O homem que descobriu a origem do sofrimento — Jung, Dostoiévski e Santo Agostinho
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Certo dia, um homem de meia-idade, que se autodenomina como um homem ridículo, estava caminhando pelas ruas quando decide que, naquela mesma noite, tiraria a própria vida. Ele sente que de repente não fazia a menor diferença que houvesse um mundo ou que não houvesse nada em lugar nenhum. Sua raiva diante do mundo e das pessoas, que até então o consumia, passa a se tornar um sentimento de total apatia em relação ao mundo exterior.
Quando estava a caminho de casa, subitamente, é parado por uma menina que lhe pede para ajudar sua mãe que está prestes a morrer. Só que o homem tenta assustar a garota e pede para deixa-lo em paz. Mas quando chega em casa, já com o revolver na mão, prestes a cometer o ato, é perturbado por uma nova sensação.
Ele se envergonha de ter assustado aquela menina e começa a sentir pena dela e de sua mãe, que estava à beira da morte. O homem ridículo, então, fica confuso, pois como poderia ter sentido vergonha e pena se o mundo perdera o sentido e se em poucos minutos ele mesmo passaria a não mais existir? Nesse momento, lhe pareceu evidente que, enquanto permanecesse vivo, ele poderia sofrer, se zangar ou sentir vergonha pelos seus atos.
Isso levou o homem ridículo a pensar se, caso vivesse na lua em outra vida — ou em Marte — e lá cometesse o mesmo ato estúpido e desonesto que cometera com a menina, fosse expulso por isso e viesse parar no planeta Terra, mas tendo a consciência do que cometeu no outro planeta; mesmo assim tudo lhe seria indiferente? Sentiria a mesma vergonha pelo ato que cometera?
Enquanto meditava sobre tudo isso, sobrepondo raciocínio em cima de raciocínio, de repente adormece em cima da mesa e começa a sonhar. Todos aqueles sentimentos suscitados nele por causa daquela menina são projetados no seu sonho.
Ele, então, se vê em uma espécie de arquipélago paradisíaco. A cor do mar é de um tom de esmeralda, as árvores são altas e muito belas e o seres humanos que habitavam aquelas ilhas viviam em intenso amor uns com os outros, pois apresentavam um nível de sentimento intuitivo que os permitiam se dar bem sem conversarem uns com os outros. Eles se entendiam apenas com os olhares e com o corpo.
Esse conhecimento superior é descrito pelo próprio sonhador como a comunhão totalmente altruísta e amorosa de um com o outro e com tudo que há.
O homem ridículo ficou surpreso, pois mesmo sem a ciência, o progresso e sem o conhecimento racional dos homens da Terra, os habitantes desse paraíso pareciam ser mais felizes do qualquer ser humano. Eles não desejavam nada e mesmo assim permaneciam serenos; não ansiavam por nenhum conhecimento da vida e mesmo assim eram plenos.
Mesmo sem a ciência e o conhecimento, eles sabiam como viver entre si. Os habitantes pareciam não ter nenhum tipo de consciência e, portanto, não manifestavam sentimentos de egoísmo, vaidade ou mesmo de medo diante da morte.
Foi então que o homem ridículo percebeu que estava no paraíso antes do pecado original, quando as pessoas não foram profanas pelo egoísmo e pela vaidade.
Entretanto, quando o sonhador começa a conversar com os habitantes daquele mundo, ele percebe que foi a semente do mal que originou o sofrimento naquele paraíso. Ele foi a causa do pecado original, a serpente que tentou os seres humanos. Com os seus questionamentos e com as suas perguntas, o homem ridículo ensinou os habitantes daquele paraíso a mentir.
Da mentira, passaram para a volúpia, uma sensação intensa de prazer sensual, e então se tornaram egoístas. Do egoísmo, veio o ciúme, do ciúme a crueldade e, da crueldade, a violência. Quando aconteceu o primeiro assassinato, eles se espantaram e começaram a se dispersar e a se separar. Dessa separação, surgiram alianças e jogos de poder. Aqueles que não quiseram se juntar a um determinado grupo foram chamados de inimigos. Desse sentimento de pertencimento perante um grupo nasceu a honra, e cada aliança levantou a sua própria bandeira. Então começou a luta pela separação, pela autonomia e criou-se o sentimento de individualidade pelo que era deles e pelo que era dos outros.
