Efeito Tinder: o problema do amor moderno
Transcrição do vídeo
“[…] as paixões que consomem se consomem depressa; o amor se enfraquece ao se multiplicar, fragiliza-se com o tempo. Os encontros que fazem nascer um novo amor matam o antigo. Os casais se desfazem, outros se formam, novamente se desfazem. O mal da instabilidade, da pressa, da superficialidade se instala no amor e reintroduz nele o mal da civilização que o amor rechaça.”
Edgar Morin, Terra-pátria.
Os eventos que ocorreram durante os três últimos séculos refletiram uma crescente desesperança de tentar modificar a sociedade, ou até mesmo tentar entende-la. Passando pelo enfraquecimento dos valores tradicionais que fundamentavam a civilização e pelos massacres da Revolução Francesa no século XVIII; da exploração da mão de obra e da crença cega no progresso a partir do século XIX; das Guerras Mundiais e dos genocídios causados pelos regimes totalitários do século XX, o ser humano foi perdendo cada vez mais a esperança na humanidade e se voltando para preocupações puramente pessoais.
O estilo de vida centrado somente em interesses materiais, no dinheiro e no sucesso a qualquer custo, ironicamente, acaba nos empobrecendo de diversas maneiras. O que vemos hoje, é a crescente perda do senso histórico que nos conectava a uma comunidade e nos oferecia algum senso de direção e propósito. O historiador americano do século XX Christopher Lasch escreve que:
“Viver para o momento é a paixão predominante — viver para si, não para os que virão a seguir, ou para a posteridade. Estamos rapidamente perdendo o senso de continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se prolongarão no futuro.”
Christopher Lasch, Cultura do Narcisismo.
O psiquiatra austríaco e criador da logoterapia Viktor Frankl, percebeu que a sensação da falta de sentido ocasionada pelas circunstâncias econômicas e sociais do século XX fizeram as pessoas perderem quase que totalmente a vontade de fazer planos para o futuro:
“Na última guerra, o homem aprendeu, por necessidade, a viver um dia de cada vez, sem saber se veria o próximo amanhecer; mas desde a guerra essa atitude de efemeridade permaneceu conosco, e em nossos dias atuais parece justificada pelo medo da bomba atômica. […] Elas desistiram da ideia de planejar com muita antecedência ou de organizar a vida em torno de um propósito definido.”
Viktor Frankl, A Falta de Sentido.
A crença de que a sociedade em que vivemos não tem futuro, somada com a descrença cada vez mais dominante provocada pelo enfraquecimento das religiões e de um sentido para a vida, nos leva a fixar nossos olhos em nossos próprios desempenhos particulares, nos preocupando cada vez mais com nosso bem-estar físico e material.
Uma das previsões de Nietzsche em seu livro, Assim Falou Zaratustra, era de que, com a queda dos valores transcendentais que fundamentavam a sociedade ocidental, como a crença em um Deus único, em uma verdade absoluta e um fim último para todas as coisas, a saúde e o bem-estar ocupariam o lugar desses valores arruinados:
“Venera-se a saúde. ‘Descobrimos a felicidade’ – dizem os últimos homens e piscam os olhos.”
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra.
Mas é claro que essa mudança de perspectiva na sociedade gerou transformações em muitas outras áreas da nossa vida, e fez com que mudássemos até mesmo nosso conceito sobre o amor e o que é amar. Em um mundo cada vez mais centrado no eu, o amor está sendo visto como uma questão de utilidade, uma mercadoria e um objeto de consumo.
Ao amar, não estamos pensando mais no outro, mas em nós mesmos; estamos amando pensando no que isso vai nos beneficiar, no que isso será útil para nós. O amor está deixando de ser um encontro com o outro e se tornando apenas um reflexo do próprio ego, uma maneira de tentarmos encontrar no outro aquilo que está nos faltando.
E essas transformações no amor são analisadas pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em seu livro A Agonia do Eros. Ao longo do livro, Byung apresenta as manifestações de uma sociedade que está perdendo cada vez mais a capacidade de enxergar o outro como uma alteridade, isto é, como uma pessoa dotada de características que fazem elas serem elas mesmas e não um outro eu. Ele escreve:
“O sujeito [centrado no eu], ao contrário, não consegue estabelecer claramente seus limites. Assim, desaparecem os limites entre ele e o outro. O mundo se lhe afigura como sombreamentos projetados de si mesmo. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade. Ele só encontra significação ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo. Vagueia aleatoriamente nas sombras de si mesmo até que se afoga em si mesmo.”
