Por que as mulheres estão com medo do feminino? — A Sombra do Feminino
Transcrição do vídeo
Introdução
É bem comum, hoje em dia, muitas mulheres — e muitos homens, inclusive — se sentirem desconfortáveis diante da palavra “feminino”, como se ela carregasse um custo de ser frágil, submisso e confuso. Desde cedo, ouvimos que para sobreviver num mundo de métricas e de resultados é preciso amputar o que parece ser delicado. Não raro, acabamos vendo o próprio feminino como fragilidade, algo que poderia nos acorrentar a papéis antiquados ou a paixões que nos devoram. O paradoxo é que, quanto mais tentamos fugir desse território, mais ele se adensa no inconsciente, com sua lógica própria, exigindo atenção.
É aqui que entra o papel dos mitos. Diferente de uma regra moral ou de um diagnóstico psicológico, o mito é um relato que sobreviveu por séculos porque descreve algo profundo e universalmente verdadeiro sobre a experiência humana. Forjados a partir da experiência coletiva, eles são dramas universais que conversam com nossos próprios dramas particulares, e fornecem imagens onde podemos visualizar aquilo que ainda não sabemos nomear — medos difusos, intuições vagas, pressentimentos de grandeza e assim por diante.
Entre todos, poucos dialogam tão diretamente com esse medo do feminino quanto o mito de Eros e Psiquê. Nele, a jovem Psiquê, que significa Alma em grego, passa por todas as experiências universais que as mulheres passam na vida: é entregue a um amor proibido, cai do paraíso da inocência, enfrenta tarefas que parecem impossíveis e, por fim, encontra seu verdadeiro Self. Cada acontecimento dramatiza uma travessia interna: a tensão entre aparência e essência, a sedução de permanecer inconsciente, o choque de ver a própria sombra, e a coragem de descer ao próprio inferno.
E é importante lembrar que, ao falarmos do feminino ao longo da explicação do mito, não estamos nos referindo a um conjunto de traços ligados ao sexo biológico. Tanto o feminino quanto o masculino são princípios universais e transpessoais. O feminino é o princípio de organização da vida. Trata-se do modo como a realidade se recolhe, gesta, conecta e nutre antes de ir ao mundo em forma definida.
Na natureza, vemos o feminino em qualquer processo que exige contenção e maturação: a noite que regenera a fotossíntese do dia, o interior da semente onde as enzimas transformam amido em broto, o útero que abriga o embrião de uma nova vida e assim por diante. O feminino, então, é a matéria que guarda potência — daí a mesma raiz latina “mater” para mãe, matéria e matriz.
Os mitos deram rosto a essa matriz cósmica, chamando-a, por exemplo, de Gaia, Tiamat ou Kali: deusas que criam, nutrem e, se necessário, devoram para reiniciar o ciclo.
Feminino, portanto, não é sinônimo de “mulher”; é a dinâmica de conter, escutar e integrar. Onde quer que a vida precise abrigar contrários, curar feridas ou transformar caos em criação, o feminino estará presente. As mulheres possuem o feminino em essência, mas que necessita de desenvolvimento ao longo da vida, e os homens possuem uma contraparte feminina chamada de anima, que justamente lhes dá ânimo para a vida, e que também precisa de desenvolvimento.
Por isso o mito de Eros e Psiquê ressoa tanto hoje, ele é o mito que explica a psicologia do feminino. Ele ressoa naquela jovem que teve sua primeira decepção amorosa, naquela profissional que sufoca as emoções para manter uma postura de autoridade, ou naquele rapaz que desconfia das próprias lágrimas porque considera sensibilidade uma fraqueza — todos encarnam, a seu modo, o drama de Psiquê, o feminino em desenvolvimento e individuação.
Capítulo 1 — O despertar da Alma
Na psicologia junguiana, Psiquê representa a feminilidade essencial, presente nas mulheres e também na anima do homem. Psiquê é a personificação do nosso mundo interior, das nossas percepções, sentimentos e intuições, mas que, cedo ou tarde, terão que ser confrontados e interagir com o mundo externo, e é nesse atrito que começa o nosso desenvolvimento pessoal.
O mito de Eros e Psiquê, contato pelo escritor Lúcio Apuleio, que viveu durante o segundo século depois de Cristo, começa da seguinte forma:
“Em certa cidade, havia um rei e uma rainha que tinham três filhas dotadas de extraordinária beleza. Ainda que fossem muito belas, as mais velhas podiam ser celebradas satisfatoriamente pelos elogios dos homens. Mas não havia linguagem humana que pudesse descrever ou pintar a primorosa e majestosa formosura da filha caçula.”
Lúcio Apuleio (124 d.C. – 170/180 d.C.), Eros e Psiquê.
A filha caçula, é claro, é Psiquê. No entanto, sua beleza, ao mesmo tempo que era admirável aos olhos, a isolava de todos os outros. Todos a louvavam, mas ninguém ousava chegar perto. As pessoas admiravam-na como se admira um retrato. Muitas mulheres modernas conhecem essa sensação de serem vistas, mas não conhecidas: elas têm os inúmeros likes nas redes sociais, mas não conseguem se conectar com ninguém por muito tempo. A fama vazia de Psiquê ecoa na cultura que valoriza aparência e performance acima da substância, gerando aquele desconforto que nenhuma conquista material parece resolver.
