Como destruir sua vida — o guia de Dostoiévski
Transcrição do vídeo
“O Inferno é eterno. Ele sempre existiu. Ele existe agora. É a subdivisão mais infértil, sem esperança e malevolente do submundo do caos, em que as pessoas decepcionadas e ressentidas eternamente habitam.“
Jordan Peterson, 12 Regras Para a Vida.
Muitas coisas podem acontecer na nossa vida para que nos tornemos pessoas ressentidas e amarguradas. Durante a infância, o mundo pode parecer um lugar hostil e perturbador. À medida que uma criança cresce, se ela não se sentir devidamente amada e protegida, terá dificuldades de encarar o mundo mais facilmente e começará a lançar mão de alguns mecanismos de defesa na tentativa de se proteger dos conflitos provenientes tanto do seu interior como do exterior, isto é, da cultura e da sua relação com os outros.
Elas se sentem então divididas, como se duas forças estivessem lutando dentro delas, pois, por mais que elas vejam a necessidade de afeto e as relações interpessoais algo perigoso, têm necessidade de satisfazê-las.
A psicanalista alemã Karen Horney, depois de uma vasta experiência clínica com seus pacientes, concluiu que, na tentativa de evitar um colapso, mas sem muitas ferramentas e habilidades para prevenir isso, uma das possíveis soluções que uma pessoa pode encontrar para tentar resolver esses conflitos e manter uma aparência de unidade e bem-estar é se afastando das pessoas, assumindo uma atitude de indiferença e atestando sua superioridade através da sua intelectualidade.
É o que Karen Horney chama de supremacia do intelecto. A pessoa, reconhecendo que está sofrendo por causa dos seus conflitos, não se sente disposta a mudar, mas pelo contrário, ela passa a se vangloriar de suas próprias observações a respeito de si mesma, é como se ela separasse o próprio intelecto dela mesma e passasse a ser sua própria observadora, sem a pretensão de solucionar qualquer coisa. Ela então passa a admirar o seu próprio sofrimento e se esquiva de tentar mudar. Karen Horney Escreve:
“O intelecto é o guia para o qual, da mesma forma que para Deus, nada é impossível. O conhecimento dos problemas íntimos não constitui, pois, um passo no sentido da mudança, é a mudança. Os pacientes que operam sobre esta premissa, ficam muitas vezes confusos pelo fato de esta ou aquela perturbação não desaparecer já que conhecem tanta coisa a respeito da sua dinâmica.”
Karen Horney, Neurose e Desenvolvimento Humano.
Esse interesse orgulhoso no seu próprio sofrimento pode se estender para outras pessoas. Ela então começa a observá-los e conclui que não são dignas de ter a sua amizade porque não estão tão conscientes de si mesmas quanto ela. O que acontece na verdade é que projeta nos outros a causa do seu sofrimento para aliviar o ódio que sente por si mesma. Para ela, a verdadeira liberdade é não se comprometer com nada e não se responsabilizar por nada.
Qualquer ligação íntima com algo ou com alguém seria vista como fraqueza e aprisionamento. Isso faz com que ela restrinja sua condição a fim de manter intacta sua aparência de liberdade e independência.
Dessa forma, prefere se manter em um emprego medíocre e limitar suas despesas. Não se arrisca em nenhuma empreitada porque teme não obter um êxito brilhante e instantâneo, o que destruiria aquela sua imagem de intelectualidade. Evita relações sociais porque, caso os outros a conhecessem mais a fundo, ela temeria que descobrissem que sua vida é uma farsa.
À medida que o tempo passa, ela se vê obrigada a se afastar cada vez mais dos outros, porque não pode aceitar o fato de ter ficado para trás pelos motivos que ela mesma criou. Sente-se então obrigada a viver no seu mundo de fantasias. Enfim, seu orgulho a consome tanto que a passa a desenvolver uma irritabilidade difusa e qualquer pergunta sobre si mesma será vista como uma afronta.
Isso tudo que eu descrevi é magistralmente desenvolvido por Dostoiévski em seu livro Memórias do Subsolo, publicado 1864. É a história de um funcionário público aposentado que acabou de completar 40 anos e vive uma vida completamente miserável. Mora em um apartamento sujo e pequeno, sem amigos e com um mordomo que ele chama de carrasco, pois a sua prontidão e disponibilidade é vista como uma punição pelo homem do subsolo, já que não entende como alguém pode se dedicar a alguém sem sentir remorso.
