Por que Dostoiévski odiava os intelectuais?

Introdução

“Quanto mais eu tinha consciência do bem e de todo aquele ‘belo e sublime’, mais fundo eu descia no meu lodo e mais capaz eu me tornava de me atolar nele por completo.”

Fiódor Dostoiévski, Memórias do Subsolo.

Você acredita que, um dia, o ser humano pode alcançar a felicidade plena e se livrar de todo o sofrimento aqui na Terra? Você acredita que o ser humano pode alcançar a paz mundial somente através da razão e da ciência?

Se você respondeu que “não” a essas perguntas, então você concorda com o romancista russo Fiódor Dostoiévski, que durante o século XIX, cultivou uma profunda desconfiança dos intelectuais de sua época, e chegou até mesmo a criticá-los e a entrar em conflitos com alguns através das suas obras.

A insatisfação de Dostoiévski perante algumas teorias dessa geração de intelectuais, que negava completamente a religião; que acreditava que o povo precisava ser “iluminado” ou “libertado” por um grupo seleto de pensadores e que a razão era a base inquestionável de todo o progresso, fez com que ele fosse ridicularizado, perseguido e deixado de lado por muitas pessoas que antes o apoiavam.

Retrato de Fiódor Dostoiévski Por Vassilij Grigorovič Perov, 1872
Retrato de Fiódor Dostoiévski (1872), por Vassilij Grigorovič Perov.

Enquanto Dostoiévski tentava considerar a natureza trágica e contraditória do ser humano, bem como sua religiosidade, os intelectuais de sua época pareciam descartar tudo isso e olhavam para o ser humano por uma perspectiva unilateral, pautada unicamente na razão e no progresso, ignorando os conflitos internos que disso poderia decorrer.

Mas para entendermos como Dostoiévski respondeu a esses intelectuais por meio de suas obras e como muitas das ideias da chamada intelligentsia russa permeiam nossas vidas até hoje, precisamos voltar ao início do século XIX, período posterior às guerras napoleônicas.

Contextualização Histórica

A Rússia, até então, vivia em um regime czarista, marcado pela manutenção da autocracia em meio a tentativas de reforma, crises sociais e influências ideológicas vindas da Europa. Esse foi um período de transição, no qual o país enfrentou pressões internas (da servidão à busca por reformas liberais) e externas (guerras napoleônicas, a Guerra da Crimeia, expansão territorial e rivalidades com potências europeias).

A elite russa olhava para os países da Europa, como a França, a Alemanha e a Inglaterra em busca de ideias políticas e filosóficas. Nesse período, os ideais socialistas, tanto revolucionários quanto utópicos estavam ganhando espaço entre os intelectuais de todos os cantos. É nesse cenário que nasce Fiódor Dostoiévski, em 1821.

A Formação de Dostoiévski e o Contato Inicial com as Ideias Socialistas

Dostoiévski, ainda jovem, envolveu-se com círculos de discussão intelectual, influenciados pelas ideias socialistas utópicas e pelo que existia de mais “novo” no pensamento europeu. O historiador e biógrafo Joseph Frank, escreveu em seu livro “Dostoiévski: um Escritor em seu Tempo”:

“[…] tudo o que Dostoiévski publicou durante a década de 1840 trazia a marca de sua aceitação das ideias socialistas utópicas então em voga entre uma parcela considerável da intelligentsia.”

Joseph Frank, Dostoiévski: um Escritor em seu Tempo.

Esses grupos debatiam o futuro da Rússia, sonhavam com reformas profundas e, de certa forma, tentavam imitar as revoluções da França.

No entanto, o governo czarista não tolerava tais atividades. Dostoiévski, então, foi descoberto e preso em 1849 e quase executado, onde passou pela famosa “execução simulada”, uma estratégia em que uma vítima é deliberada, mas falsamente levada a sentir que sua execução ou a de outra pessoa de fato irá ocorrer.

Depois dessa simulação, foi prenunciada sua verdadeira sentença e mandado para os campos de trabalho forçado na Sibéria. Esse episódio traumático mudaria por completo a visão de mundo de Dostoiévski.

A Virada de Dostoiévski contra a “Intelligentsia”

Na Sibéria, Dostoiévski conviveu com criminosos comuns e com camponeses profundos conhecedores das tradições ortodoxas. Esse contato o fez repensar suas ideias. Ao voltar do exílio, ele se depara com a nova geração radical russa dos anos 1860, inspirada por correntes niilistas e materialistas. Então começa o confronto direto entre ele e a intelligentsia, ou seja, a classe dos intelectuais de um país.

