
Aristóteles, Ética a Nicômaco.
Mas ao contrário do que muitos pensam, Aristóteles nos mostra que a felicidade não é subjetiva, pois isso dependeria das oscilações de humor e de caráter do próprio indivíduo. A felicidade também não diz respeito somente às honras, pois isso depende muito mais da imagem que queremos passar para o outro, ficando sujeito às suas validações. Sem um critério estável, o conceito de felicidade muda conforme a nossa carência. E é essa falta de eixo que produz vidas viciosas — sempre correndo atrás da próxima sensação ou da próxima experiência.
Aristóteles está procurando o universal, o que diz respeito a todos os seres humanos. Ora, todos os seres humanos querem viver bem, então a felicidade não poderia ser outra coisa senão viver bem, como ele escreve:
“Nossa definição coincide com o perfil do homem feliz como alguém que vive bem ou se dá bem, uma vez que é quase uma definição da felicidade como uma forma de viver bem ou se dar bem.”
Ética a Nicômaco, Aristóteles.
A felicidade não é um estado que você possui, é um modo de agir que você exerce. Não é “sentir-se bem” a qualquer custo, é um “agir bem” segundo um padrão de virtude que se treina. Essa concepção da felicidade é sim rigorosa porque também reconhece os limites reais. Aristóteles admite que a felicidade requer bens externos adicionais, pois é “difícil praticar ações nobres” sem amigos, recursos ou certa estabilidade de vida. Essa honestidade previne aquela leitura ingênua do tipo “basta querer para ser feliz”. Na vida concreta, precisamos cuidar das condições que nos permitem agir bem.
Bom, mas então como agir bem? Mais uma vez, Aristóteles vai procurar algo de universal nos seres humanos. Ora, todos os seres humanos são dotados de razão. Diferente de todos os outros seres vivos, os seres humanos possuem uma alma racional que mede, julga e dirige desejos e ações ao que é devido. Ou seja, o bem próprio do ser humano é exercer bem as potências racionais ao longo da vida, como ele escreve:
“Se, então, a função do ser humano é o exercício das faculdades da alma em conformidade com a razão ou não dissociativamente da razão […] se conclui que o bem humano é a atividade das faculdades da alma em conformidade com a virtude, ou se houver mais de uma, em conformidade com a melhor e mais completa delas. Ademais, por uma vida completa; pois uma andorinha não faz verão, nem um belo dia.”
Aristóteles, Ética a Nicômaco.
Essa última parte é uma das frases mais famosas de Aristóteles. “Uma andorinha não faz verão, nem um belo dia”, é uma metáfora que Aristóteles usa para explicar que a felicidade não se mede por um instante de sorte, um pico de humor ou por um “dia perfeito”. Assim como uma andorinha isolada não caracteriza uma estação inteira, um único bom momento não define uma vida boa. A eudaimonia exige continuidade: é uma atividade virtuosa sustentada “ao longo de uma vida inteira”.
Em termos práticos: não é porque hoje você foi corajoso, justo ou temperante que já “é” corajoso, justo ou temperante; caráter é o que você consegue repetir. Para Aristóteles, só podemos dizer que fomos ou não felizes somente no final da vida.
Bom, note que estamos falando muito sobre virtudes, certo? As virtudes são excelências de caráter e de pensamento que nos fazem desempenhar bem nossas funções, de acordo com as nossas particularidades e ajustadas à nossa medida. As virtudes, segundo Aristóteles, podem ser divididas em intelectuais e morais.
E dentre as diversas virtudes intelectuais, a que nos interessa neste vídeo é a razão prática, que Aristóteles chama de prudência. A prudência é a nossa capacidade de deliberar bem sobre os meios para chegar a um fim nobre, como ele escreve:
“[…] a prudência é uma capacidade racional genuína que diz respeito à ação relativamente às coisas que são boas e más para os seres humanos. […] Além disso, o prudente não é apenas aquele que sabe, mas também aquele que age.”
Aristóteles, Ética a Nicômaco.
É a prudência que guia as nossas ações. E é aqui que está o pulo do gato. Embora a prudência possa ser ensinada, já que ela é uma virtude intelectual, grande parte da prudência só é adquirida pelo atrito com a vida concreta, vivendo e julgando situações reais e praticando as virtudes morais.
