A Psicologia da Lavagem Cerebral — Laranja Mecânica

A maioria das pessoas acredita que ser um bom sujeito é ser alguém complacente e fazer o que lhe é dito, muitas vezes por aqueles em posições de poder político, ou aceitar dogmaticamente as notícias de grupos midiáticos e as opiniões de celebridades que podem estar envolvidas em interesses partidários. Ao agir com obediência cega, os conformistas falham em diferenciar entre moralidade e legalidade e, portanto, permanecem intencionalmente ignorantes ao fato de que as regras e os métodos do governo podem ser imorais, movidas pela corrupção e que, às vezes, elas abrem caminho para o colapso individual e social, podendo levar à governos tirânicos e regimes totalitários.

Muitas pessoas são influenciadas por grupos coletivistas que exigem lealdade a eles em troca de promessas e garantias de bem-estar social, permitindo que cometam transgressões e se comportem de maneira antiética, desde que permaneçam do lado deles. Muitos usam a religião que oferece um sentido para o indivíduo é usada para inculcar o medo e aumentar o poder. No passado, imperadores, por exemplo, alegavam ser a personificação de deuses para impor sua vontade sobre os outros, já que a religião tinha uma forte influência na vida das pessoas. Da mesma forma, a ciência que levou a imensas descobertas que melhoraram dramaticamente a existência humana hoje também podem ser usadas para fins impróprios e como uma ferramenta de manipulação que visa apoiar grupos políticos em seus objetivos ideológicos. Alegando que estão financiando projetos científicos para melhorar as condições de vida de uma população ou erradicar problemas graves como a violência social e as crises de saúde, muitos grupos políticos só estão tentando se perpetuar no poder, sem se preocupar com as consequências morais de suas medidas.

Como escreveu Hannah Arendt em seu livro As Origens do Totalitarismo:

“O que as massas se recusam a aceitar é a natureza fortuita da realidade, o fato de que ela é composta por eventos imprevisíveis. Elas se inclinam para as ideologias porque essas oferecem explicações simplistas para os fatos, apresentando-os como meros exemplos de leis universais e ignorando as coincidências. Assim, as ideologias criam a ilusão de uma onipotência que governa tudo, incluindo o acaso. É nesse ambiente de negação da realidade em favor da ficção, de rejeição da coincidência em prol de uma falsa coerência, que a propaganda totalitária encontra terreno fértil.”

Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo.

Muitas obras de ficção são sátiras que, como deixa implícito o termo, visam criticar ou ridicularizar um conjunto de ideias que tem um respaldo na realidade. Mas é até difícil, em alguns momentos, saber se a ficção imita a realidade ou se a realidade, pelos menos em alguns aspectos, se forma através dessas obras fictícias, ou talvez uma influencie constantemente a outra. Laranja Mecânica, o livro escrito por Anthony Burgess e publicado em 1962 é uma dessas sátiras que se propõem a criticar toda uma sociedade, seus sistemas políticos e suas ideais. Você deve conhecer essa história mais pelo filme dirigido por Stanley Kubric, lançado em 1971, que se tornou um dos maiores clássicos da história do cinema. Embora Kubric tenha feito algumas adaptações no roteiro para transportar a história para um formato cinematográfico, ele se manteve fiel ao livro.

