Como chegamos na ideia de “ativar” arquétipos?

O psiquismo humano pode ser organizado, para ficar mais claro, em camadas análogas a um relevo geológico. A superfície corresponde à consciência e ao inconsciente pessoal (conteúdos reprimidos ou esquecidos da vida individual). Abaixo desse nível, porém, existe um estrato mais profundo e universal – o inconsciente coletivo –, herdado pela espécie como um verdadeiro “solo comum” sobre o qual cada biografia se edifica.

Nesse solo repousam dois grandes conjuntos de fatores primordiais: instintos e arquétipos.

Instintos — a energia vital herdada

Os instintos são impulsos automáticos que preservam a vida: fome, sexualidade, agressão, cuidado, busca de sentido. Por serem herdados, não resultam da experiência individual; emergem quando determinadas condições internas ou externas os constelam. Jung chama sua base de psicoide: um nível intermédio em que corpo e psique ainda não se separaram por completo, de modo que o instinto é simultaneamente fisiológico (descarga de energia) e psíquico (afetos, atrações e repulsas).

Arquétipos — as formas simbólicas universais

Se os instintos fornecem a força, os arquétipos oferecem a forma. Eles são padrões estruturais inatos que moldam como percebemos, sentimos e imaginamos certas experiências recorrentes (maternidade, morte, herói, sombra, velho sábio). O arquétipo em si é inconsciente e irrepresentável; ele só se revela por meio de imagens arquetípicas – mitos, sonhos, ritos, contos e fantasias – que variam segundo a cultura e a história pessoal, mas preservam um núcleo de significado reconhecível em qualquer época.

A engrenagem corpo-psique

Imagine um rio subterrâneo (inconsciente coletivo) que contém uma pressão hidráulica (instinto) correndo por um leito definido por rochas e curvas (arquétipo). Quando a pressão aumenta, a água procura saídas para a superfície: fontes, nascentes, poços artesianos – estas são as imagens arquetípicas que chegam à consciência. Assim, cada experiência humana é sempre encontro entre

  • impulso energético (instinto) e

  • forma simbólica (arquétipo).

Sem a energia, o arquétipo permaneceria latente; sem a forma, o instinto irromperia de modo cego e caótico.

Exemplo: o cuidado materno

O nascimento de um filho ativa o instinto de proteção. Esse impulso combustiona o arquétipo materno, que oferece modelos simbólicos para significar a experiência: Maria, Ísis, Pachamama, Iemanjá ou, no sonho de uma paciente, “uma mulher luminosa que amamenta”. O sentimento de ternura (expressão corporal-afetiva do instinto) encontra, através do arquétipo, imagens que orientam atitudes, rituais e narrativas sobre o que é “ser mãe”.

Função na individuação

Na psicoterapia analítica, reconhecer essa dinâmica previne dois extremos:

  1. Biologismo – reduzir o comportamento à pura descarga instintiva, ignorando o sentido simbólico;

  2. Intelectualismo – tratar as imagens apenas como ideias, esquecendo a força afetiva que as sustenta.

O trabalho clínico consiste em traduzir a energia instintiva em formas arquetípicas criativas, permitindo que o paciente integre novas possibilidades de consciência em vez de ser possuído por impulsos ou ficar preso a símbolos fossilizados.

Síntese da explicação até aqui

  • Inconsciente coletivo = matriz universal que compartilhamos como espécie;

  • Instintos = corrente vital que brota dessa matriz, pressionando por realização;

  • Arquétipos = moldes estruturais que dão direção e sentido a essa corrente;

  • Imagens arquetípicas = fontes visíveis onde instinto e arquétipo se encontram, traduzindo o universal em expressão cultural e pessoal.

Compreender essa engrenagem corpo-símbolo é essencial para lidar clinicamente – e existencialmente – com a tensão entre nossas raízes biológicas e nossa busca de significado.

A Ilusão da “Ativação” de Arquétipos — Linha do tempo

Com o tempo, a ideia original de arquétipos, profundamente enraizada na psicologia analítica de Jung, foi sendo reinterpretada, simplificada e, muitas vezes, deturpada.

Na visão de Jung, expressa claramente em obras como “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, “A Estrutura da Psique” e “Símbolos da Transformação”, os arquétipos não eram algo que o ego pudesse ativar voluntariamente. Eles emergem, ou como Jung dizia, “se constelam” espontaneamente no inconsciente, especialmente em momentos de crise, crescimento ou transformação interna.

Mas a partir das décadas seguintes, algumas mudanças começaram a acontecer.