Grande parte dos jovens intelectuais negava completamente a religião, vendo-a como atraso. Ele percebeu que a Rússia foi tomada pelo niilismo e pelo materialismo. Dostoiévski, por outro lado, revisitou suas convicções religiosas na Sibéria e acreditava que a fé era parte fundamental da alma russa.

Ele via, nas teorias niilistas, a ideia errônea de que o povo precisava ser “iluminado” ou “libertado” por um grupo seleto de pensadores, e desconfiava do autoritarismo implícito nisso.

Para muitos intelectuais, a razão era a base inquestionável de todo progresso. Já Dostoiévski mostra, em suas obras, que o ser humano é mais complexo do que um simples cálculo racional.

Memórias do Subsolo

Uma destas obras é “Memórias do Subsolo”, publicada em 1864. Nela, Dostoiévski cria um narrador que dialoga diretamente com as ideias racionais e progressistas de seu tempo. O Homem do Subsolo ironiza a crença de que o ser humano agiria sempre em busca de seu próprio interesse racional. Em um momento do livro, o narrador escreve:

“Ora, senhores, o que é, afinal, o homem? Um ser bizarro, com suas paixões e mistérios. Quem vos disse que o homem quer realmente algo sensato e vantajoso?”

Fiódor Dostoiévski, Memórias do Subsolo.

O alvo aqui é justamente a pretensão daqueles que acreditavam poder solucionar todos os problemas humanos com leis científicas e fórmulas sociais. Dostoiévski via nisso uma perigosa subestimação da dimensão espiritual e emocional do homem.

Mesmo que descobrissem pela ciência o que é melhor para o ser humano, de tal maneira que ele não poderia mais escolher aquilo que lhe faça mal, ele ainda daria um jeito de se contrariar, de inventar o caos para provar que estavam errado ao seu respeito, pois, segundo o homem do subsolo, somos seres ingratos por natureza.

Nossa capacidade de se contrariar e de desejar até mesmo aquilo que não é benéfico para nós mesmo é, para o homem do subsolo, nossa única vantagem, é aquilo que nos torna verdadeiramente humanos; em outras palavras, ter livre-arbítrio e desejar até mesmo aquilo que nos faça mal.

O livro “Memórias do Subsolo” foi escrito como uma paródia para responder às ideias de um intelectual da época chamado Nikolai Tchernichévski (1828-1889), que acreditava na teoria do “Palácio de Cristal”, onde, através da ciência, existiria uma sociedade futura, transparente e organizada, em que todos os conflitos estariam resolvidos, porque cada um agiria de forma lógica, e não haveria motivos para a exploração ou a desarmonia. O ser humano, dessa forma, tenderia ao bem comum ao perceber que este bem comum também o beneficiaria, tese essa que ficou conhecida como Egoísmo Racional.

No entanto, Dostoiévski, após sua experiência na prisão e no exílio na Sibéria, retornou ao convívio intelectual profundamente desconfiado desse racionalismo absoluto e das ideias de reforma social baseadas apenas em princípios materialistas.

O personagem do “Homem do Subsolo” criado por Dostoiévski ironiza a tese de que o homem faria sempre o que é “racional” e “benéfico” para si se fosse devidamente instruído.

Ao reduzir a natureza humana a um “cálculo de utilidades”, o egoísmo racional ignora forças como o orgulho, a busca por poder, os impulsos passionais e a vontade humana de simplesmente contrariar.

Para Dostoiévski,

“2+2=4 é uma coisa excelente, mas se nos tornarmos apenas fórmulas matemáticas, deixamos de ser humanos.”

Fiódor Dostoiévski, Memórias do Subsolo.

Essa recusa a se submeter à lógica por si só é, em seu ver, a defesa da dignidade e da unidade complexa do homem. Para Dostoiévski, nossa melhor vantagem é nos contrariar e ter a capacidade de errar e de questionar.

Em resumo, ao criticar Tchernichévski, Dostoiévski não rejeitava a razão nem as reformas sociais por completo, mas afirmava que qualquer teoria puramente racionalista ou materialista ignora facetas centrais da experiência humana, como o livre-arbítrio, a fé, o arrependimento e o valor do sofrimento.

Crime e Castigo

Outra obra de Dostoiévski em que se faz presente uma forte crítica aos intelectuais que defendiam um ser humano puramente racional é “Crime e Castigo”, publicado pela primeira vez em 1866. Nesse período, as ideias utilitárias, materialistas e socialistas estavam em ebulição na Rússia.