Passaram a falar línguas diferentes e, diante das novas possibilidades que surgiram em decorrência disso, criaram a ciência e o conhecimento. Eles então, se deram conta da noção do mal, e depois que tiveram a consciência do mal, começaram a falar sobre fraternidade, igualdade e liberdade. Quando se tornaram criminosos, conceberam então a justiça e criaram códigos de leis para mantê-la, projetando a guilhotina para se certificarem de que essas leis seriam garantidas.
Chegou um ponto onde os habitantes daquele antigo paraíso se esqueceram totalmente que um dia havia a felicidade plena naquele lugar. Mas, mesmo assim, eles queriam voltar a ser inocentes e felizes novamente, como as crianças são. Então, endeusaram esse desejo e começaram a criar templos e passaram a rezar para a sua própria ideia, ao mesmo tempo que acreditavam na impossibilidade desse desejo se tornar realidade.
No entanto, conscientes que estavam do egoísmo e da vaidade, o homem ridículo perguntou para os habitantes daquele antigo paraíso se, caso fosse possível, e se alguém tivesse a capacidade de fazer com que voltassem àquele estado inocente e feliz do qual ele os privou, eles gostariam de voltar? Um dos habitantes, então, respondeu que, mesmo conhecendo sobre a inveja, a mentira e a vaidade, eles também tinham a ciência, e por meio dela encontrariam a verdade novamente, e que não precisavam de ninguém onipotente e misericordioso que os julgassem por seus atos.
Foi então que o homem ridículo percebeu a imensa reviravolta no modo como os habitantes daquele antigo paraíso pensavam. Eles passaram a amar mais a consciência sobre a vida do que a própria vida. Amavam mais o entendimento do que o sentimento. Amavam mais a ideia de saber sobre como ter uma vida feliz do que ter uma vida feliz de fato.
O desespero tomou conta do homem ridículo, afinal, foi ele quem começou tudo aquilo. Culpado, o homem ridículo pediu para que o pregassem numa cruz e que o deixassem tomar todos os sofrimentos dos seres humanos para si mesmo. Mas tudo o que os outros fizeram foi rir da cara dele e dizer que não mais acreditavam nessa coisa de redenção. Por fim, anunciaram para o homem ridículo que ele estava se tornando um perigo para eles, mas que não o crucificariam, mas em vez disso o levariam para um manicômio. Foi aí que o homem ridículo acordou e seu sonho sumiu.
A partir daquele momento, ele perdeu completamente a vontade de tirar a própria vida e passou por uma grande transformação. Seu novo objetivo na vida era combater aquela ideia que ouviu no sonho, a de que a consciência da vida era superior à vida, de que o conhecimento da felicidade era superior à felicidade.
Essa história que eu acabei de contar é um resumo do conto Sonhos de Um Homem Ridículo, escrito por Dostoiévski e publicado em 1877. Nesse conto, Dostoiévski nos mostra um lado sombrio do despertar da consciência humana.
À medida que o ser humano foi se tornando mais individuado, isto é, tendo consciência da sua individualidade e se viu como alguém separado de um grupo, sua autoconsciência acabou gerando o egoísmo, e o egoísmo deu origem a um mundo onde as instituições que foram criadas expressam a tentativa de recriar artificialmente tudo aquilo que o ser humano perdeu após tornar-se consciente das próprias perdas ocasionadas pelo despertar da consciência.
Antes da consciência, amávamos sem saber o que era o amor; ajudávamos sem saber o que era a caridade; e vivíamos em tranquilidade sem saber o que era a felicidade. O conhecimento dessas ações fez com que passássemos a nos interessar mais pela consciência de tê-las do que realmente vivê-las.
O despertar da consciência começou quando o ser humano rompeu sua identificação inconsciente e instintiva com o seu grupo, há milhares de anos atrás. Durante grande parte da história da humanidade, os seres humanos viviam em um estágio primordial, isto é, a consciência de cada ser humano era uma só com sua tribo e com a natureza. O mundo era uma Grande Mãe, que representa justamente esse estado de fusão entre o eu e o mundo.
Esse estágio é também comparado ao período inicial da infância e às culturas arcaicas que viviam em comunhão com a natureza. O símbolo do uroboros, a serpente que morde a própria cauda, é uma representação dessa totalidade indiferenciada, indicando um ciclo de permanência inconsciente. A consciência começa a emergir quando o ego luta para se diferenciar do inconsciente.
Aqui passamos a ter a figura do herói, que é justamente aquele que venceu as forças do inconsciente, geralmente simbolizada por um dragão. A jornada do herói, que é descrita pelo mitólogo do século XX chamado Joseph Campell, representa o confronto do ego desperto com suas próprias forças psíquicas, que tentam impedir sua autonomia e sua diferenciação, fazendo-o permanecer inconsciente.