O psicoterapeuta junguiano Robert Johnson, em seu livro She, que descreve o simbolismo presente no mito de Eros e Psiquê, explica da seguinte forma:
“Existe uma Psiquê em toda mulher, o que significa ser muito só. Por um lado, toda mulher é filha de rei: muito adorável, muito perfeita, com uma riqueza interior muito grande para um mundo tão vulgar. Quando uma mulher se vê solitária e incompreendida, quando percebe que as pessoas são afáveis para com ela mas mantêm um certo distanciamento, acaba descobrindo o seu lado Psiquê.”
Robert A. Johnson, She.
É aqui que o mito apresenta seu primeiro convite à reflexão: o aspecto feminino, quando aplaudido apenas por atributos exteriores, adoece. Sem um propósito que una beleza e significado, Psiquê corre o risco de tornar-se uma peça de vitrine, à mercê do ciúme alheio e da própria sensação de impostura. Todo impulso de reconhecimento exterior precisa ser equilibrado por um desenvolvimento interior, senão a energia arquetípica que deveria nutrir a vida se volta contra a pessoa. Robert Johnson dá o exemplo da vida de Marylin Monroe:
“Foi excessivamente idolatrada, e mesmo assim nunca conseguiu manter um relacionamento bem-sucedido e duradouro. Por fim, não pôde mais suportar. Pessoas assim parecem ser as portadoras dessa condição de deusa, uma perfeição quase inatingível por não ter lugar no âmbito humano do relacionamento comum.”
Robert A. Johnson, She.
A fama de Psique afeta diretamente a deusa Afrodite, que viu seus altares vazios depois que os habitantes começaram a venerar aquela nova beleza, o que despertou ciúme e rivalidade na deusa. O mito continua da seguinte forma:
“Ninguém mais viajava a Pafo, a Cnido ou a Citer a fim de contemplar a deusa Vênus [Afrodite]: os sacrifícios em sua honra foram adiados, os templos esquecidos, os bancos abandonados, as cerimônias negligenciadas. Sob os traços humanos da jovem [Psiquê], venerava-se o poder imenso da deusa.”
Lúcio Apuleio (124 d.C. – 170/180 d.C.), Eros e Psiquê.
Afrodite é o símbolo da beleza primitiva e impessoal. Suas principais características são a vaidade, a luxúria, a fertilidade e a tirania, quando contrariada. Ela nasceu do esperma do falo capado de Urano por Cronos, seu filho, que foi fermentado quando caiu no oceano. Em termos psicológicos, ela reina no inconsciente, sendo justamente simbolizado pelas águas do mar.
Assim, a rivalidade entre Afrodite e Psiquê dramatiza o primeiro conflito que muitas mulheres de hoje sentem sem saber nomear: de um lado a força arcaica, a de Afrodite, que exige beleza, fertilidade e serviço constante, aquele impulso que perturba a mulher a sempre se sentir desejada e amada; de outro, a de Psiquê, que encarna uma nova sensibilidade que busca significado próprio, além dos padrões externos. Cada vez que uma jovem se vê arrastada entre agradar padrões externos ou escutar sua voz íntima, ela revive essa tensão mítica entre Afrodite e Psiquê.
Esse aspecto tirânico e primitivo de Afrodite por ser rivalizado não apenas dentro da mulher, mas também através da sogra ou da madrasta. Da mesma forma que Afrodite, a sogra ou a madrasta vê sua autoridade e exclusividade sendo usurpadas pela novidade, seja através de Psiquê ou pela Branca de Neve, nos contos de fada, que atraem toda a atenção para esse algo novo. Contudo, a natureza regressiva de Afrodite projetada na sogra e na madrasta pode ser a única maneira de fazer a mulher crescer ao confrontar seu inconsciente, como explica Robert Johnson:
“Talvez a evolução possa ser alcançada de outra forma; pode ser que Afrodite seja, por vezes, o único elemento capaz de promover o crescimento. Existem mulheres, por exemplo, que não conseguiriam evoluir a não ser sob a tirania ou de uma sogra ou de uma madrasta.”
Robert A. Johnson, She.
Nesse embate, a sogra interna (a Afrodite arcaica) ou externa, a sogra real com sua Afrodite arcaica também, cumpre o papel de espelho: ela devolve à jovem tudo aquilo que ainda está mal elaborado — insegurança, necessidade de aprovação, medo de fracassar. Quando a nora enfrenta o espelho sem quebrá-lo, ela converte crítica em discernimento e rivalidade em autoconhecimento.
Capítulo 2 — Amor e Morte
A história continua com os pais de Psiquê desesperados porque ninguém aparece para pedir sua filha em casamento. Enquanto suas duas irmãs já estão casadas, os homens apenas veneram a imagem de Psiquê. O rei, então, decide consultar o oráculo da cidade, que lhe revela uma terrível profecia:
“Leva, ó rei, tua filha para o rochedo mais alto do monte,
E a expõe suntuosamente ataviada para as núpcias mortais,
Não esperes para genro um homem de estirpe mortal,
Mas um monstro cruel e feroz, cercado por cobras.”Lúcio Apuleio (124 d.C. – 170/180 d.C.), Eros e Psiquê.