O protagonista da obra, Raskólnikov, tenta justificar o assassinato que cometeu sob uma lógica “intelectual”, de que certas pessoas extraordinárias podem transgredir leis morais em nome de um bem maior.

Com essa obra, Dostoiévski questiona se esse tipo de raciocínio — tão elogiado por parte da intelligentsia radical — não ignora a consciência, a compaixão e até mesmo a culpa.

“Crime e Castigo” mostra como as teorias “racionais” podem conduzir a atos extremos e cruéis quando se desligam de qualquer princípio humano ou religioso.

Raskólnikov se julga uma pessoa “superior”, mas percebe que suas teorias falham diante do remorso. Essa tensão expõe a psique humana como algo complexo, que não se reduz a meros cálculos de utilidade ou lógica. Ele tenta, ao longo do livro, provar a si mesmo que pode viver sem culpa, acima das leis morais. No entanto, a culpa o consome ferozmente, revelando que a dimensão moral do ser humano não pode ser simplesmente ignorada.

O romance pode ser lido justamente como uma resposta de Dostoiévski aos radicais russos da sua época, principalmente à Dmítri Píssarev (1840–1868), um dos expoentes mais radicais do niilismo russo, que enfatizava a rejeição total da tradição, das convenções sociais, religiosas e morais, buscando fundamentos unicamente na ciência. Píssarev defendia que as “conquistas científicas” bastavam para gerar progresso. Desdenhava da religião e qualquer tipo de especulação metafísica, chamando-as de “contos de fadas”.

A Confissão, Sir Frank Bernard Dicksee
A Confissão, Sir Frank Bernard Dicksee

Frente a isso, Dostoiévski mostra em “Crime e Castigo” o valor que o caminho da redenção possui na vida das pessoas. Raskólnikov, que começa negando valores cristãos (com sua “teoria do homem extraordinário”), termina admitindo a necessidade do amor, da humildade e do arrependimento. Personagens como Sônia (que é filha de um alcoólatra, obrigada à prostituição para sustentar a família) personificam a fé simples e o sofrimento redentor.

Ela faz uma ponte entre o Evangelho e a culpa de Raskólnikov, encarnando a possibilidade da redenção pela graça. É a partir dessa obra que Dostoiévski começa a deixar seu cristianismo ortodoxo mais aparente, defendendo a ideia de que a verdadeira regeneração do homem passa pela fé e pelo arrependimento.

Os Demônios

Em 1872, é publicado “Os Demônios”, uma das obras mais políticas de Dostoiévski. O romance denuncia o risco de ideias revolucionárias que justificam crimes e violência em nome de um “bem maior”.

A história apresenta dois personagens centrais: Piotr Verkhovénski e Nikolai Stavróguin. Piotr é um agitador revolucionário; embora carismático, é também muito manipulador, que deseja provocar o caos na cidade para demonstrar o poder de suas teorias políticas.

Stavróguin, por sua vez, é dotado de carisma e inteligência, mas, por ser muito confuso quando ao que acredita, é extremamente manipulável.

Dostoiévski, através desse personagem, ilustra como um homem que tem potencial para o bem deixa-se seduzir pela depravação e pelo ceticismo. Ambos os personagens encarnam, de modos distintos, as ideias niilistas que negam valores espirituais e morais em favor de uma suposta “liberdade absoluta”.

Enquanto Piotr tenta envolver diversos habitantes locais em sua conspiração, Stavróguin vive um conflito interno, refletindo os dilemas morais e psicológicos.

As motivações psicológicas de cada personagem mostram quão frágil pode ser uma pessoa diante de ideias revolucionárias, que muitas vezes servem apenas para encobrir ambições pessoais ou um profundo vazio interior.

Segundo algumas leituras, os “demônios” do título são as ideias destrutivas que se abatem sobre a Rússia através dessas correntes ateias, materialistas e niilistas, corrompendo o país como um todo. Para Dostoiévski, a negação da fé cristã e da tradição ameaçavam a própria coesão moral do país.

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Dante e Virgílio encontram Lúcifer (1923), por Henry John Stock.

O romance, embora de forma indireta, também faz uma caricatura das reuniões conspiratórias que aconteciam na russa e das figuras de alguns intelectuais da época que tinham ideais revolucionárias, sendo um deles Mikhail Bakunin (1814–1876), uma das figuras centrais do anarquismo e do socialismo revolucionário no século XIX.

Bakunin pregava que uma insurreição violenta e massiva seria o caminho necessário para derrubar as estruturas estatais e criar uma sociedade livre.

