O Paradoxo da Solidão — Pare de fingir que não se importa
Transcrição do vídeo
Quando criei este canal, meu objetivo era, e ainda é, compartilhar o conhecimento que adquiri através dos meus estudos e da minha prática como terapeuta, esperando que, de alguma forma, essas informações possam ajudá-lo em sua jornada de autodesenvolvimento. Não há como negar que gostamos de dividir o que aprendemos. Existe uma alegria especial em compartilhar nossas descobertas. Afinal, não somos feitos para viver sozinhos por muito tempo. Como escreveu C. S. Lewis:
“Precisamos dos outros, física e emocionalmente. Precisamos dos outros até para conhecer a nós mesmos.”
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples.
Quando passamos muito tempo isolados, tendemos a nos tornar abstraídos, tímidos ou até mesmo um pouco esquisitos. Perdemos a noção da realidade e da alteridade — ou seja, a percepção de nós mesmos em relação aos outros. É comum começarmos a falar sozinhos ou até mesmo criar figuras humanas ou humanoides para simular a presença de companhia. Lembre-se do filme O Náufrago, onde Chuck, isolado em uma ilha deserta, passa a conversar com uma bola de vôlei. Casos semelhantes são relatados por detentos que, após anos em confinamento solitário, sofrem graves consequências psicológicas, incluindo psicose, alucinações, instabilidade emocional e perda de memória. Isso ilustra bem como não suportamos ficar sós por muito tempo.
No entanto, nos dias de hoje, parece haver uma exaltação da solidão, muitas vezes ignorando os malefícios que ela também pode trazer. Pior ainda, algumas pessoas podem estar se iludindo ao afirmar que gostam de estar sozinhas quando, na verdade, a internet e o contato com outras pessoas virtualmente amenizam a sensação de uma solidão verdadeiramente sentida se elas realmente não se comunicassem com ninguém. Aqui no YouTube, encontramos diversos vídeos exaltando a solidão como libertadora, ensinando a não ligar para a opinião dos outros, a sermos “autossuficiente”, a desenvolver a autoestima, entre outras promessas. É inegável que o estado de solidão tem sua importância. Eu mesmo já falei em outro vídeo sobre os benefícios de tirar um tempo para si diariamente. Muitas das grandes obras da humanidade foram criadas na solidão, por pessoas que se isolaram temporariamente para produzir algo significativo. Contudo, esses indivíduos sempre retornaram ao convívio social para compartilhar o que criaram. Sua solidão foi estratégica, não permanente ou ressentida. Se você de fato está procurando por desenvolvimento pessoal, você precisa ser, acima de tudo, honesto consigo mesmo, e isso é entender que você não é autossuficiente e nem totalmente independente. Como escreveu Aristóteles, há mais de 2400 anos:
“Quem não precisa de ninguém, ou é um animal selvagem ou é um deus.”
Aristóteles, Política.
Tá certo que Nietzche pegou essa frase e acrescentou que
“Falta o terceiro caso: é preciso ser as duas coisas.”
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos.
Mas, veja como ele passou os seus 10 últimos anos de vida: louco, incapacitado e doente, com uma certa mania de grandeza e sendo cuidado pela irmã e pela mãe antes dela morrer. Se não fosse por elas, ainda que a irmã tenha tentado deturpar suas obras, Nietzsche não teria sobrevivido por tanto tempo.
O problema surge quando encaramos a solidão como um objetivo final, algo a ser alcançado e mantido. Na verdade, nunca nos acomodamos completamente nesse estado. George Minois, em seu livro História da Solidão, escreve:
“A sociedade contemporânea, que em nome do individualismo, da liberdade e do direito à felicidade impele todos a afirmar-se e a realizar-se, é ao mesmo tempo uma formidável máquina de produzir angústia e solidão negativa. Porque a solidão é como o colesterol: existe o bem e o mal.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
Divididos entre a necessidade de amor e o desejo de independência, muitas pessoas enfrentam uma solidão para a qual não estão preparadas.