Este livro deu início ao conceito de subsolo, um estado psicológico onde o indivíduo, ao tentar escapar das influências externas, acaba se aprisionando em um ciclo de ressentimento e negação. Esperando obter independência e autossuficiência, acaba se tornando escravo do próprio orgulho, preferindo remoer o seu sofrimento do que realmente tentar superá-lo.
Nos cinemas, personagens como O Coringa e Travis de Taxi Driver são exemplos de personagens que estão no subsolo. Mas este livro, no final, é um grande aviso de Dostoievski para todos nós. Ele está nos avisando para não sermos iguais ao homem do subsolo. No entanto, este vídeo será uma espécie de psicologia reversa e te mostrará o que você deve fazer caso queira destruir a sua vida e fazer parte do subsolo.
A primeira coisa é: Fingir que não precisa dos outros para nada.
O homem do subsolo usa a desculpa de que tem uma autoconsciência muito elevada que o impede de ter amigos e desenvolver relações sociais, pensando que ninguém é bom o suficiente para estar com ele. Só que esse orgulho em atestar que não precisa de ninguém faz com que ele empreste ao outros uma importância excessiva. Ele na verdade necessita dos outros para obter uma confirmação direta dos valores fictícios que construiu para si mesmo. Ele precisa provar que é inteligente e que os outros estão perdendo a oportunidade de ter a sua amizade.
No fundo, o que ele quer é se vingar de si mesmo, do seu sentimento de autodesprezo, mas o faz por intermédio dos outros. Ou seja, para provar para si mesmo que é inteligente e manter o seu ideal intacto, ele precisa das outras pessoas. Esse orgulho é o que torna as relações humanas do homem do subsolo algo paradoxal: ele se sente inseguro em relação aos outros, os despreza, se mantém distante, e ao mesmo tempo, necessita delas de forma vital.
Isso fica mais claro na segunda parte do livro em que o narrador, o homem do subsolo, decide reencontrar antigos conhecidos em um jantar. Ele não é próximo desses homens, mas, por um desejo de autoafirmação e uma esperança de confrontar os sentimentos de inferioridade que nutre em relação a eles, resolve comparecer. Quando ele chega no jantar, percebe que não foi realmente convidado com entusiasmo e que sua presença é mais tolerada do que bem-vinda, porque descobriu que alteraram o horário do jantar sem avisar ele.
Durante o jantar, ele tenta se afirmar com discursos e provocações, mas suas tentativas de impor respeito apenas resultam em mais embaraço e isolamento. A cena atinge seu clímax quando o narrador, embriagado e dominado pelo ressentimento, tenta provocar um dos colegas, que é de fato, o centro das atenções daquela noite.
No entanto, os outros convidados ficam desconfortáveis e deixam ele sozinho, o que só intensifica seu sentimento de rejeição. Foi aqui que teve o seu ideal de inteligência e superioridade destruídos, e todo o seu preparo para essa situação não serviu para nada, pois percebeu que os colegas não se importavam com as coisas que ele sabia ou o que ele queria provar. Isso mostra como muitas vezes desprezo pelos outros são, na verdade, reflexos de nossa própria insegurança e sentimento de insignificância. O Homem do subsolo é atormentado por demônios imaginários nascidos de sua própria falta de boa vontade em relação à humanidade.
E isso nos leva para a segunda coisa que você deve fazer se quiser destruir a sua vida: Não fazer nada, mas pensar em fazer tudo.
O homem do subsolo sempre arquiteta planos e projetos em sua cabeça, mas nunca concretiza nada. Ele mesmo escreve:
“[…] era muito enfadonho ficar sentado de braços cruzados. Lançava-me, então, nas minhas escapatórias. Imaginava, para mim mesmo, aventuras e inventava uma vida, para viver ao menos de algum modo.”
Fiódor Dostoiévski, Memórias do Subsolo.