Mas com o despertar da consciência, as dificuldades atreladas a ela também começaram a surgir. Duas das principais dificuldades são a inflação do ego e o desenvolvimento unilateral da personalidade. A inflação do ego é um estado psíquico em que a consciência se expande de maneira exagerada e passa a ter um senso exagerado de importância, de poder e grandiosidade. É o que aconteceu quando o homem ridículo, em seu sonho, fez com que os seres humanos se tornassem egoístas e orgulhosos, passando a adorar as próprias teorias sobre viver a vida do que viver a vida de fato.
Essas inflações do ego também foram representadas ao longo da história através dos mitos, como, por exemplo, no mito de Ícaro. Quando o pai de Ícaro constrói asas de argila para escaparem do Labirinto, Ícaro, tomado por uma sensação de onipotência ocasionada pelas asas — que simbolizam a liberdade —, se aproxima demais do sol, o que faz com que elas derretam e Ícaro caia no mar.
Não só nos mitos, mas a inflação do ego pode ocorrer com artistas e intelectuais que, ao acessar as imagens do seu inconsciente e observarem o que ninguém observou, se sentem “acima dos demais”; com líderes autoritários que se veem como salvadores da humanidade e assim por diante.
A outra dificuldade que advém do despertar da consciência é o risco do desenvolvimento unilateral da personalidade. Carl Jung descreve essa dificuldade como um processo em que um indivíduo se identifica excessivamente com um aspecto específico da psique, negligenciando outras partes essenciais dela.
Isso leva a um desequilíbrio psíquico, pois a individuação — que Jung considera o objetivo do desenvolvimento psicológico, ou seja, a integração de todas as partes da nossa psique — requer a compreensão de todos os nossos lados, incluindo o inconsciente e a nossa parte destrutiva e negligenciada.
Exemplos desse desenvolvimento unilateral pode ser encontrado na figura do intelectual rígido, que valoriza apenas a lógica e descarta emoções, arte ou espiritualidade, tornando-se frio e desconectado dos outros.
Mas o desenvolvimento unilateral também está naquele que busca apenas experiências místicas, que diz que tudo na vida é simbólico, que negligencia a realidade prática, o que pode levá-lo a ilusões ou fanatismos. O famoso workaholic também é outro exemplo, um indivíduo que se identifica apenas com sua carreira, ou seja, sua persona, e ignora a vida emocional e social, podendo entrar em colapso psicológico quando perde o emprego.
O pensamento unilateral é denunciado no conto de Dostoiévski quando os seres humanos passam a perder cada vez mais o senso intuitivo, dando primazia à razão. Essa capacidade intuitiva, isto é, a capacidade de entender e identificar sensações e coisas sem depender da razão e das evidências, era justamente aquilo que estava em pleno vigor quando os homens viviam no paraíso.
Eles amavam sem precisarem saber o que é o amor fraterno. Quando a intuição e a sensação foram deixadas de lado e os homens se voltaram unicamente para a razão e para o pensamento, ocorreu o caos e a desordem na humanidade. Quanto maior a tendência unilateral da consciência, maior será a compensação do inconsciente, na tentativa de equilibrar a psique, que poderá manifestar-se como resistência, perturbação funcional e até como uma neurose.
Quanto mais o ego insiste em seguir uma atitude unilateral, mais o inconsciente tentará compensar essa falta de equilíbrio, mas já que essa compensação é inconsciente, ela se manifestará por caminhos dos quais não temos controle.
Nesse sentido, tudo que é incompatível com a atitude consciente será jogado para o inconsciente e formará o que Carl Jung chama de sombra. A sombra representa os aspectos reprimidos ou desconhecidos da psique. Pelo fato de serem desconhecidos, pode causar um certo medo ao tentar confrontá-los. E quando não estamos conscientes desse potencial sombrio que existe dentro de nós, a tendência é projetar esses conteúdos no mundo, julgando-os como vindos de fora.
E foi isso que o homem ridículo fez durante o sonho. Com sua arrogância, não percebe que carrega dentro de si o potencial destrutivo que acabará contaminando o mundo paradisíaco para onde é levado. Desse modo, sua própria sombra— isto é, o seu pessimismo, o orgulho e a descrença—projeta-se sobre a sociedade inocente, levando-a à degradação moral.
Embora a sombra seja uma parte inata do ser humano, a grande maioria de nós é deliberadamente cega em relação à sua existência. Escondemos nossas qualidades negativas, não apenas dos outros, mas de nós mesmos. Para fazer isso, muitas vezes criticamos e condenamos os outros para garantir que nosso foco não caia em nossas próprias falhas e tendências destrutivas, ou seja, nós projetamos nos outros nossas próprias falhas.