Dessa maneira, ficamos sabendo que Psique se casará com a própria Morte. Isso por si só revela toda a profundidade do mito. Como Psiquê é a personificação do desenvolvimento feminino, o casamento representa um ciclo inteiro de identidade que se encerra para que outra configuração — a de esposa, potencial mãe e parceira adulta — nasça em seu lugar. Nesse sentido, Robert Johnson explica que:
“Psiquê está prestes a casar-se. O marido virá, sem dúvida, mas é uma ocasião trágica, porque o esposo é a própria Morte. Na verdade, a donzela realmente morre no dia de suas bodas: uma etapa de sua vida se extingue e ela morre para muitos aspectos femininos que vivera até então. Em certo sentido, o casamento representa um funeral para ela.”
Robert A. Johnson, She.
Todo casamento é morte e ressurreição para a mulher, pois, apesar do empurrão que o casamento causa em sua evolução, ele também é acompanhado por uma nostalgia da liberdade que a mulher tinha antes dele e por uma sensação de desamparo causada pela ligação ela que tinha com a mãe. A terapeuta junguiana Marie-Louise von Franz escreve que:
“Estar casada é também estar comprometida com uma situação e um destino específicos, e algo na mulher se assusta com isso. Antes de se casar, a mulher pode sonhar com o que poderia ou gostaria de fazer. Mas ao casar-se com o homem que ama ela se compromete com ele para o que der e vier, e aquela parte sua que quer ser livre se ressente.”
Marie-Louise von Franz, O Caminho dos Sonhos.
Ignorar toda essa dimensão sacrificial que o casamento traz, sem dar sua devida elaboração, pode fazer com que a mulher viva um luto de quem fora depois de alguns anos casada, aparecendo em forma de ressentimento ou melancolia com relação ao marido.
Na mitologia grega, esse momento arquetípico é simbolizado pelo mito de Hades, o deus do inconsciente, e Perséfone, filha de Deméter, a deusa da fertilidade e das estações. Quando Perséfone está no submundo, o mundo responde com as estações de outono e inverno. Nesse sentido, toda boda contém esse momento infernal: a separação da filha da mãe-Deméter, o mergulho da mulher no masculino desconhecido do marido e a suspensão do tempo até que uma nova consciência se forme nela, dando início à primavera.
É essa lógica de morte-renascimento que Psiquê revive ao ser levada pelo vento ao rochedo: tal como Perséfone, ela precisa “morrer” como filha idealizada para, só então, florescer como mulher consciente de si e parceira em pé de igualdade.
No entanto, ficamos sabendo que foi Afrodite quem adulterou a profecia do oráculo, pois ao fazer Psiquê se casar com a criatura mais horrenda da Terra, seu legado seria manchado pela vergonha. Para isso, Afrodite pede ajuda de seu filho, Eros, o deus dos relacionamentos, dando-lhe a ordem de dar uma flechada em Psiquê para que ela se apaixone pela pior criatura. Mas o que acontece depois não estava nos planos de Afrodite. O mito continua da seguinte forma:
“Eros obedece às ordens da mãe, mas ao bater os olhos em Psiquê, acidentalmente espeta o dedo em uma de suas flechas. No mesmo instante apaixona-se perdidamente por ela e decide torná-la sua esposa. Pede ao Vento Oeste, seu amigo, que a carregue, suavemente, montanha abaixo, até o Vale do Paraíso. E Psiquê, que esperava a Morte e agora se vê, ao invés, no paraíso da Terra, não faz qualquer pergunta a Eros, inebriada que está com sua inesperada boa sorte.”
Robert A. Johnson, She.
Esse Paraíso proporcionado por Eros marca todo início de relacionamento. O homem promete para a mulher a felicidade eterna e a mulher, cega pela paixão, não questiona nem duvida. No mito, Eros promete qualquer coisa que Psiquê quisesse com a condição de que ela não olhasse diretamente para ele. Essa condição é simbólica. Eros quer que Psiquê permaneça na inconsciência paradisíaca, fruto dos relacionamentos imaturos.
Os homens, quando estão em um relacionamento, muitas vezes escondem sua condição ou evitam responder muitas perguntas de forma direta com medo da mulher sair daquele Paraíso que ele a colocou. E a mulher, entorpecida pelo despertar do Eros em seu interior, ou seja, do sentimento de pertencimento e a capacidade de amar, deixa ser conduzida por esse novo sentimento, acreditando que o paraíso é perpétuo e que essa sensação durará para sempre.
A mulher, então, se sente traída quando ela se dá conta, depois de algum tempo, que aquela sensação que sentira no começo não é mais tão prazerosa, acusando o parceiro de ter mudado ou de não ser mais aquilo que ele fora no começo, mas o próprio convívio vai desgastando o paraíso, desfazendo as projeções e, para que a relação se mantenha, os parceiros são forçados a enxergar — e a aceitar — o outro sem a figura do deus ou da deusa que projetara, ou seja, ver o outro como humano, demasiado humano.