As virtudes morais consistem justamente na escolha prudente entre dois estados viciosos do comportamento, ou seja, entre uma falta e um excesso. É quando fazemos o que é devido, de modo devido, no momento devido. Por isso que as virtudes só se formam através da prática. Para acertar a mão, precisamos repetir nossos atos até encontrar a mediania relativa a nós. Não é possível fazermos isso mentalizando ou dizendo para nós mesmos que somos o melhor.
É através da prática constante das virtudes morais, ou seja exercendo atos de coragem, de moderação e de generosidade, por exemplo, que vamos adquirir cada vez mais prudência, discernir os excessos da nossa vida e ajustar a medida de acordo com as nossas capacidades. Só se é corajoso, por exemplo, quando a nossa razão equilibra a ação na exata medida entre a covardia — que é falta de coragem — e a temeridade — que é excesso de coragem, de acordo com a situação e ajustada às nossas particularidades. Aristóteles dá alguns exemplos da mediana nas virtudes:
“Com respeito ao medo e à temeridade, a mediania é a coragem […] aquele que se excede na coragem é temerário; aquele que se excede no medo e é deficiente em coragem é covarde. […] Com respeito aos prazeres e às dores […] a mediania é a moderação, o excesso é o desregramento. […] No que tange a dar e tomar dinheiro, a mediania é a generosidade, o excesso, a prodigalidade e a deficiência, a mesquinhez […] o pródigo se excede no abrir mão e é deficiente no tomar, enquanto o mesquinho se excede no tomar e é deficiente no abrir mão.”
Ética a Nicômaco, Aristóteles.
Em termos práticos, Aristóteles está recomendando três movimentos contínuos: observar onde você tende a errar (se no excesso ou na falta), puxar-se deliberadamente para o lado oposto para corrigir o desvio, e usar a razão com base em padrões objetivos para treinar a prudência e decidir o que é devido no momento. É assim que a mediania deixa de ser um mero conceito e se torna um padrão ética na sua vida.
Então, se você sempre está relutando em começar alguma coisa, mas sabe que isso seria o mais prudente a ser feito, o vício que você está incorrendo é o da akrasía, que é a falta de vontade ou a falta de comando sobre si mesmo. A pessoa sabe o que seria bom fazer, delibera certo, mas deixa a decisão ser vencida por prazeres mais imediatos, para fugir do esforço ou da frustração. Então, o que você precisa fazer é criar hábitos que tornem o começo o mais fácil possível — como dividir as tarefas em blocos curtos, ter hora marcada para fazer as coisas, ou dar um primeiro passo ridiculamente pequeno para ter a sensação de facilidade. Com o tempo, você vai desenvolvendo a enkráteia, que é o oposto da akrasía.
Mas é claro que nem toda ação admite meio-termo. A mediania diz respeito a ações boas. Não há prudência no adultério ou no homicídio, por exemplo, pois ambos são comportamentos defeituosos.
No mais, é a ação prática que fará com que tenhamos plena noção das nossas limitações e capacidades, prevenindo com que a gente se frustre diante das mais variadas situações. Portanto, a vida plena é aquela guiada pela prudência e sustentada por hábitos virtuosos.
Dito isso, Aristóteles provavelmente daria risada de um conceito moderno como a autoestima ou a mentalização. Eu gosto muito de uma definição que o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple dá para a autoestima:
“Autoestima é vaidade que diz respeito não à aparência, mas à natureza do próprio ser, do caráter. Ter autoestima é dar a si mesmo uma medalha por existir”
Evasivas Admiráveis, Theodore Dalrymple.”
É certo que as inúmeras crises econômicas, as guerras mundiais e os regimes totalitários ao longo do século XX fizeram com que a gente desacreditasse quase que totalmente da possibilidade de progresso e estabilidade exterior. O homem, desacreditado, fez um movimento de se voltar para dentro e se fechar cada vez mais em torno do seu eu. Se ele não encontrasse uma maneira de diminuir a solidão e a desesperança, o colapso seria bem maior.