Byung-Chul Han, A Agonia do Eros.
É importante também destacar uma coisa. Byung-Chul Han, ao mostrar a crise que os relacionamentos interpessoais estão passando, não está dizendo para voltarmos ao passado e a como as coisas eram antes. Essa é uma falsa dicotomia. Não é porque a modernidade apresenta problemas que a solução necessariamente está no retorno acrítico a certas ideias do passado.
Da mesma forma, não é porque a sociedade está ficando cada mais individualista que a solução seja a completa abdicação do eu em prol do outro, em um completo altruísmo esparramado. Uma coisa não precisa excluir a outra.
Mas o fato é que as relações interpessoais estão mudando. Se antes, as críticas relacionadas ao amor eram, em sua maioria, baseadas em torno de dinâmicas de poder, como os inúmeros casamentos arranjados, hoje, o amor se tornou uma espécie de mercadoria, um objeto de consumo que visa ser usado para proveito próprio.
O tipo de amor que Byung-Chul Han se refere no livro é o Eros. Eros deve ser entendido justamente como alteridade, como uma atração que o outro exerce sobre nós. Eros pode ser o amor romântico, ou seja, o desejo que sentimos por outra pessoa, não só no aspecto físico, mas no que diz respeito ao ser da pessoa. Eros é a capacidade de experimentar o outro por aquilo que o outro é.
Na mitologia grega, eros era uma força metafísica responsável por ligar duas coisas distintas para formas uma terceira, ao contrário do caos, que separa e divide as coisas. Eros é responsável por unir. Ele une duas ideias para formar uma terceira, ou duas pessoas para formar uma outra. C. S. Lewis, no seu livro, Os Quatro Amores, nos dá uma ideia concisa sobre o Eros:
“Em Eros a necessidade, em seu nível mais intenso, vê mais intensamente o objeto como algo admirável em si mesmo, com uma importância que ultrapassa em muito sua relação com a necessidade do amante. […] Sem Eros, o desejo sexual, como qualquer outro desejo, é um fato sobre nós mesmos. Com Eros, é um fato sobre o amado.”
C. S. Lewis, Os Quatro Amores.
A crise do Eros, então, diz respeito justamente em estarmos perdendo esse desejo pelo outro simplesmente por ele ser um outro, e de tentarmos o transformar em uma peça que está faltando em nós. É possível perceber essa transformação do outro em mera utilidade no livro a Metamorfose, de Franz Kafka. No conto, o protagonista Gregor Samsa só era amado enquanto conseguia ser útil à sua família.
Em um dia, ao acordar, percebeu que tinha se transformado num inseto gigante. A transformação de Gregor pode ser interpretada como sendo a visão da família de que ele foi se tornando um fardo, possivelmente depois que Gregor ficou depressivo, pois a metamorfose pode ser uma metáfora para a depressão.
Voltando ao A Agonia do Eros, uma das causas da transformação na percepção do amor que Byung-Chul Han aponta, é devido ao excesso de possibilidades que temos hoje em dia:
“Hoje, o amor estaria desaparecendo por causa da infinita liberdade de escolha, da multiplicidade de opções e da coerção de otimização. Num mundo de possibilidades ilimitadas, o amor não tem vez.”
Byung-Chul Han, A Agonia do Eros.
Byung interpreta os relacionamentos atuais como um fator econômico. Devido as inúmeras possibilidades disponíveis para conhecer pessoas, ainda que não venhamos a ter o poder da escolha de fato, mas a mera possibilidade de escolha, fazemos uma lista de características desejáveis que queremos encontrar em um parceiro, reduzindo a relação a uma questão de custo-benefício.
A maior facilidade de acesso reduz o comprometimento que temos com aquilo. Dessa forma, pela facilidade que temos hoje em conhecer pessoas, se torna possível simplesmente ignorá-las quando elas não nos agradam em pelo menos alguma daquelas características da lista. Aplicativos de namoro, como o Tinder, por exemplo, podem causar um imenso sofrimento psicológico devido ao excesso de possibilidades. Muitas vezes, ter mais opções de escolha não nos torna mais livres.