Um de seus lemas famosos, “Destruição como ato criador”, sugere que a derrubada radical das instituições vigentes abriria espaço para a reconstrução de uma comunidade justa e igualitária. Ele acreditava que, sem a derrubada das instituições religiosas e de seu poder moral, não haveria verdadeira emancipação do indivíduo.

Esse aspecto colidia frontalmente com as visões de Dostoiévski, que defendia uma tradição religiosa como elemento vital na coesão social.

Dostoiévski não redigiu tratados críticos especificamente sobre Bakunin, mas “Os Demônios” expressa várias divergências às ideias anarquistas e revolucionários de Bakunin e a outros intelectuais da época.

Isso se deve ao fato de que obra foi inspirada em um caso real que aconteceu na Rússia. Um grupo de revolucionários comandados por Serguei Nietcháiev (1847 — 1882) assassinaram um estudante que estava nesse grupo, acusado de “traição” por querer se afastar das atividades revolucionárias.

Só que Nietcháiev chegou a colaborar com Bakunin na redação de textos e projetos de revolução, dentre eles, a suposta produção do panfleto “Catecismo do Revolucionário”, no qual defendia a ideia de que o revolucionário deveria estar disposto a sacrificar toda a moral, laços pessoais e qualquer escrúpulo em prol da causa. Porém, o assassinato do estudante e os métodos ultraviolentos de Nietcháiev provocaram fissuras até mesmo entre os anarquistas.

Até o próprio Bakunin acabou criticando a conduta de Nietcháiev, que considerava extrema e contraproducente, classificando-o como “muito maquiavélico” nos fins e nos meios.

Embora Dostoiévski não cite Nietcháiev nominalmente em Os Demônios, o personagem Piotr e os conspiradores descritos no romance se inspiram amplamente no caso Nietcháiev, sobretudo na mentalidade de que “o fim justifica os meios” e na disposição de cometer assassinatos para manter a coesão do grupo. No livro, ao retratar atentados, assassinatos e manipulações dentro de um grupo conspiratório, Dostoiévski evidencia como a lógica revolucionária, desprovida de bases morais ou espirituais, pode descambar em tirania.

Embora o livro se situe numa cidade de província russa do século XIX, muitos críticos e historiadores veem nele um presságio das revoluções e tiranias que aconteceriam no século XX — especialmente os regimes totalitários fascistas, nazistas e comunistas.

Conclusão

Dostoiévski tinha uma preocupação genuína com a condição humana e via nos intelectuais ateus e utilitaristas uma perigosa negligência da alma. Ele acreditava que somente a síntese entre fé, tradição e liberdade poderia gerar uma sociedade mais justa — sem cair em fanatismos revolucionários nem em conformismos autoritários.

A crítica de Dostoiévski nos ajuda a entender como ideias belas no papel podem se degenerar em tirania quando descoladas de qualquer senso de humanidade e compaixão.

É por isso que, para alguns leitores, parece que Dostoiévski “odiava” os intelectuais: em suas obras, ele expõe sem piedade o orgulho intelectual que muitas vezes ignora o sofrimento real e a busca interior do ser humano.

The Body of Abel Found by Adam and Eve (c. 1825)
Corpo de Abel encontrado por Adão e Eva (1825), por Willan Blake

Mais do que tudo, podemos dizer que ele odiava o “desprezo” dos intelectuais pela vida autêntica, pela religiosidade do povo e pela natureza contraditória de cada pessoa.

Em resumo, a crítica principal de Dostoiévski aos intelectuais e racionalistas de seu tempo — especialmente aos socialistas utópicos, niilistas e materialistas que ganhavam força na Rússia da década de 1860 — girava em torno da “ilusão de onipotência” da razão.

Em vez de “aperfeiçoar” o homem pela razão, Dostoiévski acreditava na necessidade de uma transformação profunda do coração, algo que, em sua concepção, seria possível por meio do reconhecimento das contradições e angústias pessoais.

A crítica de Dostoiévski, portanto, não era simplesmente “ódio” ao uso da razão, mas sim ao reducionismo intelectual que ignorava a liberdade, a moral e a religiosidade popular — dimensões sem as quais, segundo ele, nenhuma teoria social poderia deixar de se corromper ou de gerar tiranias.

Fica aqui, então, a reflexão: até que ponto as “soluções intelectuais” de hoje também não incorrem em riscos semelhantes? Como equilibrar razão e sentimento, teoria e prática, sem pisotear o que há de mais singular na humanidade?

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