Por que temos a sensação que o tempo está passando mais rápido?
Transcrição do vídeo
“Eu não tenho tempo.”
Essa é uma das principais queixas que levam as pessoas a buscar terapia e um dos maiores desafios da sociedade atual. O tempo se tornou uma fonte constante de angústia. A percepção de sua passagem parece cada vez mais distorcida; muitas pessoas sentem que precisam de mais do que 24 horas no dia.
Quase todos já experimentaram a sensação de que o tempo está acelerado: os dias, os meses (com exceção de agosto, que parece passar mais devagar) e até os anos parecem voar. Essa percepção é ainda mais intensa para quem vive em grandes cidades. No mundo moderno, a pressão para atender às demandas de um ritmo de vida cada vez mais rápido nos leva a buscar maneiras de otimizar nosso tempo. Não surpreende que temas como produtividade, eficiência e bem-estar tenham se tornado tópicos de grande interesse na internet.
Mas por que estamos vivendo essa sensação de falta de tempo? Por que as 24 horas do dia não parecem mais suficientes, e como podemos lidar melhor com isso para ter uma vida mais integrada e completa?
Neste vídeo, abordarei a questão do tempo de uma forma diferente, então peço que você preste atenção. Se precisar, reveja o conteúdo e, no final, consulte os links na descrição do vídeo para encontrar livros que vão te aprofundar no tema e que te ajudarão em sua jornada do autodesenvolvimento. Em todo caso, busque terapia.
Para começar, vou contar o mito da origem do tempo. Em grego, uma das palavras que expressa a noção de tempo é “crono,” que deu origem ao conceito de tempo cronológico, marcado pela progressão linear dos eventos: passado, presente e futuro. É a nossa percepção consciente a respeito do tempo, que se mede através do relógio e do calendário. No entanto, na mitologia grega, Cronos é o titã que personifica esse tempo. Na tradição romana, ele ficou conhecido como Saturno. Cronos é um dos filhos de Urano, o céu eterno, e de Gaia, a Terra. Assim, o tempo é filho da eternidade e da matéria.
Temendo ser destronado, Urano reprime seus filhos, mas Gaia se revolta e entrega uma foice a Cronos, que, com ela, corta o falo de seu pai e assume o reinado. Sim, é isso mesmo, ele corta o membro de Urano. Cronos é o “tempo devorador”; ele simboliza a força insaciável que consome tudo e não faz distinção entre coisas e ideias. Ele devora seus próprios filhos para impedir uma profecia que prevê seu destronamento. Reia, sua esposa, revolta-se e salva um dos filhos, Zeus, enganando Cronos ao dar uma pedra no lugar dele, já que não faz distinção de nada. Zeus cresce, enfrenta o pai e, ao derrotá-lo, inaugura uma nova era.
Com Zeus, inicia-se a vida consciente, a era da consciência, simbolizada pela luz de seu raio que ilumina as coisas. Contudo, o ser humano, na mitologia grega, não é criado por Zeus, mas por Prometeu, outro titã, que os molda a partir do barro. Para dar vida espiritual a essa criação, Prometeu rouba o fogo do Olimpo e o entrega aos humanos, representando o despertar da consciência e sua evolução espiritual em busca de uma maneira de escapar do tempo de Cronos, o tempo cronológico.
Com isso, o ser humano passa a viver entre forças terrestres — desejo, fome, cobiça —, mas possui a vontade espiritual de alcançar algo além da dor e da finitude.
Como explica Paul Diel, um psicólogo francês, explica:
“A vitória de Zeus sobre Cronos simboliza a criação do ser consciente, inflamado pelo desejo de evolução em direção a uma vida supraconsciente.”
Paul Diel, Simbolismo da Mitologia Grega.
Só que mesmo destronado pelo reinado da consciência de Zeus, Cronos não é destruído; sua influência persiste, e o tempo continua a passar e a transformar tudo.
Essas forças opostas — o desejo pelos bens terrestres e o impulso espiritual — convivem em nós e podem tanto nos elevar quanto nos levar à autodestruição. A consciência nos lembra de que nosso tempo é limitado, pois vivemos sob as forças de Cronos, e de que nosso desejo de eternidade contrasta com a angústia da finitude.
Esse é o sentido arquetípico de por que o tempo impacta nossas vidas de maneira tão profunda.
Essa é a explicação arquetípica para o efeito do tempo em nossas vidas ser tão devastador.
Acontece que, esse nosso lado espiritual, essa experiência de que existe algo além daquilo que podemos ver ou de que está além do tempo cronológico não é uma invenção das religiões organizadas, mas é uma descoberta primitiva que o ser humano carrega desde os primórdios, ou como o próprio Jung escreveu:
“Como o inconsciente impôs aos homens em última análise um destino espiritual em sentido mais amplo e em grau cada vez maior, foi desta experiência que resultou o conceito de que a figura de Deus é um espírito e este deseja o espírito. Isto não é invenção nem do cristianismo nem dos filósofos, mas uma experiência humana primitiva que também o ateu confirma.”
Carl Jung, Símbolos da Transformação.