A liberdade pode ser coercitiva a partir do momento em que não conseguimos escolher nenhuma em detrimento do excesso, pois fazemos um jogo comparativo onde vamos pensar estar perdendo alguma coisa por termos escolhido outra. Assim, uma simples desmotivação durante a conversa com uma pessoa que demos match em um aplicativo de namoro pode ser motivo suficiente para perdermos o interesse por ela e irmos em busca de uma outra. Byung-Chul Han mostra que o verbo modal “tu podes” é mais repressivo que o “tu deves”.
“O tu podes gera coerções massivas nas quais, via de regra, o sujeito de desempenho se fragmenta. A coerção autogerada lhe parece ser liberdade, de tal modo que ela não é reconhecida como tal. O tu podes exerce inclusive mais coerção do que o tu deves. A autocoerção é muito mais fatal do que a coerção alheia, pois não é possível haver nenhuma resistência contra ela. Por trás da aparente liberdade do indivíduo singular, o regime neoliberal escode uma estrutura coercitiva.”
Byung-Chul Han, A Agonia do Eros.
Apesar de conseguirmos ter relacionamentos através dos aplicativos de namoro, o fato é que eles não foram feitos para isso, por mais paradoxal que isso pareça. Se o objetivo dos aplicativos de namoro fossem o de formar casais, eles acabariam não lucrando nenhum pouco com isso. O objetivo é manter você preso ao aplicativo o máximo de tempo possível.
Eventualmente, você acabará comprando algum pacote que te permita impulsionar o seu perfil para mais pessoas ou aumentar a visibilidade dele. Inúmeros são os relatos de pessoas que instalaram e desinstalaram algum aplicativo de namoro diversas vezes, sempre na expectativa de que na próxima vez seria diferente.
Mas o fato é que essas pessoas não estão mais procurando outras pessoas para se relacionarem, pelo menos não diretamente, mas estão em busca de uma descarga de prazer para se sentirem desejadas ao conseguirem alguns matches. Ou seja, volta ao que Byung está nos mostrando: o eros não é mais sobre o outro, mas sobre nós mesmos. A multiplicação das possibilidades torna a pessoa tão efêmera que cria uma crescente indiferença em relação aos outros.
Hoje, por exemplo, alguém pode ver mais pessoas em um dia do que um camponês no século XVIII viu em sua vida inteira. O historiador francês George Minois escreve que:
“Quanto mais a sociedade desenvolve possibilidades de encontros, mais os indivíduos se sentem sozinhos; quanto mais as relações se tornam livres, emancipadas de velhos constrangimentos, mais rara se torna a possibilidade de vivenciar uma relação intensa. Em toda parte encontramos solidão, vazio, dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si mesmo; daí uma corrida desenfreada às ‘experiências’ que apenas traduzem esta procura de uma ‘experiência’ emocional forte.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
Hoje, as possibilidades passam diante de nós com tal velocidade que ultrapassa nossa capacidade física de registro e nossa capacidade psíquica de empatia. Essa rapidez com que as informações são disponibilizadas para nós é devido à lógica de consumo que rege o mundo atual.
Ao privilegiarmos o ter ao invés do ser, muito rapidamente acabamos numa ruptura de laços sociais, pois, em uma sociedade consumista, o amor só pode ser comprado se ele atender alguma necessidade do comprador. Ao pensarmos no amor como um produto, eliminados sua negatividade, isto é, aquele fardo que estaríamos dispostos a carregar ao aceitar as falhas e as imperfeições do outro.
A ausência de negatividade transforma o amor num objeto de consumo e o reduz a um cálculo hedonista. Ele só é útil enquanto atender aos meus desejos. O que se busca é o confortável, aquilo que já é igual a nós, que nos causa prazer, eliminando toda a negatividade que o outro possa ter. Byung escreve:
“Evita-se toda e qualquer negatividade, todo sentimento negativo. Sofrimento e paixão dão lugar a sentimentos agradáveis e excitações sem maiores consequências. Na era da ‘rapidinha’, do sexo oportunista e do sexo relaxante, também a sexualidade perde toda e qualquer negatividade. Hoje permanecemos iguais e no outro só se busca ainda a confirmação de si mesmo.”
Byung-Chul Han, A Agonia do Eros.