Mas de qualquer modo, a narrativa se passa em uma Inglaterra futurista comandada por um governo autoritário de esquerda que disputa seu poder com um outro partido político mais de direita, só que tão opressor quanto o primeiro. A história é contada por Alex DeLarge, um adolescente líder de uma gangue, chamados de “drugues”, onde saem às ruas cometendo atos de ultraviolência, termo esse encontrado na narrativa, se referindo a espancar pessoas inocentes, invadir casas, abusar violentamente de mulheres e cometer vários outros crimes. Depois de um desentendimento entre os drugues, Alex acaba sendo traído e detido pela polícia, sendo mais tarde sentenciado a 14 anos de prisão. Para reduzir sua pena, Alex aceita ser submetido ao “Método Ludovico”, uma técnica aplicada pelo governo para tentar acabar com a violência no país. Ao aplicar drogas e expor o indivíduo a uma série de cenas perturbadoras, ele associa a violência com a dor e com sensações emocionais insuportáveis, tornando-o incapaz de agir agressivamente, mesmo para se defender. Apesar de ser reabilitado depois do governo publicar no jornal seu tratamento como um caso de sucesso, Alex não recebe nenhuma assistência do governo, que só o usou para fins políticos e estava preocupado em oferecer uma narrativa para se manter no poder. Alex, então, acaba sofrendo as consequências desse condicionamento em uma sociedade violenta e mentalmente doente. Ele é atacado por antigos inimigos e até por membros de sua gangue, que agora se tornaram policiais. Não podendo revidar, acaba fugindo e busca abrigo na casa de um escritor que havia violentado no passado. O escritor, reconhecendo Alex como o “sucesso” do Método Ludovico, o utiliza para denunciar o governo, mas ao identificar Alex como seu agressor, o tortura psicológica e fisicamente, explorando sua incapacidade de reagir. Alex tenta se matar, mas sobrevive gravemente ferido. No hospital, membros do governo revertem os efeitos do tratamento Ludovico em troca do silêncio de Alex sobre os abusos feitos durante a técnica, encerrando a história com ele aparentemente curado do condicionamento, podendo usufruir novamente dos seus impulsos agressivos sem ser perseguido pelo governo. O título “Laranja Mecânica” simboliza a dicotomia entre a aparência humanam, orgânica, e a manipulação interna, vista com mecânica.

No lançamento da versão para os cinemas de Laranja mecânica, devido as controvérsias que o filme apresentava e as cenas de violência e sexo explícito, ele foi banido em diversos países, inclusive aqui no Brasil por um tempo. E diversas são as interpretações para a história de Laranja Mecânica, e se você já leu o livro ou assistiu ao filme, qual a sua opinião?

No entanto, a principal crítica de Anthony Burgess ao escrever o livro, era a sua preocupação de que uma oligarquia controladora poderia conduzir experimentos em seres humanos para condicionar suas respostas emocionais em prol do controle social, usando técnicas da psicologia comportamental, reduzindo a população a robôs programadas para minimizar o potencial de agitação civil e suprimir sua capacidade de escolha, ou seja, seu livre arbítrio.  

A técnica Ludovico de Laranja Mecânica é baseada no condicionamento clássico do fisiologista russo Ivan Pavlov. No início do século XX, ele conduziu uma série de experimentos com cães, fazendo-os passar por um aprendizado associativo em que um estímulo inicialmente neutro passa a evocar uma resposta específica após ser associado repetidamente a um estímulo que já provoca essa resposta de forma natural. Funciona assim: quando um estímulo incondicionado, por exemplo, o cheiro de carne, que provoca uma resposta incondicionada e natural, nesse caso, a salivação do cachorro, é parelhado com um estímulo neutro que não provoca uma resposta desejada, por exemplo, o som da campainha, após repetidas associações com esse estímulo neutro, ele passar a se tornar um estímulo condicionado, e o simples tocar da campainha provoca uma resposta condicionado no cachorro, que passa a salivar sem a presença da carne. Da mesma forma, quando Alex foi induzido por drogas, um estímulo incondicionado, seu corpo provocava reações de náuseas, medo e desespero. Quando esse estímulo incondicionado foi parelhado diversas vezes com as cenas de violência explícita, seu corpo reagiu da mesma forma quando estava sendo drogado, o que produziu uma resposta condicionada de medo e náuseas sempre que sentia necessidade de manifestar seus impulsos agressivos.

Pavlov ganhou o Prêmio Nobel em 1904 por sua pesquisa sobre a fisiologia da digestão e, mas mais tarde em sua vida ele voltou sua atenção para o estudo do sistema nervoso dos animais. Embora os estudos de Pavlov visassem apenas uma contribuição científica para a humanidade, tais pesquisas influenciaram diretamente as técnicas de lavagem cerebral utilizadas pelos russos e chineses no século XX. Durante o período stalinista na união soviética, as pesquisas de Pavlov se tornaram doutrinas e foram ampliadas para outras áreas de estudos, incluindo um projeto para formar um novo homem soviético, caracterizado pela disciplina e subordinação cega às autoridades. Joost Meerloo, um psiquiatra holandês, escreve em seu livro O Rapto do Espírito:

“De acordo com uma das diretrizes de Stalin, Moscou manteve uma ‘Frente Pavloviana’ especial e um ‘Conselho Científico sobre Problemas de Teoria Fisiológica’ . […] Ambas as organizações eram agências de controle lidando com problemas de pesquisa, e os cientistas que trabalhavam nelas exploravam as maneiras pelas quais o homem poderia teoricamente ser condicionado e treinado como os animais.”