Entre os anos 1960 e 1980, figuras como Joseph Campbell, autor de “O Herói de Mil Faces”, e o movimento New Age resgataram o poder dos mitos antigos para propor o “despertar do herói interior”. Surgiram então workshops que falavam em “evocar” ou “invocar” arquétipos — uma sutil mudança de linguagem que começava a sugerir que os arquétipos poderiam ser acessados de forma dirigida.

Em 1984, a psiquiatra Jean Shinoda Bolen, no livro “Deusas em Cada Mulher”, propôs que as mulheres poderiam “reconhecer e desenvolver” arquétipos de deusas internas como forma de empoderamento pessoal. Essa foi a primeira formulação popular da ideia de “trazer um arquétipo à vida” de maneira intencional, plantando a semente para a ideia de ativação.

Poucos anos depois, entre 1990 e 1995, os autores Robert Moore e Douglas Gillette publicaram “O Rei, o Guerreiro, o Mago e o Amante”, explorando os arquétipos masculinos. Em seus retiros, com fogueiras e tambores, difundiram entre os homens a prática de “acessar” energias arquetípicas para amadurecimento. Aqui, o conceito de “ativar arquétipos” começou a se popularizar como prática ritualística.

Em 2001, Margaret Mark e Carol S. Pearson, no livro “O Herói e o Fora da Lei”, aplicaram o conceito de arquétipos diretamente ao marketing. Falaram em “ativar arquétipos de marca” para criar conexão emocional com consumidores. A linguagem simbólica dos arquétipos passou a ser usada para vendas e branding, afastando-se ainda mais da profundidade original de Jung.

No Brasil, no começo do século, popularizou-se a expressão “ativar arquétipos” em massa através de cursos que misturam psicologia com mecânica quântica. Vídeos, e-books e áudios passaram a prometer prosperidade através da “sintonia com arquétipos”, fazendo a ideia viralizar em comunidades de coaching, espiritualidade e autoajuda.

Com a expansão do YouTube e dos podcasts de autoajuda entre 2015 e 2020, surgiram playlists de “áudios subliminares para ativar o arquétipo do Lobo, de Afrodite, do Rei”, muitas vezes prometendo “mudanças em 21 dias”. O termo “ativação” foi se consolidando como uma prática pop, completamente descolada da teoria junguiana.

E finalmente, entre 2021 e 2025, TikTok e Instagram popularizaram ainda mais o fenômeno com hashtags como #activatearchetype, #CleopatraArchetype e #DarkFeminineEnergy. Tutoriais de maquiagem, challenges e rotinas de afirmações passaram a ensinar como “ativar” sensualidade, poder ou mistério através da encenação de arquétipos — especialmente em movimentos como o “Dark Feminine”.

O que começou como um conceito profundo sobre o funcionamento da psique humana tornou-se, em grande parte, um produto de consumo rápido, diluído e comercializado.

Jung, se estivesse vivo hoje, provavelmente ficaria atônito diante de tamanha banalização.

O verdadeiro trabalho com arquétipos, como vimos, não é sobre ativá-los para conquistar objetivos externos.
É sobre reconhecer sua emergência espontânea, integrar seu conteúdo simbólico e permitir que eles nos transformem de dentro para fora — de forma consciente, profunda e autêntica.

A impossibilidade de se “ativar” um arquétipo

Não é possível “ativar” um arquétipo porque ele não é uma imagem, um objeto ou um estado que possamos manipular com a vontade consciente.

O arquétipo é uma estrutura psíquica inconsciente, universal e autônoma — uma tendência de fundo, não uma entidade concreta que possa ser escolhida, controlada ou acionada como quem liga um interruptor.

  • Natureza: o arquétipo é uma potencialidade inata de experiência e representação psíquica, herdada coletivamente.

  • Estado: permanece latente no inconsciente coletivo.

  • Autonomia: atua espontaneamente conforme certas condições internas (emocionais) ou externas (situações de vida) o constelam, sem depender da vontade consciente.

Por que a ideia moderna de “ativar arquétipos” é errônea?

  • Reduz o arquétipo a um produto da vontade ou da técnica (visualizar, meditar, querer encarnar).

  • Ignora a autonomia da psique profunda: o inconsciente coletivo não obedece ao ego.

  • Confunde arquétipo com imagem arquetípica: podemos tentar entrar em contato com certas imagens simbólicas, mas isso não equivale a “ativar” o arquétipo original.

  • Risco de inflação do ego: achar que se pode manipular forças tão profundas gera inflacionamento psicológico, típico de estados dissociativos (o ego acredita que é mais do que é).

 

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