Os relacionamentos estão se destruindo porque só o que estamos querendo dele é a sua positividade, isto é, aquilo que nos causa bem-estar. Estamos com o outro apenas enquanto ele nos reflete. A negatividade do outro é sua alteridade, ou seja, aquilo que nele é diferente de nós. Mas estamos eliminando cada vez mais a negatividade, a alteridade do outro, porque estamos cada vez mais intolerantes a dor e ao sofrimento.
A busca pela autorrealização e pela autoafirmação que começou na metade do século XX, ocasionada pelo declínio da religião e dos ideais coletivos, justifica a ascensão das práticas psicoterapêuticas e pela busca do bem-estar. De forma geral, a desesperança no futuro provocou também uma erosão nas ideias transcendentais, como a crença em um paraíso pós vida e uma comunhão com Deus após a morte.
Dessa forma, as pessoas se voltaram somente para às causas materiais e imediatas, isto é, o cuidado excessivo com o corpo, a preocupação maçante com a felicidade e a busca desenfreada por independência. No entanto, esse retraimento para a esfera do eu também se tornou um poderoso fator que aumentou a sensação de solidão, como apontou o historiador George Minois:
“Psicologicamente perturbado, o Ego investe cada vez mais no corpo, e com isso aumenta a sua solidão: obcecado pela sua saúde, pela sua higiene, pela sua linha, pela sua beleza, pelo seu olhar, o corpo designa a nossa identidade profunda. […] Na verdade, o espírito de independência […] é muitas vezes apenas uma camuflagem, a maquilhagem de uma solidão tanto maior quanto esconde, que não ousa confessar, por orgulho e medo de revelar suas fraquezas.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
E aqui é importante fazer uma distinção entre paixão e amor. A paixão é um desejo intenso por si mesmo, porém esse desejo é projetado em alguém. Quando nos apaixonamos por uma pessoa, na verdade estamos projetando as características inconscientes do nosso lado masculino ou feminino na outra pessoa, dependendo do sexo da pessoa que está apaixonada.
A paixão não permite que vejamos a outra pessoa como ela é, mas a partir dos nossos ideais de relacionamentos. Na literatura, temos o exemplo do Werther, do livro Os Sofrimentos do Jovem Werther. Quando Werther se apaixona por uma jovem chamada Charlotte, ele perde completamente o senso da realidade e do que seria o razoável para um relacionamento. Sua paixão se torna obsessão quando Charlotte se casa com outro homem e Werther se vê impossibilitado de tê-la para si.
É nesse momento que fica claro que a paixão é um sentimento egoísta. Werther, tomado pela paixão, busca tudo para si; sofre porque não consegue que as coisas sejam do seu jeito. Ele não consegue o objeto da sua paixão. Aqui, vemos também que a paixão não deixa de ser um sentimento inconsciente da busca por poder. Queremos que o objeto da nossa paixão aja de tal forma que atenda às nossas necessidades inconscientes. Queremos fazer do outro uma cópia de nós mesmos.
Queremos possuir o outro, como um produto que pode ser comprado. No livro o Morro dos Ventos Uivantes, essa possessão ocasionada pela paixão fica clara quando Catherine diz que ela é Heathcliff, o homem por quem ela se apaixonou. É por isso que muitos relacionamentos acabam quando a paixão de um dos enamorados também acaba. Aquele fascínio da nossa própria imagem projetada no outro é dissolvida, e quando passamos a enxergar a pessoa como ela realmente é, vamos dizer que ela mudou ou que não é mais a mesma do começo do relacionamento.
Mas, na verdade, ela não mudou, foi a cegueira da paixão que impediu de olharmos para o outro em sua alteridade. Por outro lado, é essencial expandirmos nossa consciência e compreendermos que a paixão está intrinsecamente ligada ao desejo de poder. Sua presença em nossa vida não é por acaso; ela nos oferece a oportunidade de reconhecer, de maneira consciente, essa busca por controle que carregamos internamente. A partir desse entendimento, podemos ressignificar nossas relações, transformando-as em escolhas mais autênticas e direcionadas ao amor.