Mas o homem que se escondeu atrás do paraíso, também vai ficando sem saída durante o relacionamento, muitas vezes decidindo até mesmo abandoná-lo com medo da mulher descobrir o que ele tem vergonha nele mesmo. Robert Johnson explica que:
“Todo Eros imaturo é um fazedor de paraísos. […] Eis o Eros ao nível secreto; ele quer seu próprio paraíso, mas não aceita nem a responsabilidade nem o relacionamento consciente.”
Robert A. Johnson, She.
Muitas vezes é esse Eros imaturo que faz com que uma pessoa continue num relacionamento desgastante, com medo de não se sentir mais amada ou de ficar sozinha, temendo encarar tudo aquilo que escondeu.
É dessa forma que nasce as idealizações dos parceiros. Muitas relações se baseiam em expectativas implícitas, pautadas no silêncio sobre certos assuntos para não desmanchar a imagem do parceiro perfeito que construíram um para o outro. No entanto, tudo que é mantido por muito tempo na escuridão, uma hora, acabará por exigir luz, nem que o custo seja doloroso. E como o mito trata de Psiquê, o desenvolvimento feminino, ela vai precisar conter o impulso arrebatador do Eros despertado dentro de si.
Capítulo 3 — As Irmãs e a Sombra: O Lado Sombrio da Mulher
É nesse ponto do mito que passamos a conhecer as irmãs de Psiquê. Quando elas foram até o monte ao seu encontro, viram que não estava mais lá. Gritaram por Psiquê, que as ouviu lá do Paraíso. Pedindo, então, para que as irmãs entrassem no local, o mito continua da seguinte forma:
“A inocente Psiquê foi abrindo a porta para elas do seu doce refúgio, o castelo dourado com a criadagem invisível da qual somente os ouvidos podiam captar as vozes. Permitiu que as irmãs se refrescassem com os mais deliciosos banhos e depois ofertou-lhes a mais perfeita refeição já preparada por mãos humanas. A abundância de suas riquezas fez geminar-lhes no coração as sementes da inveja.”
Lúcio Apuleio (124 d.C. – 170/180 d.C.), Eros e Psiquê.
As irmãs não são apenas personagens invejosas; elas personificam tudo que a psique feminina empurrou para de baixo do tapete enquanto vivia sob o feitiço do Eros imaturo: as comparações corrosivas, o medo de não ser amada e os ressentimentos silenciosos. Elas são, em geral, a sombra de Psiquê. Marie-Louise von Franz nós dá uma explicação esclarecedora sobre a sombra:
“A palavra sombra é apenas um nome que damos ao fato de que a maioria das pessoas não tem consciência de todos os aspectos da sua personalidade. Gostamos de nos imaginar como pessoas inteligentes, generosas, de bom caráter, com certas habilidades e assim por diante. Mas nossa personalidade completa inclui também qualidades inferiores, das quais não somos conscientes. Elas se revelam em nosso relacionamento com o meio que nos cerca e em brigas. Nossa tendência é empurrá-las para a sombra. Não as encaramos de frente, e quando pensamos sobre nós mesmos esquecemos essas qualidades, pois elas nos envergonham. Só nossos melhores amigos e aqueles com quem vivemos é que podem identificar com clareza esses traços inferiores.”
Marie-Louise von Franz, O Caminho dos Sonhos.
As irmãs de Psiquê cumprem um papel duplo no mito. Elas são tanto aquelas vozes interiores da mulher dizendo para ela desconfiar de tudo, o que pode causar um efeito destrutivo em sua vida a longo prazo, como aquele impulso em direção a conscientização e a autonomia de pensamento. A sombra não é necessariamente má; ela se trata de elementos arcaicos que permaneceram inconscientes porque não foram trabalhados ou dados a devida atenção que merecem.
Apesar da inveja das irmãs, são elas que despertam Psiquê do seu mundo paradisíaco em direção a vida real. Ou seja, é o confronto com a sombra que nos torna mais humanos, mais sensatos e mais naturais. Robert Johnson comenta que:
“Se, conscientemente, só nos virmos como criaturas puras, adoráveis e gentis, como o fez Psiquê, então estaremos subestimando nosso lado escuro, que acabará por emergir e impulsionar-nos para fora desse estado de autossatisfação, desse paraíso ingênuo, na direção de novos descobrimentos sobre a nossa verdadeira natureza. Assim, as irmãs, essas facetas pouco agradáveis e imperfeitas de Psiquê, servem-lhe muito bem.”
Robert A. Johnson, She.
Apesar de Eros empreender todos os esforços para fazer com que Psiquê não desobedeça a sua ordem de não olhar para ele, são suas irmãs, ou seja, sua sombra, que a impulsiona para a consciência. Foi preciso que as irmãs espalhassem a semente da desconfiança para que Psiquê ousasse ver o que acontecia à sua volta.