Quando falamos desse algo a mais que o ser humano busca, muitas perguntas vêm à nossa mente: “o que é esse algo a mais?”, “Esse algo realmente existe?”, “Isso é uma pessoa ou um ser mais geral?”.
Foi devido ao fato de afirmar que esse algo transcendental existe, combinado com a nossa tentativa de se ligar a ele que formaram as religiões. Apesar do nosso foco aqui no vídeo não se tratar de religião, uma atitude religiosa perante a vida pode ser uma possível solução ao problema da questão da falta de tempo, pois ela nos ajudará a manter um senso de presença para as coisas que realmente importam, servindo como um amortecedor contra os perigos da nossa condição existencial e nos fortalecer contra a sensação da falta de tempo na medida em que, ao nos desprendermos do tempo cronológico, ele passará a não nos afetar tanto assim.
Religião vem do latim religare, que significa voltar a ligar, ou seja, consiste na crença de que há uma ordem para além do mundo sensível e para além do tempo cronológico, e que nosso bem supremo está justamente em nos ajustarmos a essa ordem eterna. Essa é a atitude religiosa ou espiritual do ser humano.
Mas então surge outra pergunta: “onde está esse algo a mais para eu me conectar e exercer minha atitude religiosa?”
Lembra que eu citei um trecho onde Jung escreve que a religiosidade é uma experiência primitiva? Pois bem, olha só o que Willian James, um dos pais da psicologia moderna, escreveu:
“[…] As necessidades práticas e experiências da religião parecem-me suficientemente satisfeitas pela crença de que além de cada homem e de uma forma contínua com ele existe um poder maior que é amigável a ele e aos seus ideais. Tudo o que os fatos exigem é que o poder seja outro e maior do que nossos eus conscientes. Qualquer coisa maior servirá. […] Poderia concebivelmente ser apenas um eu maior e mais divino, do qual o eu presente seria então apenas a expressão mutilada, e o universo poderia concebivelmente ser uma coleção de tais eus.”
William James, As Variedades de Experiência Religiosa.
A sugestão de James é a de que um eu mais divino é um objeto potencial para o cultivo de uma atitude religiosa. Ou seja, esse eu divino é uma parte que está dentro de nós, mas que se encontra fora do tempo cronológico. Isso não só se confirma com Willian James. Há mais de 2400 anos, Aristóteles, o filósofo grego, por exemplo, dizia que a razão é essa parte divina dentro de nós, e somente praticando nossa razão, através da contemplação e da observação, é que podemos nos desvencilhar das coisas mundanas, do tempo cronológico e buscar as coisas divinas. Ela se assemelha ao fogo dado por Prometeu aos seres humanos, que nos fez despertar para buscar algo a mais do que bens materiais, prazer e dinheiro.
Séculos mais tarde, Santo Agostinho também defendeu que essa busca está em algo dentro de nós:
Não busques no exterior, volta-te para ti mesmo, pois no homem interior habita a verdade.”
Santo Agostinho, A Verdadeira Religião.
Lembra que eu disse que a experiência religiosa é confirmada até por um ateu? Pois bem, Niet também escreveu algo semelhante:
“Por trás de seus pensamentos e sentimentos, meu irmão, está um comandante poderoso, um sábio desconhecido — ele é chamado de Eu.”
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
Mas por que estamos vivendo essa sensação de falta de tempo? Jung, em uma série de textos denominados posteriormente de Civilização em Transição, escreve que o desenvolvimento do ocidente se deu de maneira extrovertida, tendo os objetos do mundo exterior como meta para o desenvolvimento. Esse pensamento unilateral fez com que esquecêssemos de desenvolver nossa intuição e pensamento introvertido. O resultado é que estamos em um mundo onde a persona de cada indivíduo se tornou sua identidade total. Muitos associam sua vida com o trabalho, com os bens materiais que possuem e com os cargos que ocupam, percebem que, com isso, suas aprovações sociais aumentam, ou como Jung escreveu:
“Quando, portanto, me identifico com meu cargo ou título, comporte-se como se eu mesmo fosse todo o complexo de fatores sociais dos quais esse cargo consiste, ou como se eu não fosse apenas o portador do cargo, mas também e ao mesmo tempo a aprovação da sociedade. Fiz uma extensão extraordinária de mim mesmo e usurpei qualidades que não estão em mim, mas fora de mim.”
Carl Jung, O Eu e o Inconsciente.
É por essa atitude unilateral voltada para fora que o inconsciente compensa com uma atitude voltada para dentro, mas, como essa não foi desenvolvida, ela prejudica e sabota na vida consciente.
O mundo acelerado de hoje é consequência do que disse Santo Agostinho conseguiu perceber:
“E os homens vão admirar a altura das montanhas, as ondas ingentes do mar, as quedas enormes dos rios, a amplidão do oceano, as órbitas das estrelas, mas se esquecem de si mesmos”,
Santo Agostinho, Confissões.