Nesse sentido, o amor é uma escolha, uma atitude deliberada que nos faz renunciar ao poder da paixão e de tentar mudar o outro com base nas nossas próprias projeções. Pois o amor nos faz enxergar a pessoa como ela é, e a gostarmos dela justamente por causa da sua alteridade, isto é, apesar da sua negatividade, das suas falhas e dos seus defeitos, escolhemos estar do lado dela. Para Jung, o oposto do amor é justamente o poder, e não o ódio. Ele escreve:
“Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro”
Carl Jung, Psicologia do Inconsciente.
Numa sociedade da positividade, ou seja, de buscar só o bem-estar e a felicidade, as pessoas se veem no direito de ficarem felizes o tempo todo; pensam que, se o outro não atender suas necessidades a todo instante, já é motivo suficiente para se ver como alguém infeliz ao lado dele.
Não é à toa que a pornografia é um dos principais problemas da sociedade atual no que diz respeito aos relacionamentos. A pornografia nada mais faz do que transformar o outro em um objeto de consumo fácil e prático. Nela, não há dificuldades ou barreiras que precisam ser enfrentadas como em um relacionamento convencional, basta escolher um vídeo que satisfaça.
Isso volta àquilo que George Minois escreveu sobre a procura de experiências emocionais fortes. À medida que consumimos mais conteúdo pornográfico, ficamos dessensibilizados aos estímulos que eles proporcionam, o que nos leva a procurar conteúdos cada vez mais esdrúxulos e intensos na intenção de sentir aquela descarga de prazer que sentimos pela primeira vez.
Enquanto os homens que são viciados em pornografia, em sua maioria, tendem a procurar por estímulos visuais, as mulheres viciadas em pornografia, em sua maioria, procuram por estímulos nos livros de fantasias eróticas, os chamados dark romances, pois despertam sua capacidade imaginativa, fazendo com que elas se sintam naquelas situações que as histórias proporcionam, causando um experiência sensorial intensa.
O problema é que a pornografia descola a pessoa da realidade. Os estímulos oferecidos por ela são irreais e inalcançáveis em relações reais. Isso pode levar a conflitos nos relacionamentos e até mesmo a uma certa dificuldade de encontrá-los devido ao nosso imaginário conturbado ocasionado pela pornografia.
Mas a pornografia não diz respeito somente ao prazer. Byung-Chul Han interpreta a pornografia também como excesso de exposição. Tudo o que é desnudado perde o mistério. O outro está deixando de ser um mistério devido ao excesso de imagens que temos hoje em dia a nossa disposição. Ele escreve:
“O capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo e exibindo tudo como mercadoria. Ele não conhece nenhum outro uso da sexualidade. Profana o eros em pornografia. O mundo torna-se cada vez mais desnudo e obsceno. O amor, que hoje deve ser ainda apenas calor, intimidade e excitação agradável, está apontando para a destruição do erotismo sagrado.”
Byung-Chul Han, A Agonia do Eros.
Byung chama essa exposição de sociedade da transparência. Ao retirarmos o mistério do outro, ele se torna indiferente a nós. Mas isso não se resumo a imagens sexualizadas. Hoje, o excesso de exposição nas redes sociais torna as pessoas transparentes, sem mistério e conteúdo. A intimidade está sendo perdida, pois o que se torna transparente também se torna indiferente. O psiquiatra britânico Theodore Dalrymple escreveu algo a respeito disso:
“Aquilo que é inerentemente íntimo, e isso quer dizer autoconsciente e humano, não pode ser falado abertamente: a tentativa produz somente grosseria, e não verdade. A irreverência é o tributo que nosso instinto paga à intimidade. Se você vai além dessa irreverência, rasgando todos os véus, você encontra a pornografia, e nada mais.”
Theodore Dalrymple, Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela.
Em outro trecho, ele diz o seguinte:
“[…] ninguém percebeu que a perda do sentido de vergonha significa a perda da privacidade; e que a perda da privacidade significa a perda da intimidade; e que a perda desta última produz a morte da profundidade. Com efeito, não existe maneira mais eficiente de produzir pessoas rasas e superficiais do que as deixar viver vidas completamente expostas, sem a ocultação de nada.”
Theodore Dalrymple, Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela.
A vulgaridade, em outras palavras, destrói a identidade e a intimidade do indivíduo. E hoje, somos bombardeados com imagens vulgares de celebridades, influenciadoras e influenciadores digitais expondo suas vidas nas redes sociais. Não só isso, mas a promiscuidade e a libertinagem sexual constantemente sendo apresentada nas músicas e nos clipes musicais como um símbolo de emancipação e liberdade, acaba aprisionando cada vez mais as pessoas em si mesmas, com ideia de que a felicidade está em buscar o prazer e evitar a dor a qualquer custo.