No caminho de qualquer mulher, há figuras — amigas, rivais, vozes internas — que espelham zonas de desconforto. Ela encontrará traições, decepções e inveja. O truque não é se fechar para tudo isso, mas traduzir sua mensagem: “O que essa crítica revela sobre mim? Qual energia rejeitada ela carrega?” O fruto dessa reflexão é a clareza que permitirá diferenciar a intuição genuína do medo disfarçado de conselho.
Em determinado trecho do mito, as irmãs convencem Psiquê de que ela estava casada com um monstro, nesse caso, uma serpente, já que Psiquê ainda não tinha visto o rosto do marido. Consumidas pela inveja, as irmãs, então, tramam um plano para salvar a irmã. Robert Johnson continua:
“Aconselham-na a tomar de uma lâmpada, escondê-la sob uma redoma e deixá-la à mão em sua cabeceira. Deveria também armar-se da faca mais afiada que pudesse encontrar e coloca-la a seu lado, na cama. Assim, no meio da noite, quando seu marido estivesse dormindo pesadamente, ela o exporia à lâmpada para ver, pela primeira vez, aquela repugnante criatura e poder, então, cortar-lhe a cabeça. Psiquê cai na trama delas e prepara-se para desmascarar tão terrível marido.”
Robert A. Johnson, She.
Em uma noite, quando Eros está dormindo ao lado de Psiquê, ela tenta executar o plano. Pega a lâmpada e a faca para matá-lo. Só que, no momento que ela olha para ele sob a luz, ela se dá conta de que não se trata de uma serpente ou de monstro, mas de Eros, o próprio deus do amor, a figura mais bela que ela já viu na vida.
Desajeitada pelo baque, ela tropeça e espeta o dedo em uma das flechas de Eros, se apaixonando por ele imediatamente. Ao afastar a lâmpada bruscamente para ir em direção a ele, uma gota de óleo quente cai no corpo de Eros, acordando-o e fazendo-o dar-se conta do que aconteceu. Vendo que Psiquê descumpriu a promessa, ele desaparece e Psiquê fica sozinha, se debruçando em lágrimas.
Capítulo 4 — As Ferramentas da Consciência Feminina
Quando Psiquê entra em contato com suas irmãs, isto é, com a sua sombra, elas lhe fornecem duas ferramentas, como vimos: a lâmpada, um elemento feminino, e a faca, um elemento masculino. Este talvez seja o ponto mais importante do mito. Essas duas ferramentas estão presentes em toda mulher, e saber usá-las é crucial para o desenvolvimento da psique feminina.
A lâmpada é símbolo da Luz, que significa conscientizar-se. Diferente do Sol, um elemento masculino, que ilumina de modo abrupto e indiscriminado, a lâmpada é suave, permitindo distinguir formas de acordo com o foco.
Quando uma mulher acende essa luz interior, ela, ao invés de acusar indiscriminadamente, passa a enxergar. Muitas vezes é o olhar sereno — e não a crítica — que devolve dignidade ao outro e o convoca a ser maior do que a própria sensação de ineficiência. Quantas relações se reconfiguram melhor quando, em vez de ironia, surge uma pergunta do tipo: “O que você realmente está sentindo?” Essa luz feminina aponta possibilidades em vez de sentenças.
A faca, por outro lado, é o elemento cortante do masculino, manifestando-se geralmente pelas palavras. É quando a mulher se torna sarcástica e ataca os outros com uma série de perguntas, cortando ao invés de jogar luz na situação. A faca é uma excelente ferramenta para uso interior, isto é, para ajudar a mulher a discernir ideias próprias das ideias adquiridas, mas quando usada contra o outro, causa separação e destruição. Robert Johnson comenta que:
“Se a faca vier primeiro, provavelmente haverá muito perigo, mas, se em seu lugar for usada a lâmpada, haverá a possibilidade de crescimento e manifestação de inteligência. A faca serve só para o uso pessoal, para o discernimento, para a clareza, para abrir caminho através do nevoeiro.”
Robert A. Johnson, She.
O poder da lâmpada feminina é particularmente reconhecido entre os homens. Quando estamos na presença de uma mulher, nosso comportamento muda; nos tornamos mais organizados e até mesmo mais encorajados. E essa presença feminina reverbera dentro de nós, chegando até nossa anima, o lado interior feminino do homem. Anima, significa alma. É ela que dá ânimo e vida para os homens. Um homem sem anima é um homem sem vida, sem causa pelo que lutar.
Da mesma maneira que a anima pode tanto curar quanto destruir um homem, quando negligenciada, a mulher exterior pode tanto curar quanto destruir um homem. Ela cura quando sua lâmpada serve de guia para as situações; sua luz acalma o ambiente. Mas ela destrói quando decide usar a faca em primeiro lugar, sabotando as relações.
Isso é plenamente verificável através do humor da mulher. Quando a mulher está bem consigo mesma, o ambiente onde ela está também se transforma, já que o feminino pode ser simbolizado pela recepção e pelo aconchego.