A busca pela independência absoluta muitas vezes é apenas uma maneira de mascarar desilusões. Por vezes, quem insiste em afirmar que “não precisa de ninguém” está, no fundo, clamando para que os outros percebam suas necessidades. Na história, Jean-Jacques Rousseau, o filósofo iluminista do século XVIII, é um exemplo clássico do ser humano que se torna ressentido e solitário tentando provar que não precisa dos outros, mas mesmo assim faz questão de escrever que não precisa dos outros. Em suas Confissões, ele revela:
“Ser amado por tudo o que de mim se aproximava era o mais ardente dos meus desejos. […] Não conhecia nada tão encantador como ver todo mundo feliz comigo […]. Embora pouco sensível ao elogio, eu era muito sensível à vergonha […].”
Rousseau, Confissões.
Rousseau percebeu, no entanto, que as pessoas sempre o viam de acordo com suas próprias interpretações, ignorando o que ele realmente era ou acreditava ser. Frustrado, ele escreveu:
“Os homens persistem em me ver como completamente diferente do que sou. […] Deixe-os me ver se puderem, mas isso é impossível para eles; eles nunca verão em meu lugar, exceto o Jean-Jacques que eles fizeram de acordo com seu coração para odiá-lo à vontade.”
Rousseau, Confissões.
Esse ressentimento o levou a romper com a sociedade, abandonar seus filhos e viver recluso, preferindo escrever a conversar com as pessoas. Ele confessou:
“Teria gostado da sociedade como qualquer outro se não tivesse certeza de ali mostrar-me, não só para desvantagem minha, como bem diferente do que sou. O partido que tomei de escrever e esconder-me é precisamente o que me convém.”
Rousseau, Confissões.
Bom, talvez ele tivesse escrito essas confissões na esperança de, um dia, ser finalmente compreendido.
E com o colapso dos valores coletivos no século XVIII, especialmente após a Revolução Francesa, que inclusive foi muito influenciada pelas ideias Rousseau, o ser humano enfrentou um dilema: sentiu-se livre das supostas amarras da igreja, das instituições e dos papeis sociais que norteavam o comportamento humano, mas também se viu desamparado, sem saber como lidar com a liberdade recém-conquistada. Como Ortega y Gasset descreveu:
“Sentimos que somos capazes de realizar, mas não sabemos o que realizar. Dominamos todas as coisas, mas não somos donos de nós mesmos. Nos perdemos em nossa própria abundância.”
Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas.
Esse desmoronamento das tradições gerou dois caminhos principais: de um lado, o individualismo extremo, focado na autorrealização e no consumo; de outro, o coletivismo, que buscava igualdade e fraternidade. Ambas as abordagens têm seus perigos. Enquanto o individualismo exagerado pode levar ao isolamento, o coletivismo exacerbado pode suprimir liberdades e até justificar regimes totalitários, que foi o que aconteceu durante praticamente todo o século XX.
O que muitas pessoas não percebem é que a busca pela autorrealização imposta pelo individualismo pode se tornar uma armadilha. Devido ao comportamento mimético do ser humano, tendemos a copiar muitos comportamentos e aspectos daqueles que são responsáveis por disseminar um estilo de vida específico, em geral, essas pessoas eram os burgueses. No século XIX, com a crescente libertação dos papeis sociais e a desintegração das instituições, inúmeros foram os exemplos de ideais românticos que exaltavam a solidão como libertação e autoafirmação, mas o que mais acontecia na prática eram burgueses enclausurados e frustrados em seus apartamentos silenciosos, esperando que encontrariam no luxo a felicidade; o pequeno funcionário público solteiro, devorado pela sua profissão, onde pensaria que ali encontraria sua realização; a mulher entediada com o casamento que decidiu buscar nas relações extraconjugais novas experiências e sensações e se viu cada vez mais frustrada porque percebeu que não era o externo que a preencheria.
Essa dualidade entre a pressão por afirmação pessoal e a necessidade de conexão com os outros ilustra a complexidade humana e que foi passada para o nosso tempo. Nem tudo é preto no branco. Tanto o individualismo quanto o gregarismo têm seu lugar, mas é no equilíbrio consciente entre os dois que encontramos uma vida mais plena e significativa.