Seu monólogo interno está cheio de pensamentos se amaldiçoando por não agir e prometendo agir da próxima vez, sabendo plenamente que, quando o momento chegar, ele não o fará. Até mesmo seus desejos de vingança com as outras pessoas, onde diz que realizará tal ato, mas que nunca acontece. Isso é demonstrado na parte em que o narrador diz que vai começar uma briga com um oficial militar que passa todo dia por ele na rua. Ele planejou empurrá-lo no momento em que os dois se cruzassem da próxima vez, mas sempre acaba dando passagem para o oficial.
Essa incapacidade de realizar seus desejos o corrói lentamente e destrói seu respeito próprio. Isso de algum modo pode se relacionar conosco. Podemos não perceber, mas à medida que mentimos para nós mesmos, dizendo que na próxima vez vamos fazer tal coisa e essa próxima vez nunca acontece, vamos acreditando na nossa mentira a tal ponto que ela se torna uma verdade, e basta, então, apenas visualizarmos os feitos na nossa cabeça que é o suficiente para não nos esforçamos em concretizar aquilo, com medo de, ao passar o que imaginamos para a realidade, ela perca a perfeição idealizada, e nos sentiremos ainda mais culpados.
Quantos projetos pensamos e nunca começamos? Quantas vezes imaginamos cenários na nossa cabeça que nunca são confirmados na realidade? Temos medo de sermos jogados para fora desse paraíso que construímos para nós.
A terceira coisa que você pode fazer caso queira destruir a sua vida é justamente isso que eu disse agora, evitar confrontar suas ideias com a realidade, com medo de fracassar.
O homem do subsolo é alguém que não pode deixar de comparar seus feitos reais com a sua imagem idealizada onde precisa ser um gênio ou um ser humano perfeito, e nessa comparação seus atos ou possibilidades reais sempre se mostram inferiores. Para não perder essa imagem de perfeição, ele nem ao menos tentar começar alguma coisa, pois caso falhasse, atestaria que de fato é um fracassado. Mas a consequência do medo de fracassar é a crescente inveja que o homem do subsolo começa a ter dos outros que conseguem atualizar suas potencialidades.
O narrador divide o mundo em dois tipos de pessoas: as que agem, que ele chama de homens de ação, e as que pensam. Os homens de ação realizam coisas, são ativos e não param por nada para conseguir o que querem, enquanto a pessoa que apenas pensa pode conceber grandes ideias, mas são ineficazes.
O medo do homem do subsolo em fracassar o faz evitar competições saudáveis, empobrecendo cada vez mais a sua vida. Ele considera o esforço algo terrível, pois pensa que se a pessoa precisa se esforçar para tentar alguma coisa é porque de fato não é boa naquilo. E se ele vê que alguém percebeu o seu esforço, sua atitude passa a ser o oposto da que ele estava tendo.
Ele passa a se tornar desinteressado, dando a entender que aquilo é a coisa mais fácil do mundo. O medo do fracasso também pode se espalhar para outros âmbitos da vida, como nos relacionamentos. Uma das passagens mais interessantes do livro é quando o narrador brevemente estabelece uma conexão com a prostituta Liza e dá seu endereço a ela.
Isso poderia ter sido um caminho de saída para o Homem do subsolo, ou seja, o começo de sua reconexão com a sociedade e com seus semelhantes. Mas, em vez disso, ele é imediatamente tomado por um terror irracional por causa do seu apartamento feio e velho e, quando liza o visita, ele a insulta a tal ponto que ela vai embora e ele nunca mais a vê.
Ele estava tão assustado com o medo da rejeição e tão desesperado que Liza pudesse quebrar o seu ideal de perfeição, descobrindo que ele é uma farsa, que jogou fora sua única chance de recuperar sua vida do desespero. A imagem de indiferença que o homem do subsolo tenta passar faz com que ele restrinja seu envolvimento, com medo de perder sua ilusão de independência e autossuficiência, passando a ter cada vez mais inveja e ódio dos outros, preferindo se entrincheirar no seu mundo orgulhoso de sofrimento.
E por fim, a última coisa que você pode fazer para destruir a sua vida é ser intelectualmente arrogante.