Voltando ao mito, a cena em que Eros desaparece após ser iluminado pela lâmpada dramatiza toda a verdade do processo de individuação: a consciência interior desfaz as projeções que lançamos ao mundo. Nenhuma mulher — nem ninguém — caminha para a maturidade sem deixar escorrer alguma gota de arrependimento sobre quem ama e sobre o lugar em que está. A tarefa não é evitar a dor, mas transformá-la em responsabilidade. Esse é o legado das ferramentas: luz para revelar, lâmina para delimitar e coragem para assumir as consequências. É aqui que Psiquê tem contato com o seu lado masculino interior, seu animus. Marie-Louise von Franz explica o animus da seguinte maneira:
“O animus […] aparece mais comumente como uma convicção secreta ‘sagrada’. Quando uma mulher anuncia tal convicção com voz forte, masculina e insistente, ou a impõe às outras pessoas por meio de cenas violentas, reconhece-se facilmente a sua masculinidade encoberta. No entanto, mesmo em uma mulher que exteriormente se revele muito feminina, o animus pode também ter uma força igualmente firme e inexorável. De repente podemos nos deparar com algo de obstinado, frio e totalmente inacessível em uma mulher.”
Marie-Louise von Franz/Carl Jung, O Homem e Seus Símbolos.
Assim como a anima no homem, o animus na mulher tem o seu lado positivo e negativo. O relacionamento que a mulher tem com seu animus depende muito do relacionamento que ela tem com a sua sombra.
A sombra fornece o “material bruto” e o animus oferece a “ferramenta mental” para moldá-lo. Se não há diálogo consciente com a sombra, o animus torna-se uma arma de ataque — contra a própria mulher e contra o mundo.
Isso acontece por que tudo que permanece reprimido na sombra procura uma forma de expressão. Com frequência, a sombra encontra no animus a primeira roupagem disponível para se manifestar. Ele pode fazer isso através de ideias rígidas, quando a mulher pensa que precisa ser perfeita; através de julgamentos severos sobre os outros, quando a mulher fala por exemplo que “nenhum homem presta”; ou através de fantasias heroicas compensatórias, onde ninguém é bom o suficiente para estar com ela.
O resultado disso tudo é o chamado animus negativo — uma voz interior inflexível, dogmática e que corta o diálogo real com o sentimento. É como se fosse um “tribunal interno” que, ao mesmo tempo, protege e sufoca a mulher.
A anima e o animus são desenvolvidos no ser humano através da relação entre os sexos. O primeiro contato que a mulher tem com o seu animus é através do seu pai. Se a relação com o seu pai for negativa, ela terá dificuldades em lidar com o seu animus e com os outros homens. Mas se ela for aquela famosa “filhinha do papai”, isso também causará efeitos negativos, como explica Marie-Louise:
“A menina percebe que seu pai chega em casa cansado e ela lhe dá um sorriso charmoso; ele a deixa fazer tudo o que a mãe proibiu durante o dia. E assim ela logo descobre seu poder enquanto mulher. Mas se sucumbir a esse poder, transformando em profissão sua capacidade de dominar os homens com um sorriso sedutor, ela perderá o rumo. Pois se uma mulher tem essa tendência […] ela assume um papel divino, visto que animus e anima são mitológicos. Portanto, uma filha que flerta demais com o pai, entrando numa relação incestuosa íntima demais com ele, em geral adquire uma inflação secreta. Ela se eleva à dignidade de uma rainha e espera que os homens estejam a seus pés, exatamente como forçou seu pai a fazer.”
Marie-Louise von Franz, O Caminho dos Sonhos.
Dessa forma, o animus é o aspecto que dita o diálogo interior que a mulher tem com suas ações e seus sentimentos. Quando Psiquê acende sua lâmpada e vê Eros, ela na verdade enxerga o seu animus. Eros é o animus de Psiquê, seu lado masculino. Quando se assusta com o rosto de Eros, ela está se assustando com o poder que seu lado masculino pode proporcionar. Ela atingiu um novo estado de consciência. Marie-Louise escreve que:
“A masculinidade na mulher é tanto positiva quanto negativa. É sob certos aspectos negativa quando a mulher não sabe como se relacionar com ela com sabedoria. Uma mulher sem animus não tem vitalidade, capacidade de empreendimento, inteligência, iniciativa.”
Marie-Louise von Franz, O Caminho dos Sonhos.
Geralmente, quando uma mulher está avançando a um novo nível de consciência, ela passa por uma depressão e por uma sensação de vazio profundos. Pode acontecer depois de uma decepção amorosa, uma projeção desfeita, uma crise de meia-idade ou o nascimento de um filho. É nesse momento que o feminino da mulher entra em ação. Sua melhor qualidade não é a ação prática, como no homem, mas simplesmente parar e observar os seus sentimentos. Robert Johnson escreve que:
“Essa forma de agir é peculiar à mulher, pois o homem tem a sua própria, diferente da dela. Enquanto ele vai sair à cata de alguma tarefa heroica, ou seja, ‘matar muitos dragões para salvar frágeis donzelas’, geralmente ela se retira para um lugar muito tranquilo e lá fica, pacienciosa, sem se ocupar de nada, esperando até que algo dentro dela lhe dê os meios, o caminho e a coragem.”
Robert Johnson, She.
É essa capacidade inata do feminino que permite Psiquê superar a despedida de Eros. Quando a mulher avalia os seus sentimentos, ela está entrando em contato com seu animus, conseguindo um acordo com ele, e principalmente, tornando-o positivo e transformando-o em um guia espiritual.