Hoje, a busca por autorrealização e a independência absoluta parece estar corroendo tanto as relações sociais quanto o próprio indivíduo. Como George Minois afirma:
“O espírito de independência manifestado por um e por outro é muitas vezes apenas uma camuflagem, a maquilhagem de uma solidão tanto maior quanto esconde, que não ousa confessar, por orgulho e medo de revelar as suas fraquezas.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
É quase certeza que ninguém optaria por ter tudo e viver uma vida completamente realizada sob a condição de ser reduzido à solidão. Mesmo que alguém possuísse todos os bens, a vida se tornaria um verdadeiro inferno sem a presença de amigos, ou de um parceiro ou de uma família, pois a alteridade é condição necessária para a descoberta de si próprio. Nosso eu é resultado de nosso próprio desenvolvimento junto das condições externas a nós. Ao contrário dos que muitos pensam, Karen Horney, uma psicanalista alemã escreveu que:
“É um indício de saúde mental ser capaz de exprimir desejos por afeição, satisfação, auxílio e lealdade — ou até mesmo lutar por eles —, e não tentar inibir ou reprimi-los.”
Karen Horney, A Personalidade Neurótica do Nosso Tempo.
Quando essa necessidade por afeto não é correspondida, ela pode ser reprimida e, então, manifestada na forma de poder sobre os outros ou como ressentimento, afrouxando as relações e causando orgulho pela própria condição solitária. Não adianta você falar que todo homem não presta ou de que toda mulher não presta, ou postar um textão nas redes sociais dizendo que se cansou de se relacionar com as pessoas e de que agora o lance é “focar em si mesmo”. Isso só mostra que você está tentando esconder um conteúdo emocional que te afetou com uma aparente resignação. Mas essa máscara de autossuficiência é prejudicial, ainda mais na nossa cultura atual que se baseia economicamente na competição individual.
Um estudo realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito, o SPC Brasil, apontou que o motivo da maioria dos pedidos de divórcio por parte das mulheres está atrelado à falta de dinheiro ou o controle financeiro total por parte do marido, mais até do que ciúmes ou organização de papéis sociais. Com a quebra dos papeis sociais e da maior liberdade de escolha perante às realizações pessoais ao longo dos últimos dois séculos, o indivíduo foi ficando cada vez mais atomizado e desacreditado de que o outro poderia lhe servir de grande ajuda. Toda uma indústria do consumo foi criada baseada nesse novo ideal de autoafirmação. O culto a Deus foi sendo substituído pelo culto ao dinheiro, à beleza e à saúde. A categoria do ter ao invés do ser foi rompendo cada vez mais os laços sociais, enxergando as fraquezas dos outros como uma oportunidade para vantagem própria. Só que essa atomização é explicada por George Minois:
“O homo consumericus, habilmente condicionado pelas poderosas firmas da economia mundial, mantém-se num sutil equilíbrio inconsciente entre o gregário e a originalidade: é o ‘homem-massa’ denunciado por Ortega y Gasset, que devem seguir as grandes tendências de consumo e personalizar superficialmente suas compras; ser único e semelhante. E para isso ele deve estar suficientemente isolado para ser mais facilmente influenciado, e suficientemente ligado à massa para sentir as mesmas necessidades artificiais criadas pelos produtores.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
Desde cedo, as crianças iniciam a vida considerando o outro como um competidor, o que já é em si um fator de solidão. Nestas bases, o indivíduo cresce e vê-se preso a uma organização laboral que privilegia a vigilância e a competição, e se algo der errado nesse percurso, a responsabilidade e a culpa é toda dele, pois foram ensinados que o mérito e o fracasso dependem inteiramente deles e de mais ninguém.
Outro fator que acarreta o sentimento de solidão mascarada de autoafirmação é engendrado principalmente pela promiscuidade, o contato superficial e rápido com outras pessoas. Aplicativos de paquera, relações desinteressadas que visam apenas o sexo casual e a pornografia de fácil acesso aumentam cada vez mais o sentimento de indiferença em relação aos outros, enxergando-os como mero meios para atingir um fim próprio, isto é, a própria satisfação e prazer pessoal. Mas como, explica o psiquiatra Viktor Frankl,
“Muitas vezes é o desejo pelo prazer que ocupa o lugar da vontade de sentido frustrada. Mas o desejo de prazer não só contradiz o sentido individual, como se autodestrói. A própria busca pela felicidade impede a própria felicidade. Quanto mais buscamos a felicidade mais ela nos escapa, isso porque aquilo que ainda não alcançamos sempre é fantasiado como sendo melhor do que aquilo que já temos.”