Joost Meerloo, O Rapto do Espírito.

Na Alemanha nazista, humanos foram usados ​​como cobaias para experimentos médicos desumanos, e teorias de eugenia, oferecidas por cientistas nazistas, foram usadas para justificar programas de limpeza étnica. Joost Meerloo cunhou o termo menticídio, explicando que os nazistas desenvolveram métodos de tortura psicológica que visavam justamente matar a mente e torna-la influenciável, e após a Segunda Guerra Mundial, essas técnicas foram adotadas e aprimoradas tanto pelos norte-americanos quanto pelos soviéticos. De acordo com Meerloo, essas técnicas permitiam induzir a submissão total, tornando as vítimas altamente sugestionáveis, obedientes e passivas.

E teve um psiquiatra britânico chamado William Sargant que, enquanto estudava sobre como um indivíduo pode sofrer lavagem cerebral para fins políticos e religiosos, se deparou com os estudos de Pavlov. No experimento que interessou William Sargant, Pavlov impôs estresses físicos e emocionais extremos a vários cães. Pavlov observou que, eventualmente, quando um estresse suficiente era imposto a um cão, ele entrava em colapso, provocando uma reação histérica. Incapaz de lidar com o estresse avassalador, o cérebro do cão ficava inibido e “desligava”, por assim dizer, deixando o cão temporariamente incapacitado. Curiosamente, Palov notou que se o colapso fosse grave o suficiente, qualquer comportamento que ele tivesse condicionado previamente no cão desaparecia. Além disso, se ele tentasse condicionar um novo comportamento no cão logo após o colapso ocorrer, ele observou que o comportamento recém-condicionado se tornava profundamente enraizado no sistema nervoso do cão e era subsequentemente muito difícil de remover. Ao ler o experimento de Pavlov, William Sargant percebeu que

“A possível relevância desses experimentos para a conversão religiosa e política repentina deve ser óbvia até para os mais céticos: Pavlov mostrou por experimentos repetidos como um cão ou um homem pode ser condicionado a odiar o que ele amava anteriormente, e amar o que ele odiava anteriormente. Similarmente, um conjunto de padrões de comportamento no homem pode ser temporariamente substituído por outro que o contradiz completamente; não apenas por doutrinação persuasiva, mas também pela imposição de tensões intoleráveis ​​em um cérebro saudável.” William Sargant, Controle da Mente.

Essas tensões intoleráveis ​​são efetivamente produzidas ao estimular emoções intensas dentro de um indivíduo, até que o cérebro fique sobrecarregado e entre em colapso em um estado de histeria. Como o experimento de Pavlov mostrou, uma vez que tal colapso tenha ocorrido, o indivíduo será deixado em um estado de alta sugestionabilidade, pronto para liberar todas as crenças e identificações emocionais anteriores. Em outras palavras, essa pessoa estará preparada para aceitar novas ideias, crenças e até mesmo um novo modo de vida.

“Atitudes emocionais também se tornam condicionadas: sente-se repulsa quase automática por certas classes de pessoas e uma atração automática por outras. Até mesmo palavras como católico e protestante, operário e patrão, socialista e conservador e republicano e democrata evocam respostas condicionadas muito fortes.”

William Sargant, Controle da Mente.

William Sargant reconheceu que, nas mãos erradas, essa técnica de indução do colapso emocional é usada para controlar, manipular e explorar indivíduos. E nas mãos daqueles que lideram a sociedade e, portanto, têm poder sobre a população, pode ser uma ferramenta usada para o propósito de “lavagem cerebral em massa”. Esses mecanismos de privação fisiológica são agora conhecidos como essenciais para a implantação ou remoção de padrões de comportamento, tanto em seres humanos quanto em animais. O processo de indução do colapso emocional foi usado nos gulags soviéticos durante o regime stalinista. Os dissidentes políticos que eram enviados para os campos de trabalho forçado eram submetidos a privações alimentares e sobrecarregados com estresse emocional, tornando-se altamente sugestionáveis. Dessa forma, eles passavam por um processo de reeducação ideológica, onde eram implantadas as ideias partidárias do regime.