O homem do subsolo pensa que sabe mais do que qualquer um ao seu redor, apesar de não demonstrar esse conhecimento em nenhum momento do livro. Suas ilusões de grandeza o impedem de aceitar conselhos dos outros, mesmo quando claramente o beneficiariam, e dão-lhe um lugar para se refugiar quando se sente embaraçado pelo sucesso material ou espiritual dos outros.
Nós podemos facilmente nos tornar orgulhosos se não soubermos trabalhar nossa intelectualidade. Isso porque o orgulho se apaixona por ele mesmo, pelas suas próprias criações e quer se desvencilhar de todo o resto, acreditando que só ele é o suficiente. Na história do mundo, o orgulho e a arrogância intelectual sempre estiveram associados ao diabo. Jung escreveu que:
“[O Diabo] é o aspecto de toda função psíquica que escapa que escapa à hierarquia da totalidade, assumindo a autonomia e o domínio absoluto.”
Carl Jung, Psicologia e Alquimia.
Jordan Peterson, fazendo uma análise do livro O Paraíso Perdido, de John Milton, escreveu algo semelhante:
“Lúcifer é o espírito do totalitarismo. Ele é lançado do Céu para o Inferno porque tal elevação, tal rebelião contra o Altíssimo e Incompreensível, inevitavelmente produz o Inferno. […] a grande tentação da faculdade racional é glorificar sua própria capacidade e suas próprias criações, alegando que em face de suas teorias nada que seja transcendente ou fora de seus domínios precisa existir.”
Jordan Peterson, 12 Regras Para a Vida.
Dostoiévski adverte através do homem do subsolo, para pessoas como você e eu, que gostam de aprender, para não se deixar levar pelo reino da arrogância intelectual, onde tudo aquilo que você sabe é tudo o que precisa, se fechando cada vez mais para o aprendizado. Pensando que vamos construir o nosso próprio paraíso, sozinhos e autossuficientes, tudo o que vai nos restar é governar no nosso próprio inferno.
“O que o salvará? O totalitarismo diz, em essência: ‘Você deve contar com a fé naquilo que já sabe.’ Mas não é isso o que salva. O que salva é a disposição de aprender com aquilo que você não sabe.“
Jordan Peterson, 12 Regras Para a Vida.
Qualquer pessoa pode ser salva do caminho da autodestruição ao compreender uma frase escrita por Dostoiévski em um de seus romances:
“O que é o Inferno? Penso assim: É o sofrimento de não poder mais amar.”
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov.
Para Dostoiévski, somente a abertura para o aprendizado e a capacidade de amar é que fará com que a pessoa não caia em um abismo. Quando digo amar, me refiro a aproximação com algo para além de nós mesmos. Amor ao trabalho, amor a alguém ou amor a Deus. O psiquiatra austríaco e fundador da logoterapia Viktor Frankl chama essa capacidade do homem em se voltar para fora de si mesmo de autotranscendência. O homem só volta a si mesmo e se preocupa excessivamente com a sua posição a respeito da vida quando deixa de realizar a sua missão, e assim se frustra na sua busca de sentido.
Essa missão é imposta pela própria vida, que pergunta a todo instante o que nós vamos fazer dela. Só conseguimos responder essas perguntas que a vida nos faz na medida em que somos responsáveis, e só seremos responsáveis na medida que encontrarmos algo, fora de nós mesmos, para cumprir ou realizar: seja amando alguém, se dedicando a algo ou suportando um sofrimento inevitável.
É por isso que o sentido nunca pode ser criado, mas sim buscado. Se formos meramente criar um sentido, não nos defrontaremos com a objetividade do mundo, o que pode acarretar em uma subversão moralista para atenuar um aborrecimento que não conseguimos lidar por causa dessa mesma objetividade que confrontou a nossa consciência.
Dar sentido equivaleria a moralizar, o que muitas vezes pode fazer com que o mal pareça o bem e o bem mal. Em outras palavras, nós não criamos nosso próprio caminho, nós encontramos o caminho. E o homem do subsolo se fechou para qualquer autotranscendência e escolheu se confinar em sua própria degradação. Não sejamos iguais a ele, pois nos foi dado a capacidade de autotranscendência, isto é, de olhar para fora, para o mundo, para além de nós mesmos e então encontrar um sentido.
“Não tenha tanta vergonha de si mesmo, pois todo mal vem disso.”
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov.
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