Viktor Frankl, A Falta de Sentido.
Encontros efêmeros não acontecem somente em relacionamentos amorosos, mas a simples multiplicação de encontros entre as pessoas, sem nenhum tipo de contato ou relação mais próxima aumenta e muito o sentimento de solidão. Isso acontece muito com pessoas que moram em cidades grandes, sendo quase impossível estabelecer um sentimento de tribo. Hoje em dia você encontra mais pessoas em um dia do que um camponês medieval conheceu em toda a sua vida. Como escreve George Minois:
“O homem moderno, submerso em imagens, já não sabe ver. Mesmo quando olha, não vê, ou vice-versa. O mundo passa diante dos seus olhos com tal velocidade que ela ultrapassa sua capacidade física de registro e sua capacidade psíquica de empatia. Fonte de sofrimento para todos aqueles que assistem um olhar. Os relatos autobiográficos estão repletos dessa observação.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
A nossa solidão atinge o seu clímax paradoxal, é claro, com as redes sociais. A comunicação mediada pelas redes sociais é frequentemente superficial, permitindo mentiras, manipulações e rupturas instantâneas mais facilmente do que na vida real. Ao multiplicar esses contatos sem profundidade, reforça-se a sensação de isolamento, mesmo em meio a uma aparente interação constante.
“A sociedade eletrônica traz uma nova forma de solidão: não mais a do eremita isolado, mas a do comunicador conectado. Fenômenos como os hikikomori no Japão ilustram essa realidade, com jovens que vivem reclusos e interagem apenas por meio de telas. Além disso, as ferramentas de comunicação, como telefone e e-mail, intensificam o isolamento ao materializar o silêncio. Um telefone que não toca ou uma caixa de e-mail vazia são testemunhos cruéis de desconexão. Enquanto o diário íntimo dava lugar à confidência privada, as redes sociais promovem um exibicionismo que substitui a solidão privada pela solidão exposta.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários
Desde a antiguidade, o ser humano foi visto como um ser social. O homem primitivo pensava e agia coletivamente. Sem os seus semelhantes, o indivíduo não era nada. O termo participation mystique, cunhado pelo antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl, captura a essência dessa psicologia tribal. Participation mystique se refere à maneira pela qual o homem primitivo era psicologicamente fundido com os outros – sua psique existindo em um estado de unidade, ou identidade inconsciente, com seu clã. Com a formação das primeiras civilizações e o crescimento das sociedades, as pessoas se fortaleceram em laços familiares, encontrando nelas uma oportunidade para exercerem suas virtudes. A noção de pessoa, um ser individual dotado de liberdade e de escolha só foi desenvolvida com os primeiros monges cristãos, que foram viver em comunhão com Deus nos desertos. Mesmo em estado de solidão, eles se encontravam espiritualmente ligados a alguém. Do Renascimento ao Iluminismo e chegando até a modernidade, isolar-se sempre foi considerado uma atitude suspeita e vista como não natural. E a tecnologia contemporânea nos colocou em um novo dilema, permitindo que todos estejam isolados e permanentemente ligados a todos os outros, mas ainda não conseguimos medir com precisão os impactos disso. Mas, como escreveu George Minois:
“Esta inovação, que está fadada a produzir uma verdadeira mutação do cérebro humano, da psicologia e da cultura, escapa ao problema da solidão; não o faz desaparecer, dá-lhe um novo rosto e torna-o mais insidioso, porque a tela do computador ou do telefone, mais do que uma janela para o mundo, é um espelho, no qual olham milhares de milhões de Narcisos. A nova solidão chama-se Comunicação.”
George Minois, História da Solidão e dos Solitários.
Por fim, não é necessário que sigamos o caminho de Christopher McCandless, protagonista do livro Na Natureza Selvagem, que também foi adaptado para o cinema. McCandless acreditava que viver como um lobo solitário lhe proporcionaria a verdadeira felicidade. No entanto, ele acabou descobrindo, tarde demais, uma lição fundamental, que deixou registrada na esperança de que alguém a encontrasse, assim como todo solitário:
“A felicidade só é verdadeira se for compartilhada.”
Do filme: Na Natureza Selvagem.
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