O resultado é que estamos deixando de viver vidas significativas para termos vidas medíocres pautadas em status, bem-estar e prazeres momentâneos. Com isso, Byung não está propondo um puritanismo como solução. Mais uma vez, a solução não é voltar para o passado. Não é como se os homens precisassem andar de terno e calça social nas ruas e mulheres de vestido longo. Na verdade, Byung não está propondo nada. O que ele está fazendo é uma descrição da sociedade. A simples consciência desses fenômenos já é, por si só, importante.
A agonia do Eros está justamente no que diz respeito ao mistério. A exposição aniquila o desejo, e o desejo é aquilo que nos falta. Eros é o mistério; é o que no outro é incomunicável. Se o outro me é transparente — e essa transparência acontece devido ao excesso de exposição da própria imagem — o desejo desaparece, pois eu já o tenho mesmo antes dele se apresentar. A exposição desumaniza as relações e o reduz a objetos utilitários e de poder.
“A nudez exibida ao olhar, sem mistério e sem expressão, aproxima-se da nudez pornográfica. Também o rosto pornográfico nada expressa. Ele não tem expressividade nem mistério: quanto mais se avança de uma forma à outra – da sedução ao amor, da cupidez à sexualidade e, por fim, para a mera e simples pornografia, tanto mais fortemente nos movemos na direção da diminuição do mistério e do enigma.”
Byung-Chul Han, A Agonia do Eros.
Existe um simbolismo por trás do mistério de Eros, e é esse mistério que provoca o desejo. Na mitologia grega, Eros é filho de Afrodite, que também é conhecido como cupido. Em uma versão do mito, Eros acaba seduzindo Psique, a personificação da alma, e prendendo-a em um palácio. No entanto, Psique fica proibida de olhar para Eros, que só aparece para ela no escuro.
Em uma noite, Psique consegue acender uma vela e olhar para o rosto de Eros. Aqui, Psique desnuda Eros do seu mistério e ele se revela um ser demoníaco, sua imagem é exposta e ela foge do palácio. O mito está nos dizendo que a exposição sem nenhum tipo de ocultamento destrói a sexualidade e o outro é como que profanado.
Psique, a personificação da alma, isto é, nossa consciência, olha diretamente para Eros, a personificação do amor, de forma crua e obscena, sem o jogo erótico que estavam tendo quando ele não permitia que ela lhe olhasse. Com isso, a exposição aniquilou a comunicação erótica entre eles, o que matou o desejo de Psique.
Enquanto Eros não é desnudado, ele humaniza as relações e desperta desejo. Quando Eros é exposto, ele se torna pornográfico e desumaniza as relações, pois o outro se torna apenas um objeto para a nossa felicidade.
Byung-chul Han fala sobre a pornografização do mundo: hoje, basta rodar alguns stories, assistir algumas séries ou andar na rua e olhar para um outdoor que terá algum conteúdo com insinuação sexual. Infelizmente, o mundo vai ficar cada vez mais pornográfico e projetado para atender aos nossos desejos e nos manter cada vez mais centrados em nós mesmos, escondendo nossa solidão debaixo das nossas tentativas de satisfações instantâneas e na busca por liberdade e emancipação.
Estamos mais próximos da sociedade que Aldous Huxley descreveu no livro Admirável Mundo Novo. Nela, os governantes controlam o mundo fazendo com que as pessoas sejam escravas dos próprios prazeres. Tudo é projetado para manter a população sedada e satisfeita, para que não tenham vontade de perceber que estão em um mundo ilusório e totalitário.
Mas qual é a solução para tudo isso? Com certeza, não é um moralismo sobre as relações sexuais, até porque o moralismo mata o desejo.
Não é como se houvesse uma solução para os problemas apresentados por Byung-Chul Han em seu livro. Mas o que nós podemos fazer é educar o nosso imaginário.
A arte, a literatura e as relações humanas descabidas de jogos de poder, contêm justamente a beleza e o mistério do Eros. A pornografia não apresenta nenhuma transcendência estética. Sem mistério, ou seja, aquilo que no outro é incomunicável e que, por consequência, nos causa o fascínio, as pessoas se tornam meros objetos.