Capítulo 5 — As Quatro Tarefas de Psiquê: Alquimia do Cotidiano
Psiquê, desolada pela perda de Eros, vai até Afrodite tentar se redimir e ver se o reencontra, já que, aquilo que provocou um ferimento é também um instrumento de cura. Afrodite, ao encontrar Psiquê, diz o seguinte:
“Parece-me que tu, criada inútil, só podes conquistar teu amante na medida em que trabalhares arduamente, e de nenhum outro modo. […] Separe esse monte por espécies e depois que tiveres feito isso de forma correta, mostra-me a tarefa cumprida até a noite.”
Lúcio Apuleio (124 d.C. – 170/180 d.C.), Eros e Psiquê.
E essa é a primeira das quatro tarefas que Afrodite impõe à Psiquê para se reencontrar com Eros. Todas as quatro tarefas mostram como seria o jeito feminino de lidar com as coisas.
A primeira provação é uma montanha de sementes diversas que devem ser selecionadas antes do começo da noite. Diante desse caos de sementes, Psiquê cede ao desespero até que um exército de formigas — que representam a inteligência coletiva do instinto — executa a tarefa. Aqui o mito ensina que ordenar o excesso das tarefas diárias começa por prestar atenção nas pequenas coisas. A psicoterapeuta junguiana Jean Shinoda escreve que:
“‘Classificar as sementes’ é então uma tarefa interior, que requer que a mulher olhe honestamente para dentro de si, peneire tudo através de seus sentimentos, valores e motivos, e separe o que é verdadeiramente importante daquilo que é insignificante.”
Jean Shinoda, As Deusas e a Mulher.
Na vida moderna, isso se traduz no método que classifica e devolve cada item ao seu lugar — e, sobretudo, no reconhecimento de que a mulher não precisa fazer tudo sozinha. Pedir ajuda às formigas, é usar de ferramentas — planilhas, lembretes, terapia, amigas — para liberar energia psíquica para o que realmente importa.
A segunda tarefa é colher lã de ouro de carneiros violentos que pastam perto de um rio. Se Psiquê fizesse isso à luz do dia, seria despedaçada por eles; mas os juncos próximos ao rio sussurram que espere o cair da noite e recolha, nos arbustos, os fios que ficam presos aos galhos quando os carneiros esbarram neles.
É nessa tarefa que Psiquê continua a desenvolver seu animus. O carneiro é um símbolo de poder masculino. Se Psiquê fosse adquirir a lã através da força bruta, como no mito de Jasão em busca do Velocino de Ouro, ela seria esmagada pela força dos carneiros.
A tarefa ensina que apropriar-se do Logos — a força masculina simbolizada pelo carneiro — consiste em adquirir parte do seu poder, e não ele todo. Jean Shinoda comenta que:
“Simbolicamente, o velo [lã] de ouro representa o poder que a mulher precisa adquirir sem ser destruída na tentativa de conseguir algum. […] Quando a mulher sai pelo mundo competitivo onde outros lutam agressivamente pelo poder e posição, ela pode ficar ferida ou desiludida se não reconhecer os perigos […] mas a mulher, como Psiquê, faz melhor observando, esperando e gradualmente adquirindo poder indiretamente.”
Jean Shinoda, As Deusas e a Mulher.
O mito, então, propõe esse caminho: usar a inteligência lateral, contornar a fúria direta, colher o poder, mas não ele todo, para não perder a suavidade. É a arte de conseguir respeito sem imitar autoritarismo.
A terceira tarefa consiste em encher uma taça de cristal com a água do Estige que, na mitologia grega, é um dos rios que circula o Inferno. Psiquê recebe ajuda da águia de Zeus, simbolizando o discernimento e o foco, que mergulha, servindo-se de apenas uma taça e adverte Psiquê sobre o perigo de enchê-la outra vez.
Eis, então, o aprendizado dessa tarefa: diante das infinitas possibilidades, é necessário escolher uma por vez. Quantas carreiras naufragam não por falta de talento, mas por excesso de cursos, metas e projetos simultâneos? A taça de cristal — frágil e preciosa — é o ego que suporta somente uma porção do mistério que pode transformar sem rachar. Aceitar limites, uma das características do animus positivo, devolve claridade e, paradoxalmente, expande o campo de ação.
Por fim, Afrodite ordena a Psiquê, em sua última tarefa, a descer até o Inferno, para buscar, junto a Perséfone, um cofrezinho que contém um bálsamo da sua verdadeira beleza. Dessa vez é a torre — símbolo da sabedoria cultural — que oferece as instruções.
Psiquê deve dar uma moeda para Caronte, o barqueiro do rio Estige, para ajudá-la a atravessar de barco; ela deve oferecer um pedaço de bolo de cevada para Cérbero, o cão que guarda os portões do Inferno, para distraí-lo enquanto passa; ela precisa recusar ajudar as almas que encontra no caminho até Perséfone, para não se desviar do seu objetivo e, quando chegasse até ela, ela precisaria recusar o excesso de hospitalidade.