Aqueles que dependem muito dessa projeção para protegê-los de sua sombra, passam a vida inteira procurando bodes expiatórios ou pessoas a quem culpar. Só que isso pode extrapolar para o nível coletivo, já que a sombra não pertence apenas ao indivíduo, mas também ao inconsciente coletivo, que contém os aspectos reprimidos de uma cultura ou de uma civilização inteira.
Quando uma sociedade projeta seus medos e defeitos em um inimigo externo (um grupo étnico, político ou religioso), isso pode levar à perseguições e à criação de uma justificativa para a violência, como aconteceu em boa parte do século XX, durante a ascensão dos regimes totalitários, que procuravam bodes expiatórios para justificar a causa dos seus massacres.
Jung argumenta que a guerra é um sintoma do fracasso da humanidade em integrar sua própria sombra. Em vez de reconhecer os impulsos destrutivos dentro de si mesma, a civilização projeta esse mal no outro e o combate com violência. Quando as pessoas se identificam cegamente com um movimento político ou ideológico, deixam de refletir criticamente e projetam seus medos na figura de um “inimigo”, permitindo atrocidades que jamais cometeriam individualmente.
Ter consciência da nossa sombra é o primeiro passo para evitar sua projeção, assim como aconteceu com o homem ridículo, que disseminou a destruição e o caos na terra por não reconhecer que a própria destruição estava dentro dele. Mas a sombra não é constituída apenas de material destrutivo, ela é também o reservatório de tudo que está inconsciente em nós.
A sombra é a chave para descobrir a nossa criatividade e para construir mais confiança diante das situações que tememos, pois tudo que nos causa medo é parte da nossa sombra, e devemos olhá-la para compreender esses medos.
Muita raiva, por exemplo, obviamente pode ser destrutiva, no entanto, quando é canalizada adequadamente, pode nos dar a capacidade de aprender a dizer não, colocar limites saudáveis e nos fornecer a coragem de acabar com relacionamentos desgastantes.
Ao despertar do sonho, o homem ridículo passa por uma verdadeira transformação. Ele conseguiu integrar sua sombra e se tornar consciente do seu lado sombrio. Ele, então, tem um momento de insight profundo — ele percebe sua responsabilidade moral perante sua própria vida e decide dedicar-se ao bem. Esse é o estágio final do processo de individuação descrito por Jung, que é quando o indivíduo supera a fragmentação interna e encontra um propósito de vida autêntico.
No final, todos nós tendemos para o Bem, mas como nossas paixões e nossa vontade, ao longo da vida, podem se encontrar desordenadas, podemos tentar perseguir algum mal achando que é um bem.
Nesse sentido, o homem ridículo entendeu que o pecado instaurado no mundo por ele dependeu da sua má vontade, isto é, da sua vontade desordenada, da sua sombra mal integrada na sua consciência. Esse conceito converge com a explicação de Santo Agostinho sobre a origem do mal moral no mundo.
A vontade humana tende sempre para o Bem porque os homens foram criados por Deus, e tudo que é feito por Deus é bom. Mas, como existem muitos bens criados, e que por sua vez são bens finitos, a vontade pode tender para eles e, subvertendo a ordem hierárquica, pode dar mais importância para as coisas mundanas do que para Deus, preferindo os bens inferiores aos bens superiores.
Dessa forma, o mal no mundo deriva do fato de que não há um único Bem, mas muitos bens, o que nos leva a uma escolha muitas vezes incorreta sobre eles. O mal moral, isto é, nossos pecados, deriva de uma escolha de um bem inferior ao invés de um bem supremo. Nosso livre-arbítrio, por exemplo, é um grande bem.
Ele que nos dá a capacidade de amar sem ser coagido por isso; que nos permite escolher o mal mesmo tendo conhecimento sobre o bem. O mal moral criado por nós é, portanto, um mau uso desse grande bem, do livre-arbítrio.
No entanto, à medida que tivermos consciência da nossa sombra, vamos cada vez mais educando nossa vontade, percebendo que os nossos vícios e nossas tendências reprimidas são justamente aquilo que é responsável por desordena-la, e assim, vamos conseguir direcionar nossa atitude para uma vida cada vez mais significativa.
E essa vida significativa pode se expressar de diversas maneiras: seja se dedicando a um trabalho, seja por amor a uma pessoa, seja encontrando um sentido em um sofrimento inevitável, seja se voltando para Deus.
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