Mas uma coisa que eu ainda não falei é que William Sargant, tendo conhecimento sobre essas técnicas de manipulação, também tinha as usava para tratar seus pacientes. Sargant utilizava métodos experimentais que incluíam a administração de drogas psicotrópicas, terapias de privação sensorial e eletroconvulsoterapia, e acreditava em métodos rápidos e eficazes para tratar doenças mentais, muitas vezes sem considerar os efeitos colaterais de longo prazo ou o consentimento informado dos pacientes. Embora não haja evidências concretas do seu envolvimento, foram essas práticas perigosas que fizeram muitos acreditarem que ele estava envolvido no MKULTRA, o programa secreto conduzido pela CIA durante as décadas de 1950 e 1960, que visava explorar o controle mental por meio de drogas, técnicas de radiação, hipnose e eletrochoque. Da mesma forma que os soviéticos, os Estados Unidos não queriam ficar de fora da guerra pelo controle da mente. E assim como demonstrou Laranja Mecânica, os governos podem utilizar ferramentas e estudos psicológicos, não para promover o bem estar e erradicar doenças, mas para permanecer no poder e tornar uma nação cada vez mais controlada.

Stanley Kubrick, o diretor de Laranja Mecânica, escreveu para uma revista americana que o filme era uma

“[…] sátira social lidando com a questão de saber se a psicologia comportamental e o condicionamento psicológico são as novas armas perigosas para um governo totalitário usar para impor vastos controles em seus cidadãos, e transformar eles em pouco mais do que robôs”.

Stanley Kubrick para a Saturday Review Magazine.

E, bom, depois de tudo isso, parece que mais uma vez a ficção se confundiu com a realidade.

Embora sejamos todos bombardeados com tentativas de nos transformar em laranjas mecânicas continuamente medrosas e ansiosas e, portanto, altamente sugestionáveis, ao seguirmos com nossa vida cotidiana, nossa consciência tende a falar baixinho e, muitas vezes, as mensagens que ela envia são ambíguas. Mas isso pode ser usado a nosso favor se percebermos que, em alguns casos, a desobediência pode ser a escolha certa. A violência ou qualquer manifestação prejudicial da ação humana não vai acabar ao ser suprimido o potencial agressivo do ser humano. Nossos impulsos agressivos também servem para nos proteger. Uma vez suprimido o livre arbítrio do ser humano, não teríamos a escolha de praticar o bem, nem saberíamos o que é o mal e que ele está potencialmente dentro de nós, assim como o bem também está potencialmente dentro de nós. Todas as tentativas históricas de transformar a terra em um paraíso e aniquilar o sofrimento humano de uma vez por todas acabaram culminando em regimes tirânicos e totalitários. Todos os discursos de sacrifício da liberdade individual em prol de um bem maior geral acabaram em chacinas e guerras. No final, todos esses projetos que visavam ser bom para todos acabaram sendo bom para alguns, para aqueles que querem se perpetuar na hierarquia do poder. Nessa situação, a frase de George Orwell é perfeita:

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”

George Orwell, Revolução dos Bichos.

Enquanto muitos desses dilemas morais da vida apenas provocam um sussurro na nossa consciência, há momentos em que nossa consciência fala tão alto e claro que parece ser nossa única força contra as manipulações que tentam nos fazer. Ela faz o indivíduo obedecer à sua voz interior, mesmo correndo o risco de se desviar. E, às vezes, diante uma sociedade doente, a única forma de sermos salvos é nos desviando e não nos conformando. Mesmo que, se um dia, todo o sofrimento humano fosse erradico e a ciência comprovasse por a mais b o que é o melhor para o ser humano, de tal modo que ficaríamos impossibilitados de escolher o que nos faria mal e fôssemos programados apenas para querer as coisas que são comprovadamente boas. Diante dessa situação precisamos lembrar das palavras de Dostoiévski:

“E se, porventura acontecer que a vantagem humana, alguma vez, não apenas pode, mas deve consistir justamente em que, em certos casos, desejamos para nós mesmos o prejuízo e não a vantagem?”

Dostoiévski, Memórias do Subsolo.

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