O mistério do Eros está justamente nele ser um intermediador entre as coisas terrenas e o mundo supra terreno, no incomunicável, no eterno. Quando lemos alguma literatura clássica, observamos uma bela pintura, formamos vínculos com nossos semelhantes, criamos projetos, filhos ou cuidamos daqueles de quem mais amamos, há alguma coisa que transpassa o mero tempo cronológico e se torna eterno em detrimento da sua beleza. Aquilo que de eterno se encontra nas relações e nas expressões mundanas é onde o Eros também está presente.
Dessa maneira, podemos extrapolar o sentido do Eros para além do amor romântico e dizer que Eros é desejo de ter a posse daquilo que é eterno. Uma das mais belas descrições do Eros é encontrado no diálogo escrito por Platão chamado O Banquete. Neste Diálogo, Platão apresenta Sócrates em um simpósio discutindo sobre qual é a natureza do Eros. Quando chega a vez dele falar, Sócrates diz que Eros realiza a síntese dos opostos, ou seja, Eros busca aquilo que lhe falta.
É dessa síntese dos opostos que deriva sua força dinâmica, pois o impele cada vez mais a buscar uma forma de se saciar. Só que Eros não conseguiria se saciar com as coisas terrenas, justamente porque são perecíveis e transitórias. Pense agora nas inúmeras vezes que você que você esperava que uma conquista material iria te deixar satisfeito. Sempre queremos uma próxima viagem, um novo relacionamento para dar aquele frio na barriga, um novo livro para ler mesmo que não tenhamos lido o anterior que compramos, uma nova roupa e assim por diante. Quando alcançamos aquilo que não tínhamos, o desejo some e o objeto perde o seu fascínio.
Mas Eros não para no mundo físico, ele procura o que é eterno, pois sabe que nenhum bem material poderia saciar sua vontade de possuir a beleza em si mesma. No entanto, ele não despreza o mundo físico, ele sabe que aqui existem muitas coisas belas e que são condições necessárias para continuar subindo na escadaria da beleza. Podemos dizer que o mundo físico é apenas um degrau que devemos pisar, mas ainda tem outros pela frente. Dessa forma, Eros parte do degrau do mundo físico, encontrando a beleza nos corpos e na procriação.
Quando dois parceiros têm relações sexuais, Eros está presente; quando nasce uma nova vida, Eros criou sua obra, a partir da beleza dos corpos e das relações. Uma nova vida é uma beleza por si só; é uma criação onde Eros esteve presente. Depois, Eros avança mais um degrau e percebe que a alma é mais bela que o corpo. Nesse degrau, a beleza da educação imprime na alma humana as virtudes, como a justiça, a prudência, a fortaleza e a temperança.
A beleza da educação nos permite ser mais instruídos para criar belas obras e obter mais conhecimento. É aqui que Eros começa a atingir o degrau daquilo que é incorruptível. O conhecimento imprimido na alma é melhor que qualquer bem material, pois não perecem e não corroem como as coisas físicas. O conhecimento nos permite pensar coisas mais elevadas e a termos uma melhor compreensão de nós mesmos.
Mas isso não é o suficiente para Eros; ele quer chegar na origem das Ideias. A partir do degrau do conhecimento, Eros consegue, então, ter acesso à Beleza em si mesma, ou seja, àquilo que é eterno e satisfaz qualquer fome e qualquer desejo, pois Eros se ligou com aquilo que lhe faltava, isto é, com a eternidade.
Eros se apresenta nas nossas vidas como uma força que nos impulsiona a buscarmos o bem, a beleza e àquilo que é eterno. Ele une pessoas e faz com que vejamos os outros em sua alteridade, sem jogar fora seus defeitos e suas falhas. É um mistério que deixa o mundo mais belo justamente por sua insinuação. Eros nos permite acima de tudo, amar o outro pelo que o outro é:
“Amar é encarar o outro da maneira real, simples, como o ser humano que de fato é. Amar nada tem de ilusório; é ver o indivíduo, vê-Io, mas não através de um determinado papel ou imagem que tenhamos planejado para ele. É dar valor à individualidade daquela pessoa, dentro do contexto do mundo comum.”
Robert E. Johnson, Ela.
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