Cada etapa ensina que grandes transformações exigem energia concentrada; em especial, o último conselho da Torre, o de recusar o excesso de hospitalidade, significa não se apegar à Perséfone, ou seja, ao inconsciente e à sombra, mas apenas visitá-lo. Depois, quando Perséfone entrega o cofre à Psiquê, ela sucumbe à curiosidade de olhar o seu conteúdo, afinal, ela estava com o segredo da beleza de Afrodite nas mãos. No entanto, desavisada, acaba caindo num sono mortal.
Só que lá do alto, Eros, o animus de Psiquê, se dando conta que sua contraparte adormeceu — desce ao Inferno e a retira do sono mortal, demonstrando que, depois de integrar as provas femininas, é o masculino equilibrado, o animus espiritual da mulher, que sela o final da cura. Robert Johnson continua:
“Eros voa diretamente a Zeus e lhe pede por Psiquê. Recebe dele uma reprimenda porque seu comportamento deixara muito a desejar. Mas também honra-o como seu filho e diz-lhe que vai ajudá-los. Ato contínuo, conclama todos os outros deuses e dá instruções expressas a Hermes para trazer a moça a seu reino. Proclama a todos os habitantes do Olimpo que a tirania do amor exercida por Eros já havia durado o suficiente, e que agora chegara a hora de pôr os grilhões do casamento nesse incendiário.”
Robert A. Johnson, She.
O casal, então, tem um filho que vem a se chamar Voluptas, uma palavra latina para prazer, deixando claro que o encontro do Amor, Eros, com a Alma, Psiquê, gera deleite porque sela a harmonia entre corpo e espírito.
Quando uma mulher vive essas etapas — às vezes por muitas vezes na mesma vida — a beleza que retorna não é a da juventude, mas a da inteireza: ela sabe separar, colher, escolher e se aprofundar.
Quando Afrodite exige tarefas impossíveis, ela não está tentando destruir a jovem; está temperando-a. Cada provação extrai um mineral oculto da alma: discernimento, paciência, coragem e entrega. Essas tarefas são uma prova de que o dia a dia prático vence o dragão da angústia e do desespero.
Muitas mulheres buscam terapia por caírem numa angústia profunda em achar que precisam escolher entre a maternidade e a carreira profissional. Muitas vezes, esse é o dilema da mulher moderna. No entanto, como as tarefas de Psiquê nos mostrou, o melhor caminho do feminino é a vida prática. Robert Johnson conta a seguinte parábola:
“Há uma história persa que ilustra bem esse ponto: um jovem escalou uma montanha e lá no topo descobriu uma caverna, e dentro dela uma pérola de grande valor. Mas a pérola estava sob a pata de um dragão tão grande e ameaçador que ele não viu chance nenhuma de pegá-la. Desgostoso, voltou à sua vida comum e sem grandes motivações. Casou-se, constituiu família, trabalhou e, depois de velho, quando os filhos já haviam saído de casa, viu-se livre novamente e pensou: ‘Antes de morrer, vou voltar à caverna para olhar a pérola pela última vez’. Encontrou o caminho de volta para a caverna, entrou e viu a pérola, linda como antes. Lá estava também o dragão, mas agora tão encolhido que se reduzira a quase nada. Pôde então apanhá-la e levá-la. Sem se dar conta, havia lutado contra o dragão durante toda a vida, dia após dia, através das coisas práticas de sua existência.”
Robert A. Johnson, She.
É possível escolher pela maternidade e depois pela carreira profissional, com o cuidado para que o feminino seja cultivado e a mulher não caia em um embotamento dos próprios sentimentos por desenvolver muito seu lado masculino, voltado para a vida profissional, como escreve Marie-Louise:
“Bem, certamente a mulher deve ser instruída a ter uma carreira, mas ela não deve ficar possuída. Ela não deve ficar arrebatada pela carreira, ou perde sua identidade feminina. Se for capaz de mantê-la, sua profissão acrescenta-lhe uma dimensão espiritual de atividade, inteligência e força de vontade, qualidades essas muito positivas. Ela se torna alguém, uma personalidade. Jung sempre incentivou as mulheres a estudar.”
Marie-Louise von Franz, O Caminho dos Sonhos.
Ao final do mito, a deusa Afrodite, que parecia inimiga revela-se parteira de um feminino mais vasto – um feminino que conhece a própria sombra, honra o próprio desejo e ancora o próprio prazer. É este o convite que o mito faz a cada mulher (e à parte feminina de cada homem).
O mito de Psiquê permanece atual porque ele fala o que acontece sempre e, acima de tudo, mostra que o fracasso momentâneo faz parte do rito; a queda é a curva de uma espiral que a leva de volta a si, só que num patamar mais amplo. Assim preparada, Psiquê pôde finalmente reencontrar Eros como parceira — não como dependente — e, ao unir-se a ele em igualdade, tornar-se ela mesma imortal.
Se há algo que o mito de Eros e Psiquê deixa cristalino é que o feminino não nasce para ser frágil; ele nasce para ser fértil.
Livros recomendados:
O Homem e Seus Símbolos: https://amzn.to/4dVdBSe