Então, dentro do seu eu, ele deu um jeito de encontrar uma versão sua, boa e verdadeira, alheia às vicissitudes e influências do mundo externo. A autoestima nasce com essa volta para o interior em direção a um ser bom e verdadeiro que está alheio a esse eu fenomênico sujeito às influências malignas do mundo exterior. É a suposta busca por um eu incorruptível, bondoso e valoroso por natureza.
No entanto, a autoestima pode ter consequências mais graves, que está em justamente superestimar um valor próprio que não existe. Diante disso, a pessoa pode passar a não se importar mais se suas ações são virtuosas ou se prejudicam os outros, já que ela possui a desculpa de que, dentro de si, há um ser bom, verdadeiro e valoroso que as outras pessoas não entendem.
Uma autoestima descabida pode ser equivalente à vaidade, um excesso da virtude da grandeza de alma. Aristóteles é direto e claro quanto a isso:
“Considera-se que alguém seja detentor de grandeza de alma se reivindicar muito e merecer muito; aquele, realmente, que reivindica acima do merecimento é tolo, e ninguém que seja virtuoso é tolo ou insensato. […] Aquele que se julga merecedor de muito, mas não é, é vaidoso, embora nem todos que se julgam dignos de mais do que merecem sejam vaidosos. Aquele que se julga merecedor de menos do que merece é pequeno de alma, quer seus méritos sejam grandes, quer sejam moderados, ou mesmo que mereça pouco se julgar-se merecedor de ainda menos.”
Ética a Nicômaco, Aristóteles.
Um exemplo na literatura de que a autoestima pode ser catastrófica, é representada pelo general romano Coriolano, na peça de Shakespeare.
Desde pequeno, Coriolano foi educado para ter todo tipo de glória militar e construiu o seu ideal todo em cima disso. Com as honrarias que recebia durante as batalhas, ele foi se distanciando cada vez mais do povo, pois acreditava que aceitar os deveres com a república seria uma humilhação às suas honrarias, como Shakespeare escreve na peça:
“Tal natureza, lisonjeada pelo grande êxito, desdenha a própria sombra em que pisa de dia.”
Coriolano, Shakespeare.
Ele exigia reconhecimento absoluto pelos seus méritos reais, mas recusava tudo que não fosse adulação. Os romanos, indignados com o seu comportamento, o expulsam da cidade.
Tendo o seu ego totalmente ferido, Coriolano se junta aos volscos, que eram inimigos de Roma, para guerrear contra a sua própria pátria. Só que, durante a guerra, sua mãe, sua esposa e seu filho, aparecem no campo de batalha e o convencem a poupar a cidade. No entanto, o general dos Volscos viu que Coriolano traiu sua confiança e é assassinado por ele e seus soldados. No final, o mesmo mecanismo que movia Coriolano desde o início — que era o de viver do olhar do outro — o encurrala dos dois lados: do lado de Roma, que o exila por não reconhecer seus deveres; e do outro lado, os volscos o matam pela sua vaidade.
Coriolano confunde felicidade com honrarias, assim como Aristóteles havia demonstrado. Ele foi destruído pelos excessos. Ele é temerário em vez de corajoso; é vaidoso em vez de ter grandeza de alma; é bajulador em vez de ser amistoso.
O problema é que a autoestima pode travar as nossas ações quando vira algo para proteger a imagem de bondade ou de perfeição daquele eu verdadeiro. Se meu valor depende de que tudo dê certo, eu evito tentar algo que ameace essa minha autoimagem. Se meu valor depende da minha imagem de confiança inabalável, então vou evitar situações que confrontem esse ideal.
Não adianta nada termos autoestima se não fizermos práticas virtuosas, baseadas na razão, para desenvolver cada vez mais a nossa prudência e agir cada vez melhor.
Não vai ser mentalizando, acumulando conhecimento nem se autovalorizando que estaremos prontos. Só estaremos prontos no final da vida, no meio do caminho nós praticamos até chegar lá. A satisfação, a felicidade, a prosperidade não é o começo, é a consequência de uma vida inteira de hábitos que conduzem para esses fins. É uma vida cuja qualidade depende do tipo de atividade que exercemos repetidamente.
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