Todos esses filósofos estão dizendo basicamente a mesma coisa: a resposta está no nosso deus interior, a parte em nós que se liga com a eternidade e que é capaz de se desvencilhar do tempo cronológico e perceber que muitos dos nossos problemas são questões mal resolvidas com o nosso interior, que são projetadas no exterior através de ansiedade, frustração e senso de urgência.
É difícil falar sobre a eternidade, pois nossos pensamentos estão presos à ideia de sucessão de passado e futuro. No entanto, os gregos têm outra palavra para o tempo, que não representa o tempo de Cronos, mas o de Urano: Kairós. Kairós é o momento especial, indeterminado, em que algo transformador acontece, permitindo-nos viver o presente de maneira intensa e agradável, como se esse instante durasse uma eternidade — como a influência de Urano, que persiste mesmo após sua queda.
Embora vivamos nessa sequência temporal de “antes” e “depois,” não somos feitos para ela e buscamos algo além do tempo cronológico, algo que reside no tempo de Kairós. Em Kairós, cada momento tem uma qualidade única. Podemos nos aproximar desse tempo quando entendemos as influências sobre nossa percepção de escassez de tempo. Frequentemente, achamos que mais trabalho, sacrifício ou produtividade nos trarão satisfação futura, acumulando bens materiais ou criando rotinas rígidas que simulam ordem. Mas essa busca externa ignora uma verdade importante: há aspectos em nós que não respeitam a agenda cronológica e que acabam nos perturbando quando negligenciados.
Podemos experimentar o tempo de Kairós ao olhar para dentro e perceber que nossa sensação de falta de tempo decorre da desatenção aos nossos estados internos. O que nos distrai, nos faz procrastinar, sentir raiva de pequenas coisas? Se algo externo nos afeta, é porque reverbera algo dentro de nós. Esquecemos de dar atenção à nossa imaginação e aos conteúdos que emergem na consciência sem razão aparente. Ignoramos nossa evolução espiritual, nossa vida interior.
A consciência regula o tempo cronológico, enquanto o inconsciente conecta-se ao tempo de Kairós. Encarar o que tentamos ocultar, por medo ou vergonha, nos ajuda a lidar com esses conteúdos que, quando ignorados, são projetados nos outros, como críticas, ou em nós mesmos, como estresse e raiva. O inconsciente armazena tanto nossas virtudes quanto nossas fraquezas, ligando-se a padrões comportamentais de diferentes épocas.
A batalha que travamos no mundo consciente — nos relacionamentos, conflitos de trabalho ou questões familiares — tem raízes antigas, relatadas na literatura e nos mitos. Muitos comportamentos são herdados dos nossos antepassados e serão perpetuados, a menos que tomemos consciência deles. Por exemplo, seu ressentimento encontra-se em Memórias do Subsolo de Dostoiévski; sua soberba, no mito de Ícaro; suas lutas diárias, nos trabalhos de Hércules; seu senso de justiça, em Antígona, de Sófocles.
Essas obras atemporais revelam a universalidade do comportamento humano e nos ajudam a compreender os estados internos que influenciam nossa consciência. A literatura é uma ótima opção para compreender os símbolos e as imagens que surgem do nosso inconsciente quando estamos fazendo um processo de autoanálise dos nossos estados interiores. Se formos ignorantes em relação aos elementos do nosso interior divino, ficaremos perdidos quanto ao que está sendo vivenciado.
Para tornar isso mais prático e ajudar a reduzir a angústia que o tempo nos causa, você pode começar a escrever sobre o que te afeta. Mantenha um diário das situações, anotando o que aconteceu no dia que te deixou aborrecido, nervoso ou ressentido, seja relacionado a outras pessoas ou ao ambiente. Também é útil anotar os sonhos e tentar conectá-los com as experiências vividas.
Reserve pelo menos 10 minutos diários para estar sozinho, observando como você percebe as coisas e o que emerge dessas reflexões. Ler bons livros e fazer terapia também são práticas valiosas. Outra possibilidade é conversar com alguém e pedir um feedback sincero sobre como essa pessoa te vê. Muitas vezes, não percebemos a trave que está no nosso olho, mas percebemos o cisco no olho dos outros.
Ao trazer à consciência o que está no inconsciente, conseguimos, ainda que minimamente, experimentar a totalidade, ou o “tempo de Deus.”
Porém, essa angústia com o tempo nunca se dissipa completamente. Estamos imersos na temporalidade, na inconstância e na incerteza. Se nenhum desejo nos satisfaz por completo, isso não significa que o mundo é ruim ou uma ilusão; pode ser que esses prazeres não tenham, de fato, a função de nos satisfazer. Quantas vezes algo parece prometer felicidade e, ao alcançá-lo, percebemos que não é suficiente? Sempre desejamos mais — uma nova viagem, um novo carro, um novo relacionamento, uma nova aventura — o que, paradoxalmente, intensifica nossa sensação de falta de tempo.
Ao perseguir esses desejos, nosso senso de urgência cresce, pois sabemos que o tempo é limitado. Talvez seja por tentarmos perseguir as coisas erradas que temos a sensação de não termos tanto tempo assim, pois tudo isso, com o passar do tempo, é devorado no reinado de Cronos.
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